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Socialismo 2012: O estertor do marcelismo e o combate à ditadura

Começa esta sexta-feira em Santa Maria da Feira o Fórum Novas Ideias organizado pelo Bloco de Esquerda. Publicamos o resumo da comunicação de Miguel Cardina, "Becos da História: o estertor do marcelismo, o combate à ditadura e a construção de uma hegemonia de esquerda".
Socialismo 2012: de 31 de agosto a 2 de setembro na Escola Secundária de Santa Maria da Feira. Entrada livre.

A 25 de Abril de 1974, um golpe militar feito essencialmente por capitães cansados de uma guerra sem fim à vista derrubou a mais velha ditadura da Europa. Nos dias que se seguiram, a presença e a acção do povo nas ruas – do assalto à sede da PIDE/DGS até à gigantesca adesão às manifestações do 1.º de Maio – conduziu o derrube do Estado Novo a um verdadeiro e imprevisto processo revolucionário. Várias são as causas que ajudam a explicar esta erupção popular, mas uma delas radica claramente na quebra de legitimidade que assolou o regime nos últimos anos. Essa quebra manifestou-se, desde logo, na crescente insatisfação com a guerra colonial e na diversificação e radicalização do campo da esquerda, sobretudo a partir de 1969/70.

A relação entre o impasse na resolução da guerra colonial – que na verdade começara na Índia mas que adquirirá visibilidade e dramatismo em África, a partir de 1961 – e a queda da ditadura é um fenómeno realçado pela generalidade dos estudos sobre a época. Um país criado numa “mística imperial” e onde sectores da esquerda legitimaram até tarde a existência de colónias, viu o início do desfazer do Império com comoção e fervor nacionalista. Os anos seguintes assistiram, no entanto, ao alastrar da insatisfação com o conflito.

A continuidade de uma guerra travada em condições adversas, a milhares de quilómetros dos territórios de origem das tropas e levada a cabo em contra-ciclo histórico, provocara o aumento continuado de desertores e refractários e acentuava a vaga emigratória dos anos sessenta – agora deslocada para a Europa, sobretudo para França, onde centenas de milhares de portugueses afluem durante esses anos, muitos deles clandestinamente. Num contexto em que se consolidava a onda independentista que varria o então chamado “Terceiro Mundo”, o apoio aos movimentos de libertação africanos ganha peso externo. Na frente de batalha, as tropas iam sendo cada vez mais permeáveis à leitura de textos anticoloniais, à aceitação de jornais e revistas da oposição, à audição de “música de intervenção” e a um modo de estar e agir, consentâneo com o espírito da época, marcado pela informalidade nos relacionamentos e por uma valorização das noções de igualdade, autodeterminação e justiça social.

Apesar da censura impedir o debate público e produzir significativas manchas de silenciamento informativo, a partir de 1969/70 assiste-se a uma explosão de publicações, slogans, notícias, imagens e práticas políticas conectadas com o Maio de 68 e a contracultura, a guerra do Vietname e as lutas anticoloniais, a Primavera de Praga e a recusa do mundo bipolar oriundo da Guerra Fria, a experiência cubana e os ensaios guerrilheiristas na América Latina, a Revolução Cultural chinesa e o combate a todas as hierarquias pré-estabelecidas. Estes eixos de contestação, nem sempre convergentes e muitas vezes contraditórios, têm nos movimentos estudantis um foco essencial de afirmação, mas são capazes de penetrar igualmente nos terrenos associativos, cooperativos e sindicais.

Com efeito, uma parte significativa da juventude estudantil politiza-se crescentemente e efetua um processo sem retorno de “abertura à sociedade” – o que um episódio como as acções de auxílio às vítimas das Cheias, em Novembro de 1967, bem ilustra. O campo das oposições diversifica-se e radicaliza-se nos anos finais do Estado Novo: surgem grupos de luta armada apostados no desgaste no regime; emerge uma variedade de coletivos maoístas, trotskistas e socialistas radicais; aparecem grupos ligados ao catolicismo progressista que se empenham particularmente na denúncia da guerra colonial; fenómenos como as “eleições” – ainda que, em 1969, PCP e ASP (Acção Socialista Portuguesa) dinamizem plataformas distintas – e o II e III Congresso Republicano de Aveiro vinham estimular as oposições filiadas de matriz frentista e antifascista; o PCP, mantendo a estratégia unitária baseada no programa da “revolução democrática e nacional”, acciona gestos de radicalização, como o lançamento da ARA (Acção Revolucionária Armada) e tem presença – ainda que nem sempre única ou dominante – na dinamização das “listas B” para os sindicatos. No campo do trabalho, aliás,  entre Outubro de 1973 e Abril de 1974 intensificam-se as greves e as reivindicações salariais. Ao mesmo tempo, na cultura, nas artes e no jornalismo afirma-se uma paulatina hegemonia de esquerda. E uma conspiração militar constituída por oficiais de patente intermédia passa, em menos de um ano, de reivindicações corporativas até à consciência de que a guerra apenas terminaria com o derrube da ditadura. O regime cairá às suas mãos mas a presença imediata de largos sectores da população nas ruas mostra como a sua legitimidade há muito estava em causa.

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