As prioridades geopolíticas dos Estados Unidos e da UE obrigam-os a criticar as iniciativas dos dirigentes albaneses do Kosovo, que estão a provocar tumultos nos municípios de maioria sérvia, em confronto com o destacamento de forças da NATO (KFOR). É uma prenda oferecida ao líder autocrata da Sérvia, Aleksandar Vučić, que tem laços estreitos com Putin... numa altura em que enfrenta, desde há um mês, uma grande revolta pública interna[1].
Desde que o parlamento do Kosovo votou pela independência em 2008[2], os acordos duramente negociados pela UE desde 2011 pareciam ter chegado a uma conclusão positiva em março passado: visavam o reconhecimento por Pristina de uma "Associação de Municípios de Maioria Sérvia do Kosovo", em troca do respeito de Belgrado pela integridade das fronteiras do Kosovo e da participação do Kosovo em organismos e negociações internacionais. A aplicação prática do acordo fracassou e levou à demissão em massa das autoridades dos municípios de maioria sérvia. A hostilidade de Albin Kurti, o líder kosovar eleito em 2021[3] , em relação a qualquer estatuto autónomo para estes municípios, levou-o a acender o rastilho: decidiu organizar eleições locais e reconhecer os presidentes de câmara, apesar do boicote convocado pela lista sérvia e amplamente seguido.
É o espectro da Republika Srpska, "entidade sérvia" da Bósnia-Herzegovina (B&H) resultante dos Acordos de Dayton (1996), que assombra os dirigentes do Kosovo - tal como os de Kiev, com o impasse dos "Acordos de Minsk" sobre o Donbass depois de 2014 como pano de fundo.
De Dayton e da Republika Srpska ao Kosovo
Pondo fim a três anos de desmembramento étnico da Bósnia e Herzegovina, os Acordos de Dayton deixaram uma Bósnia e Herzegovina pseudo "soberana" (dentro das suas fronteiras) mas permanentemente dividida em "entidades" etnicamente limpas, dominadas por forças nacionalistas bósnio-sérvias e bósnio-croatas que ameaçavam regularmente com a secessão para os países vizinhos.
Patrocinados por Washington, estes acordos foram coassinados por Izetbegović (que se viu legitimado como presidente), bem como por Milošević, líder da Sérvia, e Tudjman, líder da Croácia, autorizados a falar em nome "dos sérvios" e "dos croatas" e a gerir os assuntos "internos" dos seus países (respetivamente, o controlo do Kosovo e a expulsão de centenas de milhares de sérvios da Krajina croata).
Foi esta constatação que, em 1996, levou uma parte dos albaneses do Kosovo a recorrer à luta armada do UCK (Exército de Libertação do Kosovo) pela independência, rompendo com a luta pacifista até então conduzida por Ibrahim Rugova e pela LDK (Liga Democrática do Kosovo). O UCK ganhou popularidade à medida que Belgrado o reprimia, tratando-o como "terrorista", tal como os Estados Unidos e a UE. A UE, marginalizada em Dayton, esperava ter sucesso diplomático com a sua "política externa" nas negociações sobre o estatuto do Kosovo em Rambouillet, em 1999, na esperança de um acordo com Milošević, tal como acontecera em Dayton.
A pretensa soberania do Kosovo
Só que, ao constatar a popularidade do UCK no terreno, os Estados Unidos decidiram torná-lo aliado da NATO (para obter uma base militar no coração dos Balcãs e contrariar qualquer autonomização da UE). Longe de capitular e de ficar enfraquecido, Milošević viu-se consolidado, para grande desgosto da sua oposição liberal (que dominava em todas as grandes cidades). O fiasco militar e político da NATO, na ausência de um mandato da ONU, no que se transformou numa guerra de três meses, colocou a Aliança à beira do colapso, na véspera do seu 50º aniversário, o que poderia ter levado à sua dissolução. A saída da crise exigia a rápida reintegração da ONU na negociação da Resolução 1244 do Conselho de Segurança. Longe das apresentações míticas do cenário desta guerra, foi a Sérvia que (até hoje) reclamou a propriedade desta resolução 1244 (votada pela Rússia!) e não os albaneses - excluídos das negociações. O protetorado da ONU (e depois da UE) introduzido na altura, apoiado pela força militar da NATO (KFOR), protegeu certamente o rápido regresso dos albaneses que tinham fugido da guerra, mas manteve o Kosovo como uma "província" dentro das "fronteiras da Jugoslávia" - ou o que restou dela até à saída do Montenegro em 2006... A "independência" foi votada pelo Parlamento (e ratificada pelo voto popular) em 2008, fortemente enquadra pelos patrocinadores que redigiram as suas condições.
A própria força policial do Kosovo deveria então substituir a KFOR da NATO, ilustrando uma suposta soberania que, na realidade, foi uma neocolonização económica do Kosovo.
Prioridades da realpolitik ou "paz justa e duradoura"?
A vizinha Sérvia continua a ameaçar e a explorar as minorias sérvias na B&H e no Kosovo. Mas a Sérvia não é a Rússia. E o apelo da UE é forte nos Balcãs, apesar das dúvidas crescentes sobre as aberturas práticas. Depois de ter rejeitado inicialmente a NATO e a UE, o atual Governo sérvio está a jogar em todos os tabuleiros - incluindo a candidatura à adesão à UE e a participação em manobras militares com a NATO ou a Rússia. Os meios de comunicação social estão amordaçados e Aleksandar Vučić controla o país com mão de ferro, mobilizando a extrema-direita para apoiar os sérvios do Kosovo, com a ajuda e o apoio dos líderes da UE... e dos Estados Unidos.
Estes últimos acusaram Albin Kurti de ter arruinado o acordo negociado pela UE e de ter inflamado os acontecimentos. A primeira sanção anunciada por Washington foi o cancelamento da participação do Kosovo no exercício militar Defender Europe 2023 e o fim da campanha internacional para o seu reconhecimento. O regresso da KFOR para substituir a polícia kosovar (rejeitada pelos sérvios) "é um mau sinal", afirma Belgzim Kamberi, do Instituto Musine Kokalari, um centro de análise social-democrata de Pristina. "Significa que a soberania do Kosovo sobre o Norte continua a ser ilusória, uma vez que a zona está agora diretamente sob o controlo da NATO.[4]" Na mesma linha, Macron e os líderes da UE exigiram novas eleições e o reconhecimento da "Associação de municípios de maioria sérvia" como condição para a "integração europeia". Só que, tal como no caso de Kiev, esta toma a forma de uma nova "Comunidade Política Europeia", uma espécie de "sala de espera" sem políticas capazes de oferecer um quadro igualitário e progressista às populações em causa. Estamos muito longe das condições de uma paz justa e duradoura.
Artigo publicado a 8 de junho de 2023 em L'Anticapitaliste. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net
Notas:
- ^ Centenas de milhares de manifestantes depois de várias mortes por tiros em 3 e 5 de Maio, nomeadamente em escolas, que o autocrata Vucic se recusou a encerrar enquanto os meios de comunicação social às suas ordens denegriam os manifestantes.
- ^ Parte da ONU, incluindo a Rússia e cinco membros da UE, não reconheceram o novo Estado uma vez que Belgrado não o reconheceu.
- ^ Líder da organização "Autodeterminação" que chegou ao poder com uma forte maioria e um programa de esquerda em 2021, que praticamente não pôs em prática. Ler o dossier do Inprecor: https://inprecor.fr/articles/article-2428.html
- ^ Jean-Arnault Dérens, Laurent Geslin e Simon Rico, "Kosovo, la mécanique d'une crise prévisible", Mediapart, 2 de Junho de 2023. Ver também a reportagem do Courrier des Balkans.