Sara Barros Leitão: "Agora, mais do que nunca, é sobre não deixar ninguém para trás

14 de abril 2020 - 22:56

Falámos com Sara Barros Leitão, uma voz lúcida e atriz insubmissa que exige medidas urgentes para tempos de emergência e medidas decentes para tempos normais.

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Sara Barros Leitão. Fotografia de Júlio Moreira
Sara Barros Leitão. Fotografia de Júlio Moreira

Sara Barros Leitão (1990, Porto) é atriz, encenadora, insubmissa e implacável no que à injustiça diz respeito. Depois de Regina Guimarães, companheira de batalha na cidade do Porto, falámos também com ela sobre arte e resistência, mas ainda sobre medidas concretas urgentes para um setor em emergência.

Como é suposto ser o mote destas conversas, lanço uma provocação, partindo do verso de Hölderlin que diz "de que servem os poetas em tempos de angústia": de que serve (ou de que pode servir) a poesia, toda a arte, no momento sem precedentes que estamos a viver? 

Sempre estive convencida de que, se a arte servia para alguma coisa, era para não darmos um tiro na cabeça de cada vez que acordamos. Mas esta é uma pergunta que me tem assaltado muitas vezes nos últimos tempos, e não falo apenas neste período de confinamento, e para a qual não tenho - felizmente - uma resposta. Pergunto-me muitas vezes isso, para perceber o sentido do meu próprio trabalho. Tenho colaborado na redação de algumas candidaturas de projetos (minhas e de outros artistas), e apercebi-me de que o espaço de escrita para a descrição do projeto é praticamente o mesmo para o da justificação da sua pertinência. Isto carrega em si, de alguma maneira, uma ideia de que a arte, a criação, só por si, não são suficientes. O artista, afim de poder desenvolver o seu trabalho, tem de justificar a utilidade do mesmo. Penso que o perigo reside nas diferentes aceções da palavra "utilidade", sobretudo num sistema neoliberal. Estou convencida de que não se pode medir a utilidade da arte na mesma medida em que se medem ajudas a bancos. Aquilo que a arte oferece será sempre na medida do sentido da nossa existência. A arte pode ajudar-nos e pode destruir-nos. Não faz sempre bem, e não tem mal. Pode salvar, ao mesmo tempo que pode levantar questões tão dolorosas que são impossíveis de ultrapassar estando nós obrigados a ficar fechados em casa.  Mesmo sem ter grandes respostas, nem grandes certezas da dimensão do que estamos a viver neste momento, os artistas não têm hesitado em continuar a trabalhar, a provocar e a questionar, de modo a não nos esquecermos de que estamos vivos. Mas num período tão excecional como este, também é importante devolver a pergunta: de que maneira garantimos a dignidade de sobrevivência dos poetas em tempos de angústia?  

Ping pong e devolvo-ta de novo: de que maneira garantimos a dignidade de sobrevivência dos poetas/artistas em tempos de angústia?  

Começar por encarar o que está a acontecer a todos os trabalhadores da cultura com alguma seriedade, seria, desde logo, uma grande ajuda. Penso que é fundamental trabalhar em diferentes soluções para diferentes momentos, embora devam ser pensadas em simultâneo e em articulação. Ou seja, desde logo é necessário encontrar soluções para garantir a sobrevivência quase diária dos milhares de trabalhadores que dependem do setor cultural. Aqui incluem-se artistas, produtores, técnicos, mediadores, vigilantes, etc. Penso que os vários países da Europa estão a responder de formas muito distintas a esta questão. Apesar de não ter um conhecimento profundo sobre o assunto, apenas vou lendo notícias ou artigos, há relatos que trazem alguma esperança. É o caso do exemplo que nos é relatado num artigo de Mário Lopes, no jornal Público a 11 de abril, sobre a Alemanha, Inglaterra ou Áustria. O que distingue estas medidas é o facto de as mesmas compreenderem que, neste momento, estes profissionais estão impedidos de trabalhar e precisam urgentemente de proteção social e de subsistência. Assim, é possível que um freelancer submeta o seu caso aos serviços competentes para receber assistência imediata, sendo o modo de submissão e de distribuição diferente de país para país. Num outro ritmo, mas nem por isso menos urgente, é fundamental que se pense como iremos fazer e fruir da cultura quando as medidas restritivas de confinamento começarem a reduzir. Que soluções há para os espaços fechados? Como poderemos coabitar o mesmo espaço? Que apoios à criação poderemos ter? Que espetáculos serão cancelados? Quais serão reagendados? Etc. E se não for possível voltarmos aos teatros, às galerias e aos museus durante mais de um ano? Que soluções para os trabalhadores? Que soluções para os objetos artísticos? Que soluções para os públicos e espectadores? Como garantir que um setor inteiro não colapse? O que não me parece que faça sentido é vivermos uma pandemia sem aceitarmos que estamos numa pandemia. Não podemos aceitar que os modelos de apoio do Ministério da Cultura sejam apenas numa lógica de apoio à produção e à criação durante este período. É absolutamente incompreensível que os apoios anunciados pelo Ministério da Cultura coloquem os artistas a fazer novas candidaturas a projetos que ninguém sabe como e de que maneira se vão poder realizar. Há uma espécie de ditadura da produtividade e da reinvenção. Como se, para ter acesso à tal dignidade na sobrevivência, os trabalhadores da cultura tivessem de reinventar a sua forma de trabalhar, usando obrigatoriamente as tecnologias como suporte. Ser obrigado a parar por completo um processo criativo é de uma enorme violência. Perder todo o rendimento de um dia para o outro é uma tragédia. E os artistas que não dominam as tecnologias? E os que não se revêem neste formato? E os que estão tão desesperados que não conseguem criar? E os técnicos? E os produtores? E os iluminadores? E os outros setores da cultura que ainda não tiveram qualquer apoio como o setor dos livros? 

Parece-me muito interessante essa ideia de ditadura da produtividade. Nomeadamente as pessoas que trabalham nas artes do espetáculo podem ter dificuldades acrescidas em reinventar a relação entre palco e plateia, principalmente quando perdem os seus rendimentos. Criação e aflição podem combinar-se, mas não obrigatoriamente. E por vezes esquecemos que para haver espetáculo não é preciso apenas os artistas, há todos os outros profissionais que tornam as coisas possíveis. A questão da cultura é particular, pode-se dizer que é um setor que já estava em estado de emergência muito antes desta crise pandémica?

Tens toda a razão quando lembras que os espectáculos (ou performances, ou concertos, ou o que seja) não são feitos apenas com as pessoas que vemos, ou seja, os artistas, neste caso. Por isso é que as medidas anunciadas até ao momento, por parte do Ministério, revelam um total desconhecimento da composição do setor da cultura, que é muito vasto, e muito diferente entre cada setor. Precisamos de medidas que respondam, de forma imediata, aos trabalhadores do audiovisual, das artes performativas, artes visuais, ao setor livreiro, etc. Há mais de uma década que o orçamento do estado para a cultura é altamente insuficiente. O sindicato CENA-STE divulgou há uns tempos (antes de tudo isto) um estudo que fez aos trabalhadores do espetáculo que revelou que uma grande dos trabalhadores vive no limiar da pobreza. Concordo quando notas que já vivíamos em estado de emergência muito antes desta crise pandémica e penso que nunca é demais sublinhar que, não obstante as diversas possibilidades online que possamos encontrar, este foi um dos primeiros setores a suspender funções, sendo que foi obrigado a parar quase 100% da sua atividade. Já os teatros do país estavam fechados há uma semana quando se começou a fechar centros comerciais e escolas. Vamos ouvindo as notícias sobre outros países que já falam em abrir fronteiras e retomar algumas atividades, mas, em todas elas, a cultura aparece como uma atividade que não poderá retomar tão cedo. Falo das artes performativas em particular porque é a minha área, e a que conheço melhor. A base da nossa atividade é a copresença. Precisamos de habitar o mesmo espaço, estar próximos. E, por isso, sabemos que seremos uma das últimas áreas a poder voltar à normalidade. 

Que medidas imediatas deveriam ser implementadas? Parece-te bem a criação de um fundo de emergência para a cultura?

Como te disse antes, penso que as medidas deveriam ter em vista dois momentos: o imediato e o futuro. Porque não se pode pensar só em futuro se está em causa a sobrevivência das pessoas no presente. Por isso é que não faz qualquer sentido que as medidas sejam de apoio a hipotéticos projetos que iremos desenvolver mais à frente. Nesse sentido, as medidas poderiam ser articuladas com outros Ministérios como o da Segurança Social, por exemplo. Na reportagem que referi, contam-nos o caso inglês, em que os freelancers do setor poderão receber, durante três meses, cerca de 80% do seu rendimento médio mensal nos últimos três anos fiscais, por exemplo. Agora, é evidente que temos de preparar o terreno para quando tudo isto passar. A questão é que ninguém sabe quando será, e, muito menos, que mundo será esse. Ainda assim, é essa ideia de futuro que nos faz levantar da cama todos os dias e pensar, criativamente, nas respostas que a arte poderá dar a esse novo mundo. Esse tipo de propostas estão a ser pensadas por diversos agentes culturais. Há grupos de trabalho informais, associações representativas do setor ou ideias individuais que já foram remetidas ao Ministério. Tudo isso faz parte de um pensamento de política e estratégia cultural que deve ser feito entre o Ministério e os setores, é preciso é que haja abertura para esse diálogo. Passou um mês desde o anúncio do estado de emergência, e mais de um mês desde que o setor foi obrigado a parar por completo. Parece-me que está a passar tempo a mais para respostas tão parcas e (como assistimos na semana passada), por vezes patéticas. Este seria o momento ideal para se repensar na política cultural do país de forma estrutural. Necessitamos de um ministério forte, sólido, com poder político, e com vontade de criar um plano para as próximas décadas. 

Ainda que em suspenso, achas que pode haver exercícios de esperança presentes na arte ou na sua ausência?

Sim. E têm existido. Exercícios de esperança, de resistência, de reflexão e, claro, de ausência, também. Descobrir o que me faz falta tem sido uma aprendizagem sobre a minha relação com o teatro. Faz-me falta ver e fazer, ensaiar e descobrir em conjunto, almoçar de um tupperware numa escada de serviço enquanto passo texto com os meus colegas. Mas há exercícios de esperança que nos chegam em forma de arte e nos salvam o dia: um poema, um desenho que te enviam, um filme, um livro. Às vezes a esperança também aparece em forma de email, de chamada telefónica, ou de visitas surpresas à varanda. Como diz Nina Rizzi, historiadora poeta brasileira: "Eu sei que a alegria é uma resistência". 

E a resistência pode ser uma alegria, mesmo quando dói?

A resistência pode tudo, não é verdade? Pode ser alegre e trazer prazer. Mas também traz dor. Para mim, traz quase sempre dor. Há tantas formas de resistência quantas as pessoas que resistem, cada um resiste como pode, como sabe, como consegue. Acho muito importante respeitar a resistência que surge em forma de alegria, como a que surge em forma de silêncio. A solução não está sempre no ruído, mas o ruído é fundamental para a solução. Agora, mais do que nunca, devemos ser solidários com todos os que gritam e com os que calam. Ser solidários com os que pensam em grande escala e com os que só veem o dia seguinte. Os próximos meses prevêem-se difíceis e vazios. Será fácil cair na tentação de fraturar os setores, de usar a multiplicidade de opiniões para justificar a dificuldade de medidas que agradem a todos. E a isso também é preciso saber resistir. É que agora, mais do que nunca, é sobre não deixar ninguém para trás, e saber compreender a pele do outro, para o entendermos melhor, e para lutarmos por ele também.