Nos debates para as eleições europeias, um dos temas que tem merecido maior atenção é o papel do Banco Central Europeu (BCE). A atuação do banco central tornou-se um assunto incontornável desde que começou a subir as taxas de juro, que fez com que as prestações de boa pare dos créditos à habitação (indexados a taxas variáveis) disparassem nos últimos dois anos. A maioria dos partidos tem defendido a independência do BCE, com base na premissa de que a política monetária não deve ser definida pelo poder político. Mas raramente se discute o quão frágil - e pouco democrática - é esta ideia.
De onde veio a ideia da “independência”?
É importante ter em conta que esta é uma realidade relativamente recente em termos históricos. O paradigma dos bancos centrais independentes do poder político estabeleceu-se na década de 1970, com a ascensão do neoliberalismo. O objetivo era impedir que os governos interferissem no objetivo do banco central de garantir estabilidade de preços. Este paradigma baseou-se nas hipóteses de que existe uma relação inversa entre o desemprego e a taxa de inflação (uma relação que ficou conhecida como a “curva de Phillips”) e de que os políticos teriam tendência para querer reduzir o desemprego, sacrificando a estabilidade de preços por motivos eleitorais.
O problema estaria nas "expectativas". De forma resumida, o argumento é este: se os trabalhadores começassem a esperar níveis de inflação mais elevados no futuro, começariam a exigir maiores aumentos salariais, levando as empresas a aumentar os preços para poderem manter as suas margens, e assim sucessivamente. O resultado seria uma espiral inflacionista. Os economistas que defendem esta teoria concluíram que não se pode deixar a política monetária nas mãos dos governos. Sem interferência política, o banco central pode aumentar a taxa de juro para comprimir o investimento e o emprego e evitar a espiral inflacionista.
O "choque de Volcker", em 1979, é emblemático desta abordagem: para conter a inflação nos EUA, Paul Volcker, presidente da Reserva Federal, provocou uma subida expressiva das taxas de juro – que chegaram aos 18% – e um enorme aumento do desemprego que deixou marcas na economia norte-americana. A justificação foi a que hoje conhecemos: não há alternativa. Bernanke, que liderou a Reserva Federal mais tarde, disse que "Volcker passou a representar a independência [e] a ideia de fazer algo politicamente impopular mas economicamente necessário".
Nas décadas seguintes, a maioria dos bancos centrais passou a ser formalmente independente do poder político e a ter um mandato claro – manter a estabilidade de preços – ao qual se juntam, em alguns países, outros objetivos, normalmente vistos como secundários.
Os resultados foram positivos?
O facto de termos tido um período de baixa inflação nas economias avançadas foi visto como prova do sucesso dos bancos centrais. Mas há bons motivos para crer que não foi o caso: este fenómeno teve sobretudo a ver com a globalização (que permitiu o acesso a bens baratos) e com a supressão do poder negocial dos trabalhadores. Quebrar o poder dos sindicatos era, de resto, um dos objetivos assumido pelo próprio Volcker no combate à inflação nas décadas de 1970/80, que terá dito que o combate à inflação passava pelo combate aos sindicatos e que a austeridade monetária só terminaria quando os trabalhadores “percebessem a mensagem e se rendessem”.
Na verdade, todo o enquadramento teórico em que assenta a tese da independência dos bancos centrais é questionável. O historiador económico Adam Tooze resume de forma clara o problema de fundo: "As hipóteses sobre a economia nunca foram mais que uma interpretação parcial da realidade. A visão alarmista [sobre a espiral inflacionista] não era tanto uma descrição da realidade, mas sim um meio de impor a disciplina de mercado".
Nas últimas décadas, a relação entre o desemprego e a inflação parece-se cada vez menos com a hipótese da curva de Phillips. Recentemente, um estudo de dois economistas da Reserva Federal dos EUA, intitulado “Quem Matou a Curva de Phillips? Um Mistério Policial”, diz-nos que a quebra da relação inversa entre inflação e desemprego se deveu à erosão do poder negocial do trabalho.
A desregulação laboral e a crescente precarização do trabalho enfraqueceram de forma significativa a posição negocial dos trabalhadores e aumentaram a desigualdade na distribuição funcional do rendimento entre capital e trabalho. O próprio BCE contribuiu para esta tendência nos países intervencionados pela Troika, da qual fez parte em conjunto com a Comissão Europeia e o FMI, ajudando a promover e implementar a agenda da desregulação laboral em países como Portugal.
Ao contrário das hipóteses que estiveram na base da independência dos bancos centrais, níveis elevados de emprego não significam necessariamente maior inflação. Mario Draghi, que liderava o BCE, chegou a notar que “as reformas estruturais que reforçaram a negociação salarial ao nível das empresas podem ter tornado os salários mais flexíveis para baixo, mas não necessariamente para cima”.
Além disso, os aumentos salariais também não se traduzem necessariamente em aumentos de preços cada vez maiores: podem ser acompanhados pela evolução da produtividade e/ou por uma redução das margens de lucro das empresas.
A hipótese de que taxas de juro demasiado baixas levam a uma subida da inflação também caiu por terra na década anterior à pandemia: com os programas de compra de ativos, o BCE reduziu os juros para valores negativos sem sinal de pressões inflacionistas. A verdade é que não existe uma relação clara entre a política monetária e a evolução dos preços na economia, como se vê no gráfico em baixo.
A política monetária não é política?
Após a pandemia e a invasão russa da Ucrânia, com a subida da inflação na Zona Euro, o BCE voltou a recorrer à estratégia definida pelo seu mandato: subir as taxas de juro para encarecer o crédito e comprimir a procura na economia. O problema é que os dados disponíveis sugerem que a inflação teve pouco a ver com a procura e muito mais a ver com constrangimentos na oferta de produtos essenciais, com destaque para a energia e para outras matérias-primas, provocados por atrasos na reabertura de cadeias de produção e pela guerra. Além disso, os dados do próprio BCE indicam que os lucros cresceram mais do que os salários na maioria dos setores durante o surto inflacionista, mas isso não impediu o banco central de aumentar as taxas de juro para combater a inflação por via da redução da procura.
O grande problema da suposta “independência” do banco central está em assumir que as decisões sobre as taxas de juro são meramente técnicas. É que as opções de política monetária são tudo menos neutras, sobretudo do ponto de vista distributivo. Um aumento das taxas de juro tende a prejudicar os devedores, sobretudo os que se encontram nos escalões de rendimento mais baixos, e a beneficiar os credores, tipicamente nos escalões mais altos. É uma política que tende a beneficiar os mais ricos.
Em Portugal, a crise da habitação agravou-se com o aumento dos juros e das prestações: a prestação média vencida passou de cerca de €250 em 2020 para mais de €400 no início deste ano. Portugal é, de resto, o país onde as famílias foram mais afetadas pela subida dos juros, segundo um estudo do FMI. As decisões do BCE não só afetam de forma diferente grupos sociais diferentes, como têm impactos diferentes nos diferentes países da Zona Euro.
Além disso, estas decisões têm implicações que vão muito para lá do controlo da inflação: a subida das taxas de juro é, por exemplo, um sério obstáculo aos investimentos necessários para combater as alterações climáticas e promover a transição energética.
Como se vê, as opções do BCE estão longe de ser "técnicas". Não só assentam em premissas discutíveis, como têm enorme impacto na vida coletiva. A política monetária, tal como a política orçamental, é política. Mas, com um banco central independente do poder democrático, perdemos a capacidade de as influenciar e ficamos dependentes da decisão de estruturas não-eleitas.
O próprio limite que o BCE e boa parte dos bancos centrais definem para a taxa de inflação (2%) foi definido politicamente e não tem nenhuma justificação teórica sólida, ao contrário do que se possa pensar. É por isso que tem sido alvo de controvérsia mesmo entre os economistas convencionais. Nomes como Paul Krugman (nobel da Economia) e Olivier Blanchard (ex-líder do FMI) defendem que o limite seja aumentado e que os bancos centrais não recorram à subida dos juros a partir de um nível tão baixo de inflação, para evitar uma política monetária demasiado restritiva que provoque uma recessão.
As decisões do BCE estão longe de ser neutras ou técnicas. Bancos centrais independentes da deliberação democrática tendem a ser dependentes de interesses financeiros. Temos todos os motivos para abandonar este paradigma.