Habitação

"A propriedade é um obstáculo à satisfação dos direitos fundamentais". Entrevista a Pierre Cretóis

03 de outubro 2024 - 10:26

Por detrás da tensão entre o direito à propriedade e o direito à habitação está a ideologia proprietária, que afirma os proprietários como donos absolutos. Em entrevista exclusiva ao Esquerda, o filósofo francês Pierre Cretóis explica a complexidade desta ideologia e como desmontá-la.

porDaniel Moura Borges

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Pierre Cretóis
Pierre Cretóis. Fotografia do próprio.

A propriedade privada é uma questão central dos debates teóricos entre Marx e Proudhon. A abordagem da filosofia sobre a propriedade é por isso multi-facetada e em conflito permanente. Na base da organização social, ela está ligada com a propriedade imóvel, mas também com o trabalho e cada vez mais com outros modelos de rentabilidade.

O rentismo volta a todo o vapor no século XXI e isso faz-se sentir na vida das pessoas. A crise de habitação em Portugal é das principais tensões em torno da questão da propriedade. A relação de forças entre o direito à propriedade e o direito à habitação é ainda mediada pela ideologia proprietária.

Pierre Crétois é professor de filosofia política na Universidade de Bordeaux. Pensa, fala e escreve sobre a propriedade e os bens comuns. O seu trabalho inside sobre a análise da ideologia da propriedade desde John Locke até à atualiadade, e propõe um novo paradigma: a co-possessão do mundo.


A definição que Marx faz de propriedade privada estabelece-se como a base para a divisão social do trabalho e, portanto, a base da sociedade. De que forma é que o teu trabalho trata essa definição? 

A ideia é fazer uma crítica não-marxista à propriedade, mas isso não significa que eu não fale de Marx e que não concorde com essas análises. A minha abordagem é mais ampla. Sobre Marx, o que é interessante é que quando analisa a propriedade e quem a vincula ao trabalho, critica o facto de os proprietários dos meios de produção explorarem o trabalho de quem produz. Isso é bastante fiel à ideia de Locke, de que a única maneira legítima de adquirir algo é trabalhar. A isso chamo de ideologia proprietária. Marx joga a ideologia proprietária contra si mesma. A propriedade deveria vir do trabalho, mas no sistema capitalista a propriedade permite que as pessoas vivam sem trabalhar. Mas isso não é tudo o que há a dizer sobre a propriedade. É preciso tentar perceber por que razão, no debate público em particular, por vezes observamos uma espécie de sentimento de solidariedade e interesse entre pequenos e grandes proprietários. É que, por trás dela, há uma ideologia da propriedade e foi isso que me interessou. E não se trata apenas da relação de trabalho. Não é apenas sobre grande propriedade contra pequena propriedade, mas é sobre a nossa relação com a propriedade e era isso que eu queria estudar. É também por isso que não começo pela análise de Marx, mesmo que fale delas eventualmente.

Mas concordas que é uma relação social que estrutura a desigualdade. 

Sim. Em primeiro lugar, a ideologia da propriedade é a ideia de que o direito de propriedade é um direito natural, significa que é indiscutível no debate público de hoje e na mente das pessoas. A ideia de propriedade através do trabalho é típica da ideologia da propriedade, e Marx parte disso justamente para mostrar as contradições nessa ideologia. Em segundo lugar, há a ideia de que a propriedade é merecida, para que ninguém a possa contestar. Reparem que, cada vez que falamos de grandes fortunas como a de Elon Musk, tentamos sempre encontrar na sua biografia algo que explique porque é que são ricos: porque trabalharam e portanto merecem. Ignoramos o facto de que se são ricos, pode ser porque nasceram na família certa, foram para a universidade certa, está ligado ao acaso. Se são ricos, é porque há pessoas que trabalharam para eles, há pessoas que acreditaram neles. Em terceiro lugar, a propriedade dá todos os direitos aos proprietários. Ou seja, muitas vezes tem-se a impressão de que se pode fazer qualquer coisa com a propriedade. Usá-la, explorá-la, destruí-la, transformá-la, vendê-la, esses são os direitos que imaginamos ter quando possuímos algo. De que não devemos nada aos outros e de que ninguém tem o direito de interferir. E esse direito de exclusão é privilégio do proprietário. É muito importante na questão da crise da habitação, quando há muitas casas vazias e só porque as pessoas são proprietárias acham que têm o direito de impedir que alguém interfira, incluindo o Estado. Essas são as características da ideologia proprietária que ainda estão em ação hoje.

Achas que esta ideologia da propriedade se aprofunda à medida que entramos numa nova fase de concentração de riqueza e de rentismo?

Sim, isso é um problema. O século XIX, foi o século da renda. Marx fala sobre isso e Proudhon também. Ele vê a renda como o “direito ao lucro”. Achávamos que tinha desaparecido, mas está a voltar. Mas o que temos que ter em mente é que temos que desconstruir a ideologia proprietária. Mais uma vez, é essa solidariedade entre o pequeno e o grande proprietário. Vou dar outro exemplo. Em França, assim que há uma questão de direito sucessório, todos os proprietários dizem: “Não, as pessoas trabalharam para ter alguma coisa, têm o direito de a transmitir aos seus filhos”. Esta é a ideologia da propriedade. Eles não veem que a maioria dos proprietários são perdedores, uma vez que a herança cria desigualdades no crescimento das crianças, onde o mérito não conta. Essa é a injustiça da herança. Devemos começar por criticar a ideologia da propriedade para impor e fazer prevalecer a justiça social. Existe um problema de concentração da propriedade, mas a solução é apenas a redistribuição? Fazer de cada um proprietário, que às vezes é uma das soluções, ou pensar a propriedade de forma diferente? Eu acho que é pensar a propriedade de forma diferente e não necessariamente fazer de todos proprietários.

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Este rentismo não se resume à habitação. Vemos isso nas plataformas digitais ou até em serviços de carros. Está a começar a tornar-se omnipresente.

De facto, observamos que nas estratégias de vida, há pessoas que dizem para si mesmas: “Vou tentar acumular o maior número possível de bens ou propriedades o que me permitirá trabalhar menos depois”. Mas o dinheiro não vem por si só, vem precisamente do rentismo, que sempre foi o problema central da propriedade. Há um certo número de ideias que Marx tem em comum com Proudhon. Este tipo de foco na renda era uma ideia quase fixa de Proudhon e ainda é um problema hoje. Ou estamos em sociedades cooperativas e todos assumimos o ónus do trabalho coletivo, ou estamos numa sociedade de aproveitadores, numa sociedade de free riders onde as pessoas apenas tentam tirar o máximo partido da sociedade sem participarem no trabalho coletivo. E isso é um pouco o que somos. Mas a ideia seria fugir de uma sociedade rentista. Porque uma sociedade rentista é sempre uma sociedade em que algumas pessoas trabalham para outras. E isso baseia-se na nossa conceção da propriedade como um direito absoluto.

Pierre Cretois

Há uma ideia muito comum na sociologia francesa sobre a precariedade como uma nova norma social causada pela vulnerabilidade do trabalho e pela desregulação laboral. Relacionas isso de alguma forma com esta ideologia da propriedade privada?

Esse debate está um pouco sobrecarregado de argumentos que produziram uma espécie de topos, um lugar comum. Há, por um lado, os direitos de propriedade, por outro lado os direitos de uso. Penso que o que deve ser discutido é que os direitos são absolutamente garantidos às pessoas, mas não são direitos absolutos, São direitos que devem ser compatíveis com os direitos dos outros. Hoje uma das razões pelas quais as pessoas defendem o seu direito de propriedade é porque mesmo para os pequenos proprietários é uma proteção. Não é totalmente errado, mas há muitas outras maneiras de proteger as pessoas. O que está em causa é dar às pessoas os direitos que lhes são garantidos, que são direitos de propriedade sólidos, mas não absolutos. Então, mais uma vez, o problema é repensar a ideologia proprietária. Entendo a tua pergunta e ao mesmo tempo não aceito os termos em que ela é feita, porque prefiro propor uma mudança de pensamento.

Em Portugal, atravessamos uma profunda crise de habitação e temos visto movimentos populares a crescer. Achas que os movimentos pela habitação são a pedra angular para repensar a propriedade?

A questão da habitação permite-nos compreender o que está em jogo com a propriedade. O que as pessoas querem é um teto sobre as suas cabeças, para terem privacidade, para terem conforto. É isso que exigem as pessoas, quer sejam proprietárias ou não-proprietárias. Quando pensamos sobre a questão do direito à habitação, colocamos a questão de saber qual é o direito fundamental que está por detrás. Não é a propriedade. Pelo contrário, vemos hoje em cidades como Lisboa que o direito de propriedade permite excluir as pessoas das casas vazias. A propriedade aparece como um obstáculo à satisfação dos direitos humanos fundamentais pelos quais se luta. Em França a propriedade é considerada um direito fundamental, absoluto, indiscutível. A habitação também permite levantar a questão da propriedade, uma vez que quando falamos de habitação, falamos muitas vezes de propriedade privada e também da cidade. Muitas vezes a cidade é uma soma de propriedade privada e é apenas um lugar de passagem para passar de uma propriedade privada para outra propriedade privada. Na verdade, a cidade não é suposto ser isso. É o lugar comum em que vivemos. As casas particulares fazem parte deste espaço comum. E a questão é como reapropriar este espaço comum. Temos de repensar os direitos a partir de um ponto de convergência, em vez de dizermos que a haitação é apenas um acréscimo de direitos privados.

O movimento social em Portugal não está a falar diretamente de propriedade neste momento. Mas existem outras formas de abordar esta questão de forma indireta, não?

Há muitas maneiras de moderar os preços dos arrendamentos. Sei que é feito em Portugal, mas nem sempre é aplicado porque as pessoas nem sempre sabem. Quando moderamos os preços das rendas, infringimos os privilégios do senhorio. É por isso que quando moderamos os preços das rendas há sempre um senhorio que está lá para dizer: “É o meu direito colocar a renda que eu quero”. Portanto esse controlo já é uma forma de atacar o privilégio da propriedade e de dizer que a propriedade é um direito subordinado em relação à justiça social. Este é um ponto que precisamos realmente de compreender, porque as pessoas imaginam que a propriedade é um direito que está ligado à sua pessoa e que se adquire através do seu talento individual. Que é apenas uma questão de negócios. Mas o direito de propriedade existe porque os outros concordam em respeitá-lo. E isso é uma relação social e um compromisso dos cidadãos uns com os outros. Portanto, não podemos dizer: “Eu faço o que quero sem perguntar a opinião dos outros”. Temos de pensar na condição geral e socialmente aceitável de garantir os direitos de propriedade, por exemplo, a moderação dos preços do arrendamento. Nas mesmas condições, quando uma habitação é definida como vaga, poderíamos definir a expropriação como uma forma de alojar pessoas que dela necessitam. Temos de atacar o privilégio proprietário para lembrar às pessoas que a propriedade é um problema público, não apenas um problema privado.

A habitação é a principal pedra-de-toque para esta discussão ou existem outros pontos de tensão em relação à propriedade que devem ser explorados?

Existem outras áreas. Sobre a questão do trabalho, por exemplo. Proudhon diz que o que o capitalista retém é o que é produzido pela cooperação. Paga aos trabalhadores o valor deste trabalho mas não devolve ao coletivo o que produz. Usa o exemplo do obelisco de Luxor, na Place des Invalides, que foi trazido para França durante as campanhas napoleónicas. Proudhon explica que este obelisco foi erguido por 1.000 granadeiros num só dia, e argumenta que se alguém fosse pago para trabalhar durante 1.000 dias não conseguiria construí-lo. Portanto, o produto é mais do que a soma de 1.000 dias de trabalho, é produzido pelo coletivo que se reúne. O que está em causa na partilha dentro de uma sociedade é o fruto de toda a cooperação. E esse argumento é também é maneira de fazer a justiça social prevalecer. De dizer a Elon Musk que trabalhou mas que o que tem foi adquirido através da cooperação com os outros. Então há uma dívida para com os outros. Outra questão é a dos bens comuns globais, especialmente com o aquecimento global. É também um ponto de viragem sobre o direito de propriedade porque também faz com que as pessoas percebam que a sua propriedade não é algo que as possa separar do ambiente em que estão localizadas. Porque o direito de propriedade moderno impôs-se através do fenómeno das enclosures no século XVII. E existe essa ideia de que o direito de propriedade é um direito de separar, de colocar cercas sem ter que prestar contas. A questão ambiental, na minha opinião, é tanto ou até mais do que a habitação, um ponto de viragem.

Mencionaste o argumento de Proudhon sobre o obelisco, mas há outro argumento anarquista sobre os meios de produção que se relaciona com a ideia de que tudo o que é construído na sociedade é baseado em conhecimento prévio formado por alguém. Nesse sentido, nenhuma empresa é realmente dona de um produto, ele é construído sobre um conhecimento humano coletivo.

Exatamente. Há uma questão de propriedade intelectual, ou seja, todo o conhecimento agregado de toda a humanidade que agora está globalizado. Para construir um produto hoje em dia é preciso matemática, engenharia, física. E tudo isso foi descoberto por várias pessoas diferentes. Por exemplo, um smartphone é um objeto que devemos estar cientes de que não é apenas propriedade privada, mas que há muito trabalho e cooperação em milhares de estudos. Queremos manter o modelo que é capitalista massivo? Com este modelo, podemos encontrar formas mais pequenas de cooperação em que as pessoas também têm poder para agir mas isso significa também renunciar ao que o capitalismo de massas produziu e ao que nos permitiu aceder.

A co-possessão pode ajudar-nos a imaginar uma sociedade diferente?

A ideia de co-possessão do mundo baseia-se no facto de que o que nos pertence faz sempre parte de círculos maiores. O que nos pertence não é apenas o resultado do nosso trabalho individual, mas da cooperação. E, portanto, concretamente, não há propriedade privada. O mundo é co-possuído. Isto é um facto e temos de partir dele para pensarmos nos direitos legítimos de todas as partes. São direitos relativos, parciais, democraticamente discutidos. Então é mais um tipo de método. Quando a propriedade privada surgiu, era também uma forma de os pequenos agricultores se protegerem do poder dos senhores feudais. Por isso, tinha um papel na emancipação, proteção e segurança. Não nego isso. Mas penso que hoje, precisamente por causa da crise ambiental e das várias crises sociais, temos de pensar numa mudança para um novo paradigma e partir da ideia de que o mundo é co-possuído para pensar nos direitos relativos uns dos outros. E acima de tudo pensar em termos de estrutura.

Daniel Moura Borges
Sobre o/a autor(a)

Daniel Moura Borges

Militante do Bloco de Esquerda.
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