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O culto da propriedade

A direita proclama-se campeã da liberdade mas olhando para a sua história encontra-se outra prioridade: a defesa secular da propriedade e dos proprietários. Por Ronan Burtenshaw.
Ilustração de Montse Galbany publicada no Tribune.
Ilustração de Montse Galbany publicada no Tribune.

Os textos filosóficos clássicos da Grécia Antiga que, de muitas maneiras, formam a base do pensamento político contemporâneo estavam obcecados com a questão da democracia. Isto não é surpreendente – não existia uma “Grécia” no tempo de Sócrates, Platão e Aristóteles mas uma série de cidades-estado governadas por ordens constitucionais rivais e distintas.

A mais famosa delas era a democracia de Atenas. Não era uma democracia no sentido contemporâneo, sendo ao mesmo tempo mais radical e mais limitada. Os seus participantes eram adultos, do sexo masculino, cidadãos – incluindo artesãos, mas não as mulheres, os escravos ou os estrangeiros, ou seja a maioria dos que residiam dentro dos limites da cidade. Mas era também uma democracia direta, a sua assembleia era composta pela totalidade dos cidadãos e os responsáveis escolhidos através de sorteio.

Ao escrever sobre a democracia ateniense nos anos 1950, o marxista trinidaniano C. L. R. James assinalou: “agora o burocrata médio do sindicato CIO ou deputado trabalhista britânico teria um ataque se lhe sugerissem que qualquer trabalhador escolhido ao acaso podia fazer o trabalho que ele está a fazer mas esse era precisamente o princípio diretor da Democracia Grega. E esta forma de governo é aquela sob a qual floresceu a maior civilização que o mundo já conheceu”.

Mas não era isto que acreditavam então muitos dos membros da elite proprietária de Atenas. Platão, um aristocrata que descendia do antigo rei da cidade, atacava o sistema democrático por “atribuir uma espécie de igualdade tanto aos iguais quanto aos desiguais”. Quando ele escreveu, o mundo grego estava em ebulição devido ao caos económico que se seguiu às guerras persas – e aspirações democráticas mais radicais estavam a começar a ganhar audiência.

Se era concedida igual participação na esfera política a todos os cidadãos, defendida-se, então porque é que deveriam ser toleradas enormes desigualdades na esfera económica? Uma série de contemporâneos de Platão, mais notoriamente Fáleas e Hipódamo, pegaram na questão – e propuseram que a propriedade numa cidade-estado ideal deveria ser redistribuída para garantir igualdade social. Estas contribuições são hoje pouco conhecidas e a democracia ateniense nunca instituiu quaisquer medidas para as concretizar mas o tema da relação da democracia com a propriedade mostrou-se muito influente.

Quando Aristóteles tocou na questão da democracia uma geração mais tarde, viu nela um sistema “no qual os pobres governam”. Numa democracia pura, defendia, os pobres teriam o poder de votar retirar a riqueza dos ricos. A democracia, portanto, não poderia co-existir com a pobreza – uma ou outra tinham de deixar de existir. Na sua Política, experimentou cada alternativa, desde exaltar as virtudes das monarquias e aristocracias até argumentar em defesa de uma espécie de proto-estado social.

No final de contas, conclui, um tipo de democracia pode ser aceitável, mas apenas se for limitada por uma legislação que restrinja qualquer ameaça indevida à ordem social. A sua conclusão foi amplamente adotada pelos teóricos da política posteriores e tornou-se a base do constitucionalismo moderno mas a questão que a motivou – como melhor proteger a propriedade das garras da democracia – assombrou várias gerações das elites futuras. De facto, tornou-se a base para aquilo que agora conhecemos como a política de direita.

O que a direita quer

Se perguntássemos hoje em dia a uma pessoa de esquerda o que define a direita, obteríamos provavelmente uma resposta confusa. Alguns iriam concentrar-se no fanatismo: os direitistas seriam caracterizados pelo racismo, sexismo, homofobia, xenofobia ou qualquer outro conjunto de visões preconceituosas. Outros ir-se-iam concentrar na Filosofia: ser de direita seria defender a tradição, a ordem, a hierarquia ou, em formas mais modernas, um individualismo cru.

Cada uma destas perspetivas contém uma certa verdade, mas nenhuma delas alcança a essência do tema. Durante séculos, o principal empreendimento da política de direita tem sido a defesa da propriedade – e este projeto, acima de todos os outros, tem estruturado os seus argumentos, construído as suas coligações, sustentado-a enquanto tradição política consistente ao longo de períodos de enorme mudança histórica.

É certamente verdade que a direita atual, como aconteceu no passado, é fonte de muito fanatismo. Mas isto não deve ser entendido simplesmente como preconceito pessoal ou falha moral dos seus defensores. Ao invés, é consistente com o projeto de defesa da propriedade através das relações privadas de dominação que cria: o proprietário de escravos, o colonialista, o capitalista, o marido, a família nuclear. Até mesmo nos casos em que se gastou muita energia especificamente para gerar modos de pensamento racistas – como no caso da eugenia, por exemplo – estes foram as mais das vezes exercícios de justificação de relações de propriedade e da expropriação violenta e despossessão que lhes está subjacente.

Nada é mais importante do que a propriedade. A direita defende a tradição apesar de ao mesmo tempo abraçar o capitalismo que produziu o maior período de mudança social e a mais profunda modernização do mundo jamais vista. Defende a ordem mas esteve sempre preparada para rasgar constituições em países tão variados como o Chile, o Irão e Espanha quando os governos eleitos ameaçaram interferir com as relações de propriedade. É a campeã do indivíduo e da meritocracia – até chegar a questão de saber se um trabalhador deve controlar o seu local de trabalho ou se isso é apenas para quem nasça milionário com base na sua linhagem.

Compreender a base proprietária da direita é essencial porque ajuda a desmistificar o que pode, de outra maneira, aparecer como uma tradição completamente difusa. Como, por exemplo, se poderia dizer que o libertarismo de direita partilha uma linhagem comum com o fascismo? E, porém, não é polémico sugerir que essa linhagem existe. Ludwig von Mises, um dos pais da escola económica austríaca, escreveu no seu livro de 1927, Liberalismo, que os fascistas estavam “cheios das melhoras intenções” e que o próprio fascismo era uma “improvisação de emergência” necessária de forma a proteger a civilização europeia da ameaça do socialismo. E não foi uma vez sem exemplo – Friedrich Hayek apoiou tanto Pinochet quanto Salazar enquanto “governos autoritários sob os quais a liberdade pessoal estava mais salvaguardada do que sob as democracias” e os Chicago Boys de Milton Friedman providenciaram o projeto económico para o próprio governo de Pinochet.

Não quero com isto dizer que os libertários são o mesmo do que os fascistas mas argumentar que algo fundamental os une – muito mais do que aquilo que une um libertário a um democrata – e isso é o projeto da defesa da propriedade.

O reconhecimento de Aristóteles do potencial de ameaça da democracia ao domínio da propriedade teve, de facto, eco direto na escrita de Hayek, na qual crítica o “democratismo” de muitos na sua própria tradição, que ameaça os direitos de propriedade ao exigir-se “poderes ilimitados para a maioria”.

Sem estabelecer a centralidade da propriedade, as definições da política de direita rapidamente se tornam confusas. Os direitistas não são apenas reacionários, ou então defenderiam ainda a instituição da escravatura. Nem se pode dizer que sejam apenas conservadores num sentido geral. Até porque não houve muito a ser conservado quando Margaret Thatcher destruiu as comunidades industriais da Grã-Bretanha ou quando os direitistas de hoje defendem as grandes empresas de combustíveis fósseis que estão a destruir o planeta. A direita é reacionária – e nada a motiva mais do que um movimento da esquerda a que se devam opor – tal como é conservadora. Mas apenas num sentido muito particular. Isto foi melhor sintetizado por Robert Peel, que foi fundador não de uma mas de duas grandes instituições de direita, o Partido Conservador britânico e a Polícia Metropolitana de Londres, quando disse que o seu objetivo era “mudar o que tem de ser mudado para conservar o que se possa”. E o que eles tentam conservar, em quase todos os casos, é a propriedade.

Campeões da propriedade

Na sua importante intervenção dos anos 1970, Lei, Legislação e Liberdade, Hayek expunha o argumento filosófico para esse culto à propriedade que hoje domina o pensamento de direita. “Não há dúvidas de que o reconhecimento da propriedade precede a ascensão de até as culturas mais primitivas”, alegava, “e de que certamente tudo aquilo a que chamamos civilização foi erguido na base dessa ordem espontânea de ações que possibilitou a delimitação de domínios protegidos de indivíduos e grupos”.

Aqui, Hayek desenvolvia as suas ideias a partir da tradição liberal clássica – aquela que primeiro desenvolveu uma teoria robusta dos direitos de propriedade. O seu pai intelectual era John Locke que acreditava que a propriedade antecedia os Estados e que era sujeito de direitos naturais que existiam para além de quaisquer condições da sociedade humana. A organização social deveria estar, tanto quanto possível, baseada nestes direitos ou, como Locke o colocava de forma sucinta “a preservação da Propriedade [é] a finalidade do Governo”.

Mas Locke não podia ser facilmente classificável como de direita. A sua teoria da propriedade era extremamente elástica. Para Locke, a nossa propriedade incluía coisas tão intangíveis como a nossa pessoa e a nossa consciência. “Cada pessoa”, argumentou famosamente, “tem a propriedade da sua pessoa; a isso ninguém tem direito a não ser o próprio. O labor do seu corpo e o trabalho da sua mão, pode-se dizer, são propriamente seus”.

Assim, quando identificamos a sua importância para a direita, o que queremos dizer com “propriedade”? A maior parte dos direitistas contemporâneos são lockeanos na sua visão da propriedade – ou seja, veem-na como um fenómeno trans-histórico, algo que sempre esteve presente na sociedade humana e precede qualquer forma de organização social. De facto, isto é verdade até para os conservadores mais tradicionalistas como Edmund Burke que coseu o conceito de direitos naturais à sua obra. Os seres humanos sempre comerciaram e trocaram e, por isso, sempre tiveram um conceito de propriedade que estruturou a hierarquia social.

O problema é que isto não era verdadeiro. Durante décadas, as correntes centrais da Antropologia trabalharam na base de que as primeiras sociedades humanas eram igualitárias e baseadas em pequenos coletivos. Mais recentemente, isso foi de certa maneira desafiado – com vozes dissonantes a defenderem que existiam algumas organizações mais hierárquicas e de larga escala. Pode não bater certo com a tese do comunismo primitivo de Engels mas há uma coisa que está provada: a propriedade privada tal como a conhecemos hoje não existiu durante a larga maioria da história humana.

Por esta altura, é importante fazer uma distinção. Dizer que a propriedade privada não existia não é dizer que não havia propriedade pessoal; parece que os caçadores-recoletores tinham as suas próprias roupas e posses com valor sentimental, tanto quando nós temos hoje. Mas a diferença entre a propriedade privada, que a direita defende, e a propriedade pessoal é um abismo. Pensemos desta forma: faz todo o sentido do mundo que uma pessoa possua a sua própria escova de dentes mas com que bases qualquer pessoa possui uma fábrica de escovas de dentes?

De facto, a maior parte da propriedade que existia nas primeiras sociedades humanas era comunitária – ninguém tinha qualquer direito exclusivo sobre ela. A propriedade, ao invés de ser um fenómeno natural, como Locke defende, é uma construção social, e, na verdade, uma construção social que foi introduzida com toda a luta e o sofrimento que lhes estão associados. Podemos ter abandonado a inocência da tese do “nobre selvagem” de Jean-Jacques Rousseau mas este estava certamente correto quando descreveu a violência provocada pelas origens da propriedade:

“A primeira pessoa que tendo colocado uma vedação à volta de uma porção de terra se lembrou de dizer “isto é meu” e encontrou pessoas simples o suficiente para nele acreditarem foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. De quantos crimes, guerras, assassinatos, misérias e horrores teria a raça humana sido poupada, se alguém tivesse derrubado as estacas ou enchido as suas valas e gritado para os seus semelhantes: “não deem ouvidos a este impostor. Estarão perdidos se se esquecerem que os frutos da terra pertencem a todos e a terra a ninguém!”

Paine versus Burke

A propriedade privada – a detenção de partes da própria economia – emergiu primeiro na vida humana com a instituição da escravatura. Isto foi seguido, em devido tempo, pela ascensão dos domínios de reis e imperadores, o cercar de terras comuns e a despossessão dos colonizados. Foram estas as bases através das quais a maioria da humanidade foi separada não apenas dos meios de produção mas mesmo de subsistência independente e o mundo foi dividido entre aqueles que vivem da sua riqueza e aqueles que vivem do seu trabalho. A esta luz, a direita não está tanto a tentar parar o progresso da história mas a tentar defender que as injustiças perdurem.

Obviamente, um mundo de riqueza concentrada não podia nunca ser uma coisa natural. Num ambiente verdadeiramente “natural” seria impossível a pequenas minorias de opulentos viver uma vida de luxo enquanto a vasta maioria labutava sem ter o básico necessário para uma vida decente. Sem a existência de um Estado, sem o exército e a polícia e os meios de coação, a ordem da propriedade não teria qualquer hipótese – as massas do povo não teriam aceitado tanta carência no meio da abastança, especialmente quando derivava de produtos do seu trabalho.

Para a esquerda, esta era a promessa da democracia. Para a direita, esta era a sua ameaça – e por isso conseguiram denegri-la como ideia durante uma parte da história humana. De facto, foi apenas com Tom Paine e o seu Direitos do Homem que o termo democracia deixou de ser usado predominantemente como pejorativo e se tornou outra vez uma aspiração popular. O livro de Paine foi escrito em 1791 na altura do tumulto da Revolução Francesa e de uma batalha intelectual como outro lockeano que tinha escrito um tratado assumindo uma visão turva dos acontecimentos: Edmund Burke.

Para Paine, a Revolução Francesa era uma oportunidade para “começar o mundo de novo”. Para Edmund Burke, isto era um conceito perigoso – as instituições e tradições que tínhamos herdado das gerações passadas tinham feito a sociedade avançar tanto que alterá-las seria um perigo. Nas suas Reflexões sobre a Revolução em França, Burke escreveu que a sociedade “se torna uma parceria não apenas entre aqueles que estão vivos mas entre aqueles que estão vivos, aqueles que estão mortos e aqueles que ainda não nasceram”.

Já muito se escreveu sobre a troca de argumentos entre Paine e Burke sobre noções abstratas de tradição. Mas que tradição, exatamente, estava Burke a tentar proteger? Ao longo das suas Reflexões guarda as suas invetivas mais amargas para as ameaças da Revolução Francesa à propriedade. Todo o caso, lamenta, era caracterizado por “grandes e violentas permutas de propriedade”. De facto, dedica uma secção inteira à “importância da propriedade” começando com estas linhas:

Acredite-me, Senhor, quem tenta nivelar nunca constrói igualdade. Em todas as sociedades que consistem em vários tipos de cidadãos, algum tipo deve prevalecer. Por isso os levellers estão apenas a mudar e a perverter a ordem natural das coisas; estão a carregar o edifício da sociedade colocando no ar o que a solidez da estrutura requer que esteja no chão”.

Aqui, Burke consegue capturar algo essencial ao pensamento de direita. A propriedade é projetada como um baluarte contra a igualdade. É, de facto, a base de todo o sistema de classe – a divisão do mundo entre quem tem propriedade e quem não tem. E, para a direita, este sistema não é um sistema de injustiça, opressão ou exploração, é um sistema de ordem natural e moral, algo que divide os merecedores dos que não merecem, os extraordinários dos vulgares.

Burke é explícito sobre este ponto.

“A ocupação de um cabeleireiro ou de alguém que trabalhe a fazer velas não pode ser questão de honra para ninguém – já para não mencionar muitos dos outros empregos mais servis. Tais tipos de homens não devem sofrer opressão do Estado; mas o Estado será ele próprio oprimido se for permitido, individual ou coletivamente, a pessoas desse tipo que governem. Nisto pensam que estão a combater o preconceito quando na verdade estão em guerra contra a natureza.”

Também não é apenas a sua profissão que deve excluí-los da governação. A sua relação com a propriedade é, mais uma vez, essencial. “A única maneira de garantir uma condução firme e moderada de tais assembleias é se tal corpo for composto de pessoas que sejam merecedoras de respeito na suas condições de vida ou de propriedade permanente.” O papel do governo era, como Locke escreveu, a preservação da propriedade. A Revolução Francesa perturbou essa ordem natural. “Seria de esperar que garantissem a estabilidade da propriedade, essas pessoas cuja existência sempre dependeu do que quer que fosse que tornasse a propriedade questionável, ambígua e insegura?”

A defesa de Burke da propriedade como a base essencial da sociedade e como algo que era meritocrático e derivado das diferenças inatas de capacidades provou ser altamente influente entre os pensadores de direita das gerações seguintes. Tem unido não apenas conservadores e reacionários mas também libertários e fascistas, cada um dos quais tende a ser mais críticos de outros aspetos dos escritos de Burke. A propriedade, mais uma vez, era o ponto de unidade da direita.

A tragédia do privado

A ideia burkeana – de que a propriedade é merecida e portanto que as suas vastas disparidades se justificam – pode preceder o capitalismo mas é sem sombra de dúvidas a sua fundação ideológica mais forte. De facto, o mito da meritocracia foi a arma ideológica mais poderosa de uma direita reanimada desde o colapso do socialismo de Estado. É, de maneira bastante inevitável, um disparate. De facto, é notável que se tenha mantido tão duradouramente até ao século XXI. Em 2017, um relatório do Credit Suisse sobre riqueza descobriu que, pela primeira vez, os 1% mais ricos do planeta detinham a maioria da riqueza do mundo. E que na outra ponta do espetro, 70% da população do planeta em idade trabalhadora, 3,5 mil milhões de pessoas detinham apenas 2,7% da riqueza mundial.

Entretanto, a pandemia da Covid-19 foi uma bonança para Jeff Bezos e a sua Amazon anti-sindical com a sua riqueza total agora a passar dos 150 mil milhões de libras. Para contextualizar, o trabalhador médio da Grã-Bretanha, que ganha 30.000 por ano, precisaria de trabalhar quase cinco milhões de anos para conseguir tal quantia (e isto antes de impostos) – a mesma quantidade de tempo que passou desde que os nossos primeiros ancestrais humanos apareceram na Terra.

Esta é a verdadeira tradição da direita: defesa de impérios de propriedade em crescendo que obscurecem o curso inteiro da história. Mas que tipo de disparidade de capacidades poderia justificar estas desigualdades? Quão extraordinários teriam os nossos nossos governantes de ser para nos fazer acreditar que uma pessoa poderia valer mais do que 3,5 mil milhões de outras ou de que seria possível merecer ganhar no espaço de uma vida o que outra pessoa precisaria de gastar milhões de anos para conseguir alcançar?

E, contudo, a direita defende mesmo isto com uma cara séria. Eles dirão: “que preço pode ser colocado num génio que faz a humanidade avançar?” É um argumento fraco. Como demonstra o trabalho de Mariana Mazzucato, as inovações mais significativas da nossa economia são financiadas publicamente – por outras palavras, os riscos são socializados, as recompensas privatizadas. Mas ainda que tal não fosse o caso, a posição da direita comete uma petição de princípio: será a propriedade da economia por um pequena mão cheia de pessoas a melhor forma de fazer expressar o vasto recurso de génios da humanidade?

Um mundo em que a maioria não tem verdadeiramente uma palavra a dizer sobre as suas vidas de trabalho e é ao invés forçada a arrendar-se aos ricos para sobreviver é um mundo em que o génio é habitualmente desperdiçado. Como o escritor de ciência Stephen Jay Gould escreveu uma vez: “estou menos interessado no peso e nas convoluções do cérebro de Einstein do que na quase certeza de que pessoas de igual talento viveram e morreram nos campos de algodão e nas fábricas exploradoras.” O próprio Einstein, claro, sentia o mesmo – e era um socialista.

Mas até isto é dar à direita demasiado crédito. Como é que o argumento sobre o génio e a inovação se manteria num mundo de vasta riqueza herdada? De acordo com as estatísticas do HMRC, mais de um quarto da riqueza (28%) do Reino Unido é herdada – uma estatística que é menos surpreendente se considerarmos que apenas 1% de todas as pessoas detêm metade de toda a terra em Inglaterra, passando-a de geração em geração não apenas durante décadas mas durante séculos como parte da tradição atrasada aristocrática do país.

Para além disso, que inovação é derivada de um setor imobiliário que cada vez mais parece um casino dirigido por especuladores – no qual uma propriedade pode acumular vastas somas de dinheiro de renda ou duplicar o seu valor no mercado sem qualquer investimento do seu dono. Contudo, no Reino Unido de hoje, a investigação da Resolution Foundation descobriu que 36% do total da riqueza está ligada a tais processos. A casa, como eles costumam dizer, ganha sempre.

Por vezes há argumentações intelectuais em defesa da propriedade privada. Talvez a mais duradoura seja a que que William Forster Lloyd na “Tragédia dos Comuns” tornou uma fábula. Se um recurso for possuido em comum, diz essa lógica, vai ser inevitavelmente depauperado porque nenhuma pessoa individualmente tem incentivo para o proteger, sustentar ou reabastecer. Seria assim de esperar que a vastidão de terras comunitárias que existiram ao longo da história humana fossem terras devolutas e desertos – com a irresponsabilidade dos camponeses de ideias socialistas a produzirem crises ecológicas profundas. Na realidade, tem sido precisamente a era da propriedade privada que tem coincidido com o maior dano ambiental na história da humanidade – desde a crise climática ao saque da Amazónia e à devastação dos oceanos. Ao contrário do tempo de Forster Lloyd, não precisamos de imaginar enormes desastres ambientais, vivemo-los. E são o resultado direto desse sistema económico que resultou da apropriação de terras.

Mas, apresenta-se a última linha de defesa, que incentivo ao crescimento, ao desenvolvimento, à melhoria? Outro filósofo, Jeremy Bentham, defendeu a propriedade de forma utilitária nesta base. “Quem não tem esperança de colher não se dará ao trabalho de semear”. De alguma forma, tal pode ser verdade – as pessoas prosseguem os seus interesses na esfera económica. Mas os interesses da classe proprietária são prosseguidos à custa da classe trabalhadora numa medida em que milhares de milhões semeiam para apenas uma mão cheia colher.

No final de contas, isto clarifica a missão da direita. A defesa da propriedade não é fundamentalmente um exercício intelectual, baseado na argumentação. Tem a ver com defender os interesses de uma classe e de um sistema. E é nestes termos que os socialistas a devem combater.

Um mundo novo

Se queremos derrotar a direita nos anos e décadas que se seguem, não o faremos contornando as arestas da nossa ordem social. Vivemos hoje dentro de uma grande máquina proprietária na qual os recursos abundantes de um planeta frutuoso são acumulados por muito poucos – cujo único propósito, por sua vez, é usar a sua riqueza para acumular ainda mais riqueza. Mas as engrenagens desta máquina giram por causa do músculo de milhares de milhões de trabalhadores que poderiam igualmente despachá-la para o ferro-velho da história e construir algo mais valioso em seu lugar.

O nosso trabalho, como socialistas, é dar-lhes coragem para isso. O esquema do “direito a comprar" da Thatcher é um exemplo de uma das maneiras como a classe trabalhadora pode ser seduzida pelo canto de sereia da propriedade – contudo, décadas mais tarde, as seis pessoas mais ricas do Reino Unido detêm tanta riqueza quanto 13 milhões das menos ricas. A ideia de um sistema capitalista que iria dispersar a propriedade na sociedade em vez de a concentrar era uma mentira e em vez de repetir argumentos acerca de aumentar o número de proprietários ou converter os cidadãos em acionistas, devemos contestar a base sob a qual tais mitos são construídos.

Isto significa argumentar contra o próprio sistema da propriedade privada. Isto não é algo para o qual a esquerda tenha estado preparada em muitas décadas, preferindo em vez disso deixar a arquitetura fundamental da propriedade privada da economia intacta. E frequentemente por uma boa razão: quando apresentamos tais argumentos, a direita responde histericamente – vão pintar um quadro no qual o nosso movimento quereria retirar bens aos trabalhadores, negando às famílias o direito às suas posses sentimentais ou concedendo a estranhos um salvo conduto para lhes invadir o espaço pessoal.

Mas nada desapropria tanto os trabalhadores quanto o capitalismo. Desapropria-nos dos frutos do nosso labor no trabalho, transformando-os em mercadorias e obrigando-nos a alugar-nos para sobreviver. Desapropria-nos em casa quando nos obriga a pagar rendas exorbitantes aos proprietários ou hipotecas aos bancos pelo direito a ter um abrigo. Desapropria-nos nas nossas comunidades quando rouba bens e serviços públicos construídos e sustentados por trabalhadores.

Esta é a base do profundo sentimento de alienação gerado pelo sistema de propriedade – o sentimento que desponta em cada pessoa que vive nesta terra de que as coisas que valorizamos nunca existem por si próprias mas são produzidas para obter lucro. E é aí, no ponto da produção, que os socialistas se propõem a desafiar a propriedade.

Fundamentalmente, opomo-nos não a uma pessoa possuir este ou aquele bem de consumo mas a alguém possuir toda a estrutura através da qual tais bens são produzidos: os próprios meios de produção. Na nossa batalha contra a direita, propomos abolir este mundo das coisas. Durante gerações, eles defenderam um sistema no qual a humanidade é feita para servir à propriedade. Construiremos um mundo onde ela serve a si própria.


Ronan Burtenshaw é editor do Tribune.

Publicado originalmente no Tribune Mag. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.

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