“Possa o feitiço virar-se contra o feiticeiro / quando a hoste de gente escorraçada / mudar a cidade onde quer ter morada / para mudar também o mundo inteiro” cantava-se à porta da assembleia municipal de Lisboa, junto à Avenida de Roma, por volta das 17h de sexta-feira. A multidão que ali se juntava pertencia ou vinha em solidariedade com o Movimento Referendo pela Habitação, que marcou a entrega das assinaturas para dar início ao processo legal de implementação do primeiro referendo por vontade popular na história de Portugal.
Enquanto uma pequena comitiva do referendo entrou no edifício da assembleia municipal de Lisboa para entregar as assinaturas, o grupo de apoiantes ficou cá fora, fazendo barulho e empunhando cartazes e faixas do movimento. Lá dentro, contavam-se cerca de 11 mil assinaturas recolhidas ao longo de dois anos. De fora, convivia-se em felicidade e havia um sentimento de alívio por um trabalho finalmente concluído. “No meio do processo nem refletimos, mas 11 mil assinaturas é muito trabalho”, ouviu-se alguém dizer numa conversa solta no meio da multidão.
“Há um sentimento de muita alegria”, disse ao Esquerda Raquel Serdoura, uma das porta-vozes do Movimento Referendo pela Habitação. “Depois de um ano e meio a recolher assinaturas na rua, estamos de coração cheio”. É um exemplo que é dado a todos os movimentos cidadãos, de que é realmente possível mobilizar para transformar e “cria esperança”.
Lisboa
Como o Movimento Referendo pela Habitação constrói esperança contra a especulação
Mas a luta ainda agora começou e, como avisa Raquel, “ainda temos um longo caminho pela frente”, porque a entrega das assinaturas é só a primeira fase do processo. Agora, deverá ser constituída uma comissão na assembleia municipal que se encarregue de agilizar o processo, sendo depois votada a proposta de referendo nessa assembleia. Se for aprovado na assembleia municipal, seguirá então para o Tribunal Constitucional, onde as perguntas a referendar e as assinaturas serão avaliadas, e só depois disso pode ser marcada a data do referendo.
Mas os ativistas do movimento estão a celebrar a vitória e otimistas em relação ao futuro. “Estamos a entregar as assinaturas de milhares de pessoas que querem que este referendo aconteça”, afirma a porta-voz. “Esperamos que o referendo se realize na primavera de 2025”.
E antes da realização do referendo, há uma campanha a fazer a favor do “Sim”. Mas nem por isso os ativistas se mostram intimidados. “Vai ser árduo, sabemos que a nossa proposta não agrada a toda a gente, mas esperamos que com trabalho e dedicação e movidos por esta vontade de mostrar uma Lisboa para todas as pessoas, vai ser possível”, diz Raquel, e para ganhar coragem, olha para trás. “Uma parte do trabalho já está feita”.
De qualquer das formas, simplesmente ao fazer o referendo, o movimento já afirmou e fez passar a sua mensagem. A de que Lisboa não é só para “aqueles que têm muito”, mas para a de toda a gente. Uma cidade “para quem mora nela”.
Marco Seabra não pertence ao Movimento Referendo pela Habitação, mas veio à entrega das assinaturas em solidariedade, e porque concorda com Raquel. “É uma causa que todos os lisboetas têm sentido nos últimos tempos”, diz. “O aumento das rendas devido à turistificação da cidade”.
“Se o referendo vencer reduz o número de alojamentos locais na cidade, o que vai colocar essas casas no mercado de habitação e vai reduzir o preço das rendas”, explica. Quando começar a campanha, Marco quer mobilizar-se para ajudar a que o “Sim” ganhe e para isso juntar-se-á às dezenas de pessoas que têm trabalhado com o referendo nos últimos anos.
A ajuda que quer dar, é em parte para conseguir combater os interesses económicos que, do outro lado, vão fazer pressão para que ganhe o não. “Acho que o lobby do Alojamento Local vai investir massivamente na campanha contra o referendo e têm muito mais financiamento”, explica. “Vai ser preciso combater a desinformação, estar na rua, falar com as pessoas diariamente sobre este assunto”.
São preocupações para o futuro que se avizinha, mas o referendo já conseguiu agregar muitas pessoas para construir este movimento. Por enquanto, nesta sexta-feira, convive-se, ri-se, fala-se e os ativistas estão satisfeitos com o seu trabalho. A comitiva sai de dentro do edifício da assembleia municipal passado uma hora, e anuncia que a comissão do referendo será constituída na assembleia municipal de dia 19 de novembro. Toda a gente bate palmas em alegria, é o som de história a ser feita.