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Por que abdica agora Juan Carlos? Por Luís Sepùlveda

Com a sua abdicação, Juan Carlos não presta um serviço a Espanha. Oferece à casta política um tempo precioso para responder à voz cidadã que, numa percentagem importante da população, disse basta de não nos consultarem, queremos um referendo para dizer soberanamente se continuamos como monarquia ou fundamos a terceira República.
Dezenas de milhares de pessoas manifestaram-se em mais de 100 cidades pelo referendo à monarquia em Espanha – Foto da página do Podemos no facebook

Para entender o que ocorre em Espanha precisamente hoje segunda-feira 2 de junho há que retroceder apenas pouco mais de uma semana e ver o resultado das eleições europeias.

As duas maiores formações políticas, o Partido Popular que governa com uma esmagadora maioria absoluta obtida em 2012, e o Partido Operário Socialista Espanhol que está na oposição depois da derrota eleitoral do mesmo ano provocada pela sua péssima gestão da crise, perderam em conjunto mais de cinco milhões de votos no que foi algo mais do que uma chamada de atenção.

Com um governo que, por contar com uma maioria absoluta esmagadora fez retroceder a Espanha em matéria de direitos a tempos que se supunham superados, impulsionou uma série de reformas e de cortes que fizeram cair todo o peso da crise na cidadania, com o custo de seis milhões de desempregados, 25% da população ativa e no caso dos menores de 35 anos com uma taxa de desemprego que supera os 50% em muitas regiões do Estado autonómico, com leis repressivas que limitam o livre exercício dos direitos elementares, e com uma oposição mais preocupada em não molestar o governo do que em denunciar as medidas causadoras da pobreza e até da miséria que reina em Espanha, os cidadãos começaram a pensar, entenderam que dar essa maioria absoluta ao PP tinha sido mais do que um castigo ao PSOE, tinha sido um verdadeiro exercício de auto-flagelação, e nas eleições europeias fizeram aumentar notavelmente os votos da esquerda, sobretudo os votos de uma força nova, cuja ação junta toda a indignação da juventude, dos desempregados, dos jovens que se veem obrigados a emigrar, das mulheres que veem restringido o direito a decidirem sobre o seu próprio corpo, dos deficientes que foram abandonados à sua sorte, dos professores que viram o ressurgimento do Estado confessional nas escolas, dos juízes afastados dos seus cargos por se recusarem a prevaricar, dos que perderam as suas casas mas que ficaram com as dívidas, de todo um enorme espectro social afetado pela política neoliberal do governo e pela incapacidade e inutilidade da oposição.

Nas eleições europeias os cidadãos fizeram aumentar notavelmente os votos da esquerda, sobretudo os votos de uma força nova, cuja ação junta toda a indignação da juventude, dos desempregados (…) Essa nova força política emergente chama-se PODEMOS integram-na cidadãos e cidadãs em assembleias em que se pratica efetivamente a democracia de base, e com um programa que contempla entre outras medidas uma auditoria da dívida pública

Essa nova força política emergente chama-se PODEMOS, integram-na cidadãos e cidadãs em assembleias em que se pratica efetivamente a democracia de base, e com um programa que contempla entre outras medidas uma auditoria da dívida pública, para determinar o que é justo pagar e o que não é, obteve com apenas quatro meses de existência mais de um milhão e duzentos mil votos.

Este resultado conseguiu uma estranha unidade híbrida entre o PP e o PSOE, que demonstraram sem a menor ambiguidade que são uma casta política, e além disso uma casta caraterizada pela corrupção no pior dos casos, e no melhor, pela falta de escrúpulos na hora de ignorar os evidentes conflitos de interesses. Não é casual que os ex-presidentes e ex-ministros dos governos do PP e do PSOE acabem como conselheiros de grandes empresas multinacionais, às quais serviram por ação e omissão enquanto desempenharam cargos públicos.

Mas a corrupção não afeta somente os mais altos cargos da casta política, generalizou-se afetando também a casa real. E isto aumentou a raiva e a indignação cidadã.

Uma análise simplista faria referência a um verdadeiro afastamento da política, assim quiseram apresentar o abstencionismo tanto a partir do governo como da oposição. No entanto o resultado das eleições europeias contradiz a análise simplista e demonstra que, ao se verem representados por um programa justo e progressista, a cidadania regressa à política e com entusiasmo.

Neste clima, hoje, quando a percentagem de aceitação da monarquia está em mínimos e com tendência a baixar, porque hoje mesmo seria tornada pública (e foi tornada pública há umas horas quase de maneira clandestina) uma resolução judicial que “desimputa” a infanta Cristina, filha do rei, da sua culpabilidade nos crimes de peculato, lavagem de dinheiro e outros crimes económicos, fazendo com que, de hoje em adiante, todo o peso da responsabilidade caia sobre o seu marido Iñaqui Undargarín. A infanta é inocente porque é infanta de Espanha. Isto, mais os gestos de irresponsabilidade do rei como ir caçar elefantes a um país africano em companhia da sua amante, e em plena crise, fez com que a cidadania começasse a se interrogar sobre para que diabo serve a monarquia.

Precisamente hoje, outro juiz, devia tornar público que há treze razões de importância, juridicamente corretas, que evidenciam a existência de uma contabilidade “b” no partido do governo, que serviu para fazer pagamentos ilegais, bónus, campanhas eleitorais e, sobretudo, para rechear com notas de quinhentos euros os envelopes que os dirigentes do PP receberam por baixo da mesa durante muitos anos, incluindo Mariano Rajoy quando era chefe da oposição. Precisamente hoje, o tribunal constitucional de maioria de direita, devia autorizar a reforma que limita o aborto e com uma curiosa recomendação: as mulheres que abortem não só devem ser penalizadas com cárcere, mas também com fortes multas.

Hoje, era de urgência inventar, lançar um espetáculo de luzes que desviasse a atenção. E a abdicação do rei conseguiu-o. PP e PSOE mais outras organizações de cunho ultra conservador, coincidem nas bondades infinitas do ex-monarca, e nas virtudes magnas de Felipe, seu sucessor.

Em todo um conjunto de declarações que são um descarado insulto à inteligência, a casta política une-se numa espécie de mensagem compartilhada de salvação nacional. Não há pão, mas há circo. Um circo que começa com a dramática alocução real anunciando que deixa a coroa, com os elogios ao salvador da democracia, com os louvores ao sucessor, com os preparativos do sarau, zarzuela ou como queiram chamar à verbena da coroação

Em todo um conjunto de declarações que são um descarado insulto à inteligência, a casta política une-se numa espécie de mensagem compartilhada de salvação nacional. Não há pão, mas há circo. Um circo que começa com a dramática alocução real anunciando que deixa a coroa, com os elogios ao salvador da democracia, com os louvores ao sucessor, com os preparativos do sarau, zarzuela ou como queiram chamar à verbena da coroação.

Com a sua abdicação, Juan Carlos não presta um serviço a Espanha. Oferece à casta política um tempo precioso, uma possibilidade de ganhar fôlego para responder à voz cidadã que, numa percentagem importante da população, disse basta de não nos consultarem, queremos um referendo para dizer soberanamente se continuamos como monarquia ou fundamos a terceira República.

Ninguém dúvida da simpatia do príncipe das Astúrias, nem de como que lhe assentam bem os uniformes. Também não está em dúvida a virtude maternal da princesa das Astúrias, nem a sua beleza ou o que quer que seja. O que está em dúvida é uma instituição anacrónica, opaca no seu modo de funcionar, não isenta de corrupção, e que para os cidadãos é um luxo folclórico demasiado caro. Juan Carlos abdica hoje, porque todo o Estado de que é chefe está em crise de credibilidade, incluindo a casa real. E porque o poder, porque a casta política imperante precisa de tempo para imaginar uma resposta à indignação cidadã que já se manifestou nas urnas exigindo mudanças radicais.

E enquanto escrevo isto, nas redes sociais são convocadas manifestações por um referendo, e as ruas enchem-se de formosas bandeiras republicanas.

Gijón, 2 de Junho 2014

Artigo de Luis Sepúlveda, publicado na edição chilena de Le Monde Diplomatique. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net

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Sobre o/a autor(a)

Escritor chileno. Reside atualmente em Gijón, Astúrias, Espanha.
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