Num almoço organizado pelo Conselho Interamericano de Comércio e Produção (CICyP) no luxuoso Hotel Alvear, em Buenos Aires, o libertariano presidente argentino Javier Milei proferiu um discurso na quinta-feira, num tom claramente eleitoral, no qual afirmou que as provas de corrupção que pesam sobre altos funcionários do seu governo fazem parte de “uma grosseira operação difamatória” por parte da “casta”.
No final do seu discurso, Milei disse que não iria “deixar-se intimidar pelos brutos e ignorantes” que criticam as suas políticas económicas. “Se não avançarmos, recuamos. (...) Vocês não podem jogar para empatar com os orcs. É preciso sair e ganhar sempre. É preciso ganhar em casa e é preciso ganhar fora”, concluiu. Ele também não se privou de classificar o governador de Buenos Aires, Axel Kicillof (kirchnerista), de “inútil esférico” porque “ele é inútil, não importa de que ângulo se olhe para o soviético”.
Argentina
Milei veta leis sociais e amplia tensão com oposição e pessoas com deficiência
Rodrigo Durão Coelho
Enquanto isso, o presidente do partido de extrema direita La Libertad Avanza (LLA, o partido de Milei) de Buenos Aires, Sebastián Pareja, chamou de “deficientes” e “energúmenos” aqueles que agrediram com insultos e pedras a caravana de Milei em Lomas de Zamora, o que provocou uma onda de repúdio por parte de vários líderes.“São tipos que são deficientes, estão fora da lógica que todos nós podemos entender”, disse Pareja.
Perceção
As consultoras estão a medir o impacto do escândalo junto das pessoas. Há um conhecimento generalizado sobre as gravações e as denúncias de Spagnuolo revelam-se verossímeis para uma boa parte dos inquiridos.
Uma sondagem realizada entre os dias 22 e 26 deste mês pela consultoria Trespuntoszero mostra o impacto negativo sofrido por Milei. Por um lado, quase 79% dos entrevistados estão cientes do luvasgate. Além disso, desse universo, 62,5% consideram que as gravações do ex-titular da Andis, Diego Spagnuolo, “refletem graves atos de corrupção no governo”. Apenas 32,8% dizem que se tratou de uma “operação”.
Até 57,9% consideram Milei responsável neste caso. Além disso, 59,3% consideram Karina Milei responsável pelas manobras ilícitas. Mas há mais um dado que deve preocupar a Casa Rosada em época eleitoral: a queda vertiginosa da imagem de Milei que, segundo a sondagem, está em terceiro lugar, atrás de Axel Kicillof e da ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner. É a primeira vez, desde que chegou ao poder, que a imagem do presidente fica atrás da imagem dos opositores.
Os subornos
A divulgação de áudios atribuídos ao ex-titular da Agência Nacional de Pessoas com Deficiência (ANDIS), Diego Spagnuolo, revelou as luvas que recebiam a secretária-geral da Presidência, Karina Milei — irmã do presidente —, o presidente da Câmara dos Deputados, Martín Menem, e o assessor presidencial Eduardo “Lule” Menem, Milei quis desviar a atenção e apontou para o kirchnerismo, que também associou às agressões à caravana eleitoral que encabeçou na quarta-feira na localidade de Lomas de Zamora.
Sem dúvida, o ataque ao presidente e à sua caravana deve ser repudiado, pois representa o pior da política e agita todos os fantasmas. O que não se compreende é a decisão dos seus assessores de expô-lo numa caravana no coração de um dos territórios mais identificados com o kirchnerismo, no contexto de extrema polarização com que o governo iniciou a campanha eleitoral da província de Buenos Aires, e após o escândalo das gravações do diretor da Agência de Deficiência (Andi), Spagnuolo, sobre a corrupção nos mais altos níveis do seu governo. A menos, claro, que o que se buscava fosse precisamente o que se encontrou, aponta o jornal Perfil.
Nas últimas horas, foram divulgadas mais gravações em que são mencionados Sandra Pettovello, a ministra de Capital Humano que ficou com a comida de milhares de refeitórios populares e famílias, Federico Sturzenegger, o ministro da motosserra, e Luis Pettri, o da Defesa.
Para os media, outro tema inexplicável é a primeira abordagem de Milei ao escândalo do “audiogate”: "Tudo o que ele diz (sobre o audiogate) é mentira. Vamos levá-lo (Spagnuolo) à Justiça e provar que ele mentiu”, enquanto era divulgada uma auditoria encomendada pelo Ministério da Saúde que detectou sobrepreços de 27% na compra de medicamentos de alta complexidade na ANDI, aparentemente pela farmacêutica Suizo Argentina.
Elisa Carrió, líder da Coligação Cívica de direita, definiu a irmã do presidente como a “figura mais obscura do governo” e afirmou que ela é ‘receptadora’ (das luvas) e que “é impossível que Javier Milei não saiba disso”.
Enquanto a fraude com a criptomoeda afetou a credibilidade pessoal do presidente, a revelação de supostas luvas no órgão que administra fundos sensíveis expõe a gestão libertariana a um golpe muito mais profundo: o fantasma da corrupção estrutural. Cresce o escândalo das luvas na Agência Nacional de Deficiência, e já são 110 mil as pessoas com deficiência cuja pensão foi suspensa em resultado de uma auditoria fraudulenta e da qual nem sequer há resultados públicos.
Milei também se dedicou a criticar os senadores e deputados que votaram contra várias de suas políticas de cortes. “Temos um Congresso sequestrado pelo pior da política argentina, ou seja, o kirchnerismo (...). Um Congresso que, temeroso de que acabemos com os negócios deles e de seus amigos, quer derrubar o Governo Nacional eleito por 56% dos argentinos”. Para o analista Rubén Armendáriz, parece que Milei está a fazer propaganda ao kirchnerismo.
Enquanto isso, o promotor Franco Picardi e o juiz federal Sebastián Casanello estão a tomar conta do caso e deverão determinar se a agência de deficiência recebia subornos, se Eduardo “Lule” Menem, braço político da secretaria-geral da Presidência, e um dos organizadores do La Libertad Avanza, arrecadava as luvas para Karina Milei, se se trata de financiamento ilegal de campanha ou, simplesmente, de enriquecimento ilícito no vértice do poder político.
Rubén Armendáriz é jornalista e politólogo, associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE). Artigo publicado no site do CLAE