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Os rumores são falsos – o neoliberalismo está bem vivo

Os recentes anúncios do fim do neoliberalismo como consequência da pandemia estão errados. Acabar com o neoliberalismo exigirá esforço e luta, não apenas crises económicas e políticas. Artigo de Mack Penner.
Foto Pascal Bitz/World Economic Forum/Flickr

Recensão do livro Market Civilizations: Neoliberals East and South, editado por Quinn Slobodian and Dieter Plehwe (Zone Books, 2022)


As recentes discussões sobre a suposta morte do neoliberalismo apresentam uma imagem espelhada das discussões passadas sobre o nascimento do neoliberalismo. Durante algum tempo, académicos, intelectuais e comentadores de vários tipos estavam inclinados a apresentar o neoliberalismo como um fenómeno principalmente anglo-americano, que teve o seu início no final dos anos 1970. Margaret Thatcher e Ronald Reagan foram os protagonistas principais das narrativas da política neoliberal, e Milton Friedman e Friedrich Hayek (austríaco, mas famoso principalmente por uma carreira baseada no Reino Unido e nos Estados Unidos), continuam a ser os mais conhecidos intelectuais do neoliberalismo. De facto, este quarteto figurou na capa de uma história notável sobre o “nascimento das políticas neoliberais”. Episódios de destaque na história do neoliberalismo em outros lugares, como no Chile de Augusto Pinochet, ainda foram apresentados em termos anglo-americanos na medida em que foram descritos (com bastante justiça) como uma imposição estrangeira.

De certa forma, esses dias já acabaram. Dificilmente qualquer estudo sério do neoliberalismo descreveria a ideologia, ou a sua história, como exclusivamente anglo-americana. A última década viu nascer, em todo o mundo, um grande interesse na história do neoliberalismo, e na sua prática. No entanto, nos debates que se mantêm sobre a “morte” do neoliberalismo, observamos um retorno dessa visão limitada.

Em 2016, uma nova rodada de obituários foi motivada pela eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, e pela votação do Brexit, no Reino Unido. Mais recentemente, durante o início do mandato de Joe Biden, comentadores profetizaram, ou até declararam, o fim do neoliberalismo. Às vezes, as provas para tais afirmações consistiam em pouco mais do que uma agenda progressista, mas não realizada, de Biden. Seria necessário esticar muito a imaginação para acreditar que, diante de hipotéticos desenvolvimentos legislativos num único país – e depois de quarenta anos sem nunca deixar desperdiçar uma crise – a era neoliberal finalmente encontrou a crise à qual não poderia sobreviver. Como se o neoliberalismo fosse incapaz de suportar os gastos sociais americanos provocados pela pandemia, houve um retorno ao espírito de provincianismo que marcou os debates sobre o neoliberalismo.

A dinâmica da mudança histórica

Acompanhando o conjunto de óbitos escritos desde 2020, também tem sido um lugar-comum fazer uma analogia da crise atual com a década de 1970. De um modo geral, quando essas analogias são feitas, os anos 70 são resumidos desta forma: crises, incluindo o fim do sistema de Bretton Woods, a crise do petróleo e a estagflação, que significaram o fim da era do capitalismo do pós-guerra. A ordem do pós-guerra deixou de funcionar. As ideias neoliberais tiveram a sorte de andar por aí – parafraseando Milton Friedman – e graças a certos políticos, intelectuais e empresários, acabámos numa “variante” neoliberal do capitalismo, que já dura há cerca de quarenta anos. Esta narrativa acerta em algumas coisas, mas erra noutras, nomeadamente quando tende a deturpar a natureza da transformação. A contrarrevolução neoliberal que surgiu na esteira destes eventos foi um processo histórico, e não um evento da noite para o dia.

Aqueles que anunciam a sentença de morte parecem ser ingénuos quanto à dinâmica da mudança histórica no meio de condições de crise. Por exemplo, mesmo se restringirmos a nossa visão e olharmos apenas para os Estados Unidos, o processo pelo qual o neoliberalismo surgiu foi ad hoc e prolongado. A financeirização da economia americana a partir da década de 1970, um aspeto fundamental de uma neoliberalização mais ampla, foi de facto resultado das tentativas dos decisores políticos para evitarem ter de assumir a culpa por lidar com as crises que enfrentavam.

Nos anos que se seguiram à suposta rutura neoliberal, os decisores políticos voltaram-se para o mercado para evitar assumir a responsabilidade pelos resultados distributivos. Os contornos da economia financeirizada que emergiu não foram completamente visíveis no imediato. Mesmo assim, a viragem para o mercado não foi inteiramente uma rutura histórica. Em vez disso, foi um processo que a historiadora Amy Offner descreveu utilizando o termo “classificação”: preservar as relações capitalistas de mercado durante as crises dos anos 70 significava manter alguns aspectos do capitalismo do pós-guerra, livrar-se de outros e, sim, adotar algumas novas ferramentas e estratégias. Na medida em que os recentes anúncios de morte querem declarar uma rutura limpa, estes falham ao não conseguir entender a confusão do desenvolvimento histórico.

Com a crescente prevalência de ilusões hipersimplificadas sobre o nascimento e a morte do neoliberalismo, a publicação de Market Civilizations, uma publicação editada pelo historiador Quinn Slobodian e pelo cientista político Dieter Plehwe, é bem-vinda. Através do seu tratamento dos “neoliberais do leste e do sul”, o livro mostra como o neoliberalismo interage com - e dentro de - outras dinâmicas históricas. Lendo os vários capítulos, é difícil ou impossível imaginar como o fim do neoliberalismo pode ser visto como um processo simples.

“Market Civilizations”

Inicialmente visto como um projeto intelectual criado no meio da crise do liberalismo dos anos 1930, destinado a defender o mercado como mecanismo supremo de ordenamento social e, eventualmente, como um projeto estatal de supremacia do mercado desde os anos 1970, a história do neoliberalismo nunca foi definida apenas pela disseminação. Por outras palavras, e para usar uma frase apropriada, o neoliberalismo nunca foi definido pela propagação de ideias e práticas dos centros metropolitanos para as periferias variadas. Como Slobodian e Plehwe escrevem na introdução, o neoliberalismo também, e em medida significativa, “emergiu de forma autóctone, gerado a partir de condições estruturais e conjunturas semelhantes”. O neoliberalismo, como tem sido praticado e pensado, tem sido um produto local e global.

Este caráter dual do neoliberalismo real resulta numa hibridização localizada. O neoliberalismo de um local provavelmente não será idêntico ao neoliberalismo de outro. Na Turquia, por exemplo, Esra Elif Nartok escreve que uma “conceção neoliberal do Islão” desempenhou um papel importante na adaptação do neoliberalismo à estrutura cultural do país, abrindo caminho para a sua adoção na década de 1980. No Japão, argumenta Reto Hofmann, os neoliberais alegaram ter “encontrado uma solução para reconciliar capital e comunidade”. Na medida em que as ideias neoliberais contribuem e têm contribuído para a política económica na Índia, elas são combinadas de forma ativa com outras tradições. “Mesmo onde o neoliberalismo não é hegemónico”, escreve Aditya Balasubramanian, “os neoliberais podem contribuir para os discursos políticos”.

As políticas do neoliberalismo também são diversas. A segunda parte do livro deixa isso bem claro com uma série de capítulos sobre o neoliberalismo na Rússia, China, Austrália e África do Sul. De um capítulo da coletânea realizada por Antina von Schnitzler, veja-se o caso sul-africano: após a revolta de Soweto em 1976, no qual centenas de estudantes que se manifestavam foram mortos pela polícia, uma crise política do apartheid exigia atenção urgente. Nas várias comissões criadas para lidar com esta crise, as ideias neoliberais foram influentes no amplo esforço para manter o domínio da minoria branca e, ao mesmo tempo, tomar medidas, como disse um participante na comissão, para “dar a todos os grupos uma participação no sistema”. O processo deparou-se com um problema persistente para os neoliberais: como é que a ordem espontânea do mercado pode ser criada ou alargada? O problema nunca foi resolvido. Mas no processo de tentar lidar com ele, pessoas como o economista Jan Lombard mostraram como o neoliberalismo era um “kit de ferramentas conceptual que poderia ser usado de forma flexível” de acordo com circunstâncias políticas particulares. O neoliberalismo nunca foi um projeto acabado.

Aplicações seletivas do kit de ferramentas neoliberais podem, em última instância, levar à superação do próprio neoliberalismo. No Brasil, surgiu uma forma de “ultraliberalismo” o qual, ao escolher seletivamente as margens do pensamento neoliberal, teve como efeito fazer o neoliberalismo parecer comum, ou chato, em comparação.

O impulso ultraliberal e auto-radicalizante encoraja a adoção de posições extremas para marcar pontos num contexto social que também valoriza muito as sensibilidades estéticas da juventude e da cultura pop. Esta não é simplesmente uma descrição do Bolsonarismo tardio, mas um relato de um processo em curso desde pelo menos meados dos anos 2000. Por que funcionou assim? Porque, como argumentam Jimmy Casas Klausen e Paulo Chamon, o neoliberalismo “é uma racionalidade de governo sobredeterminada pelas linhas de força geradas pelos legados oitocentistas de escravidão racial, clientelismo, heteropatriarcado e genocídio indígena, tal como a localização do Brasil no Sul Global.” Por outras palavras, por causa da relação entre as histórias globais e locais.

O neoliberalismo está morto, viva o neoliberalismo

Concluindo o livro, Plehwe declara enfaticamente que “a história do neoliberalismo ainda não acabou” e que “ainda podemos esperar mais volatilidade e ambiguidade do neoliberalismo, não menos”. Em ambos os casos, Plehwe está certo. O neoliberalismo mantém o seu domínio em termos da lógica do capitalismo global e no nível do “senso comum” ideológico, mesmo quando esse domínio é ameaçado ou pressionado, até enfraquecido, pela crise atual. Mas, como Market Civilizations mostra tão claramente, a natureza da existência contínua do neoliberalismo não é sempre a mesma em todos os lugares. O neoliberalismo está sujeito tanto a amplas tendências estruturais como a formas de pressão local que podem exercer essas tendências em direção a vários fins políticos e económicos.

Podemos esperar, então, que o neoliberalismo morra como viveu: de várias maneiras. Padrões estruturais do capitalismo global exercerão tremenda influência sobre o processo, no sentido de que traçarão os limites do possível, mas não dominarão totalmente. As condições locais desempenharão um papel fundamental na determinação da natureza do fim do neoliberalismo ou – a possibilidade deve ser considerada – a natureza dq sua existência duradoura.

Além disso, mesmo que o neoliberalismo esteja prestes a desaparecer, não devemos apoiar cegamente esse processo. Como Slobodian e Plehwe sugerem, o caso brasileiro pode ser um “prenúncio sombrio dos híbridos do pensamento neoliberal” por vir. O fim do neoliberalismo pode não ser um desenvolvimento inerentemente emancipatório.

O neoliberalismo pode não desaparecer facilmente nesse ocaso noturno. Mas, se isso acontecer, uma coisa é certa, e os neoliberais – que acreditam fundamentalmente em ordens orgânicas ou espontâneas – não vão gostar de ouvir isto: o fim do neoliberalismo tem de acontecer de forma ativa.


Mack Penner é escritor e doutorando em História na McMaster University. Artigo publicado em Jacobin. Traduzido por Marco Marques para o Esquerda.net.

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