Os gaguejares da história geralmente acabam em farsa, mas nem sempre ocorre assim. A sequência aberta em 2008 foi trágica. A maior crise financeira desde 1929 precipitou as economias do Atlântico Norte numa grande recessão, cuja onda de choque culminou, do lado esquerdo, no bloqueio monetário da Grécia e na rendição do Syriza e, depois, do lado direito, com a guinada de uma série países, incluindo os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, do extremo centro para um novo tipo de nacionalismo.
A sequência aberta no primeiro semestre de 2020 é já um cataclismo global que afeta os nossos sistemas sociais e políticos como um todo
A sequência aberta no primeiro semestre de 2020 é já um cataclismo global que afeta os nossos sistemas sociais e políticos como um todo. Em resposta à epidemia da covid-19, “o grande confinamento”, como lhe chamou o FMI, precipitou um deslocamento simultâneo das relações fundamentais do capitalismo globalizado. Queda do PIB, desemprego, explosão da pobreza, retrocesso do comércio internacional, congelamento de investimentos... De março a maio, no espaço de três meses, estas variáveis degradaram-se a uma velocidade inédita, com muita rapidez e muito mais força do que na década anterior.
Em 2009, o PIB mundial caiu 0,5% e deve cair 6% este ano. Para o conjunto da OCDE, a queda será de 7,5% e de até 11,5% para os países da zona euro. O retorno ao nível de produção de 2019 só é esperado em 2022 e apenas no caso de não haver uma segunda vaga da epidemia.
A violência da travagem foi uma grande lufada de ar para os ecossistemas. Mas, para o sistema capitalista, é um choque tão grande que qualquer forma de recuperação agora poderá ser caótica, frágil e prolongada. Enquanto isso, as aparências da normalidade mercantil continuam dependentes de uma intervenção dos poderes públicos, cuja amplitude evoca em certos aspectos as economias de guerra.
Década após década, a grande fadiga do capitalismo agrava-se
Do ponto de vista económico, a Covid-19 é, portanto, um evento de extraordinária importância. No entanto, a turbulência em que estamos não se limita a esse dramático momento. Os dados atestam uma longa tendência de queda da taxa de crescimento, desde os anos 1960. Década após década, a grande fadiga do capitalismo agrava-se. Brutalidade do acontecimento, tenacidade da longa desaceleração: é à luz desta dupla perspetiva que devemos pensar sobre a conjuntura.
Figura1: Crescimento do PIB nos países da OCDE desde 1961: dados anuais e médias por décadas (OCDE, previsão para 2020)
Global no neoliberal
Não existe uma "boa direção" para enfrentar um tal monstro, mas como temos que tentar nos orientar, comecemos com o que sabemos: o neoliberalismo, o campo de batalha que ele cobre e a maneira como o atual terremoto está a reconfigurar o terreno. A hipótese que quero defender é que esta crise sanitária, que se tornou uma catástrofe geral, marca a segunda morte do neoliberalismo.
O princípio da legitimação ideológica do neoliberalismo é a ideia de retribuição em função do rendimento no contexto de concorrência. Durante a última década, esse mito mobilizador ainda gesticulava. Em países como a França, o registo da austeridade e o da nação Startup produziram mesmo uma aceleração das “reformas”. Hoje, em certos aspetos, o mundo macroniano de depois lembra furiosamente o mundo de antes.
Em nome da proteção ao emprego, Muriel Penicaud promove uma epidemia de baixa de salários no âmbito dos “acordos de rendimento coletivo” ao nível das empresas. Ao mesmo tempo, os arranjos contabilísticos do governo têm o efeito de maximizar o ónus da dívida dos organismos de proteção social para torná-los mais frágeis. Em resumo, o aumento da mercantilização da relação salarial permanece na ordem do dia.
No entanto, se expandirmos o foco, é difícil não ver que o choque viral acelerou o deslocamento das imposições estruturais nas quais se move a acumulação de capital.
O núcleo do que Quinn Slobodian chamou de ordo-globalismo é a livre circulação de capitais. No início dos anos 1970, diante de um imponente bloco socialista e de uma onda de descolonização conquistadora, a prioridade para os defensores do capitalismo era a sua salvaguarda. Aos seus olhos, isso exigia ancorar as nações numa ordem internacional, cuja pedra angular deveria ser a proteção dos direitos e liberdades dos investidores.
Amputado de uma grande parte de suas capacidades económicas estratégicas pelas privatizações, o Estado também viu ser reduzida a sua margem de manobra orçamental
Os neoliberais da escola de Genebra inspiraram, assim, um sistema de governo de vários níveis. A economia globalizada apoia-se numa infraestrutura institucional que tem crescido consideravelmente, desde os anos 1980, por meio da ação da OMC, do FMI, do Banco Mundial, da União Europeia e, em geral, pela criação de densas redes jurídicas formadas por tratados de livre comércio, acordos de proteção dos investidores, acordos de propriedade intelectual e tribunais de arbitragem internacional. O efeito desta construção é isolar o jogo económico da tomada de decisões democráticas e manter a distância das lógicas estatais soberanas, um espaço autónomo para valorização do capital em escala mundial.
Esta mutação na ordem internacional foi acompanhada e reforçada, à escala nacional, pelas chamadas políticas neoliberais que se apoiam em dois pilares. O primeiro é o aumento da concorrência, que é alcançada através da desregulamentação e da abertura dos mercados nacionais, incluindo mercados financeiros, à concorrência estrangeira. O segundo é uma restrição da capacidade de ação das autoridades públicas. Amputado de uma grande parte das suas capacidades económicas estratégicas pelas privatizações, o Estado também viu ser reduzida a sua margem de manobra orçamental pela institucionalização da sua dependência financeira dos mercados.
Uma reviravolta em dois atos
Ocorrendo uma década após a grande crise financeira, a crise da covid-19 prejudica seriamente esse distanciamento entre a ordem capitalista globalizada e a ordem política do Estado nacional. O problema não é que a excessiva intervenção do Estado prejudique o funcionamento autónomo do reino económico. Pelo contrário, está a acontecer o oposto.
Com a Covid-19, a lógica concorrencial é presa em flagrante delito por não pertinência integral. Indivíduo vulnerável e grupo aeronáutico transnacional, cada qual busca a proteção do Estado
Após 2008, a incapacidade dos mercados financeiros para se governarem exigiu a mobilização geral do poder soberano monetário e orçamental. Como consequência, a década de 2010 foi marcada pelo selo da assistência em matéria de finanças, os mercados só mantiveram uma aparência de funcionamento normal à custa de uma adição dos esteroides monetários fornecidos pelos bancos centrais.
Em 2020, é o surgimento de um imperativo sanitário que torna possível a experiência traumática de que, quando é realmente importante, quando ocorre um acontecimento geral, os mercados não servem para nada. Com a covid-19, a lógica concorrencial é presa em flagrante delito por não ter pertinência integral. Indivíduo vulnerável ou grupo aeronáutico transnacional, cada qual procura a proteção do Estado.
A 29 de março, um lívido Boris Johnson, isolado atrás da sua câmara de escritório, prestou homenagem aos cuidadores e concluiu que “existe a sociedade”. Dizendo exatamente o oposto de Margaret Thatcher, confirma o fim de um período. A besta neoliberal era resistente, já não é mais. Obviamente, o facto deste decreto ter sido emitido por um primeiro-ministro britânico conservador é eloquente. Significa algo que é ao mesmo tempo muito simples e muito problemático para a esquerda. Para o capital, há um futuro para além do neoliberalismo.
É com a ideia de um capitalismo pós-neoliberal que devemos enfrentar a nova situação
É com a ideia de um capitalismo pós-neoliberal que devemos enfrentar a nova situação, cujas principais coordenadas são os limites do ativismo dos bancos centrais, o retorno do endividamento como uma questão essencial e as consequências da suspensão da regulamentação concorrencial.
A crise financeira não teve lugar
O centro de gravidade da gestão sistémica mudou com a reversão da relação de dependência entre mercados financeiros e poderes públicos. Não são mais principalmente os mercados financeiros que alocam recursos e sancionam, mas os Estados e os bancos centrais que sustentam os atores económicos, aliviando o constrangimento orçamental, graças a condições de crédito hiper acomodativas e a uma distribuição massiva de recursos financeiros e de garantias públicas.
Se, ao contrário de 2008, o desencadeamento da tempestade Covid-19 não pode ser diretamente atribuída aos mercados financeiros, estes obviamente não ajudaram a conter o choque
Os bancos centrais instruídos pelo precedente de 2008 foram rápidos a usar a bazuca. A partir de meados de março, a Federal Reserve dos Estados Unidos iniciou um programa ilimitado de recompra de títulos (dívida pública, dívida das empresas, dívida imobiliária, dívida dos autarquias locais, etc.). Na Europa, após uma falta inicial de controle, que por alguns dias deixou os italianos atónitos entregues aos especuladores, o BCE seguiu o mesmo caminho. O seu programa de recompra de dívidas de governos e empresas muito grandes supera o bilião (milhão de milhão) de euros, o que representa cerca de 8% do PIB da zona euro ou cerca de 3.000 euros por habitante. A isto acrescentam-se vários canais de apoio aos bancos, incluindo um relaxamento dos requisitos regulatórios.
Se, ao contrário de 2008, o desencadeamento da tempestade covid-19 não pode ser diretamente atribuída aos mercados financeiros, estes obviamente não ajudaram a conter o choque. Pelo contrário, a sua estabilização exigiu uma intervenção ainda mais massiva e rápida. A lei de Minsky do aumento paralelo da instabilidade financeira e da intervenção pública necessária para contê-la é, portanto, confirmada por este novo episódio.
Na medida em que as economias mergulhavam na depressão, é particularmente surpreendente que o crash da bolsa de março não tenha continuado. As bolsas de valores chegaram em junho a um nível de valorização muito alto, próximo do alcançado no início do ano, após uma década de aumento contínuo.
Esta recuperação no revés é a consequência direta de uma intervenção massiva dos bancos centrais. Num mundo em que a atividade está a entrar em colapso, os bancos centrais são um seguro para todos os riscos dos investidores. Protegem ativos financeiros, apoiando direta e indiretamente o valor de todos os ativos financeiros. Fornecem uma pré-validação política do capital fictício; os lucros esperados para o futuro são de alguma forma garantidos pelo soberano.
Dois mecanismos estão em andamento. Primeiro, comprando dívidas repetidas vezes sem prestar muita atenção à qualidade, os bancos centrais garantem que as grandes empresas não terão problemas de tesouraria a médio prazo. Então, ao secar os mercados de dívida e direcionar os rendimentos para o vermelho, fazem com que os investidores se mudem para os mercados de ações, o que mecanicamente apoia os preços das ações. E a comunidade financeira planeia pedir mais.
No Japão, o banco central já possui mais de 8% da capitalização de mercado do país e, no ano passado, sentindo a chegada dos ventos fortes, o fundo de investimento Blackrock pediu que o Banco Central Europeu comprasse ações diretamente. Afinal, o que os acionistas poderiam sonhar melhor do que saber que os seus ativos são garantidos sem mediação pelos bancos centrais?
Desfazer a dívida
O que distingue 2020 de 2008 é que, desta vez, as autoridades públicas assumiram o controle do essencial da vida económica e não apenas do setor financeiro
O que distingue 2020 de 2008 é que, desta vez, as autoridades públicas assumiram o controle do essencial da vida económica e não apenas do setor financeiro. Em abril, no auge do confinamento, Emmanuel Macron fez uma constatação sem adornos sobre esse tópico:
“Nacionalizámos os salários e o P&L (lucros e perdas) de quase todas as nossas empresas. (...) O desemprego parcial significa a nacionalização dos salários. Todos os planos de garantia ou de ajuda, o fundo alemão de 50 mil milhões, e o fundo francês de 20 mil milhões para comerciantes e outros, significam uma nacionalização das contas operacionais dos comerciantes e dos empresários".
Para evitar a “evaporação”, o capitalismo foi assim, de alguma maneira, suspenso; o sistema vive às custas do Estado. E isso está longe de ter acabado. Em França, como nos Estados Unidos e até na Alemanha, o patronato clama em altos gritos por mais apoio e adota um argumento impecavelmente keynesiano, como o presidente da Medef, Geoffroy de Bezieux:
“O endividamento dos Estados certamente aumentará. Mas, sem um estímulo massivo, a contração da economia ampliará ainda mais a dívida, pois haverá menos receitas fiscais. Apostamos que pagaremos a dívida recriando riqueza, não deixando a economia afundar".
Esquecida a analogia falaciosa entre o orçamento familiar e o orçamento do estado, devemos deixar o défice público disparar porque, devido ao seu efeito estimulante na economia, possibilita a redução da dívida.
A questão da dívida é candente, porque o mundo como um todo está com um nível de dívida muito maior do que em 2008. Zâmbia, Equador, Líbano, Ruanda e Argentina são apenas os primeiros nomes da lista de países em desenvolvimento à beira da suspensão de pagamentos. Mas o problema também surge nos países ricos. Os Estados da OCDE, cujas finanças ainda suportam os estigmas de 2008, experimentarão índices de dívida acima de 120% do PIB, um nível nunca visto desde a Segunda Guerra Mundial.
Os atores privados também estão expostos. As famílias, muitas das quais estão estranguladas pelo aumento do desemprego, mas também as empresas. Estas aproveitaram as taxas de juros muito baixas, nos últimos anos, e agora estão a correr para abrir linhas de crédito garantidas pelas autoridades para enfrentar a queda na atividade.
O debate sobre a anulação da dívida dos Estados, das famílias e das empresas, que já era central após 2008, retorna hoje com um vigor redobrado, mas com linhas divisórias que se movem
Este aumento da dívida significa que a economia já não enfrenta só dificuldades temporárias no acesso à liquidez, mas muito mais um problema estrutural de solvência, ou seja, a incapacidade de pagar dívidas. Como diz o CEO da Fidelity, um dos principais fundos de gestão de ativos, os recursos necessários para pagar os fundos públicos que as empresas receberam de governos ou dos bancos centrais são tão importantes que a dívida “ou será passada para lucros e perdas, ou então figurará no balanço, onde terá um efeito deprimente”. A finança exige que se passe uma esponja pela dívida das empresas sob pena de depressão.
O debate sobre a anulação da dívida dos Estados, das famílias e das empresas, que já era central após 2008, retorna hoje com um vigor redobrado, mas com linhas divisórias que se movem.
François Villeroy de Galhau, governador do Banco da França, é obrigado a dizer que "esse dinheiro terá que ser devolvido", algum dia após a emergência sanitária, após o relançamento económico e a retomada da atividade... Mas, se o JDD (Le Journal du Dimanche) escolheu fazer dessa frase o título do seu artigo, o coração não está lá. Na OCDE, a verdadeira fábrica das políticas neoliberais das últimas décadas, já não se acredita nisso. Laurence Boone, economista-chefe da instituição, considera o impensável:
“que o apoio orçamental seja financiado por meio de um aumento permanente da massa monetária, criada pelos bancos centrais, que poderia substituir os programas financiados pela dívida. Essa abordagem não deve criar medo da inflação enquanto o crescimento permanecer abaixo do potencial e a independência do banco central for respeitada. E tranquilizaria os mercados sobre a capacidade dos governos em apoiar a economia”.
Haveria, portanto, dinheiro mágico. Esse argumento já não é uma prerrogativa apenas dos defensores da teoria monetária moderna. Desbloquear recursos para combater a pandemia, facilitar a assistência domiciliar (anulação das dívidas, suspensão de faturas, rendimentos de reposição, etc.), empregar pessoas desempregadas... “Mas como o governo pagará por tudo isso?”, finge perguntar Pavlina Tcherneva:
“Não seria necessária uma pandemia ou uma guerra mundial para lembrar às pessoas que o governo dos Estados Unidos é autofinanciado. As instituições financeiras públicas dos Estados Unidos, o Tesouro e o Federal Reserve dos Estados Unidos garantem que todas as contas do governo sejam pagas, sem fazer perguntas”.
Para Boone, assim como para Tcherneva, nos países ricos, aqueles cujos governos estão endividados na sua própria moeda, a dívida pública não significa em si mesma pressão sobre os gastos públicos. As únicas limitações são as dos recursos realmente disponíveis: as capacidades, o estoque de materiais e máquinas, o estado do meio ambiente, a qualidade dos processos políticos e sociais…
Portanto, é muito razoável argumentar a favor da monetização do financiamento da economia, seja sob a forma de anulação da dívida pública pelo banco central europeu ou mesmo contribuições diretas em dinheiro aos cidadãos ou ainda uma moratória temporária sobre o endividamento das famílias e das empresas.
O retorno do político reprimido
Se o neoliberalismo é derrotado, lamentavelmente isso não acontece sob os golpes das mobilizações sociais vitoriosas. É um colapso interno
Se o neoliberalismo é derrotado, lamentavelmente isso não acontece sob os golpes das mobilizações sociais vitoriosas. É um colapso interno, o retorno do político reprimido que os seus fanáticos esperavam deixar de lado.
O ato mais sintomático é sem dúvida a decisão do tribunal constitucional alemão sobre o programa de recompra de títulos do BCE. Ao exigir que o BCE demonstre substancialmente que “os objetivos da política monetária perseguidos pelo PSPP [programa PSPP: um programa de aquisição de títulos soberanos em mercados secundários] não são desproporcionais em relação aos efeitos da política económica e orçamental resultante do programa”, o tribunal exige o impossível.
A política monetária não é separável da política económica como um todo porque as decisões monetárias têm efeitos consideráveis no emprego, na remuneração da poupança, nas finanças públicas, no valor dos ativos financeiros, nas desigualdades. É verdade que essa decisão foi inspirada por considerações conservadoras, mas a lógica do julgamento é implacável: um banco central independente não poderia fazer política.
Portanto, uma das duas coisas: ou o banco deve reduzir consideravelmente o seu intervencionismo; ou a sua ação deve estar sujeita à deliberação democrática. Como a primeira opção é impensável no contexto atual, é a independência do banco central, um dos mais belos troféus dos neoliberais, que volta ao banco dos réus.
No futuro imediato, isso força as instituições europeias a realizar um perigoso exercício de montagem para encontrar espaço para a ação. A possibilidade de um plano de recuperação do orçamento europeu resulta em parte desta situação de fragilização jurídica da ação do BCE. Isso leva a um aumento do poder fiscal e, portanto, a um aumento do poder político da União Europeia. Mesmo que essa eventualidade permaneça incerta e o alcance do movimento permaneça limitado, o tabu da mutualização caiu do outro lado do Reno, constituindo um primeiro passo no único caminho que permite escapar do desmembramento da União1.
Paralelamente, um discurso sobre soberania económica se faz ouvir cada vez com maior força. Após o nacionalismo desarticulado de Donald Trump, a União Europeia, por sua vez, mobiliza a retórica da ameaça chinesa para defender os seus interesses. Por razões de segurança nacional ou para salvaguardar a capacidade industrial, são impostas restrições ao investimento estrangeiro, um obstáculo à livre circulação de capitais e a participação pública em empresas estratégicas é cada vez mais frequente. Ao mesmo tempo, e na medida em que as disputas comerciais se multiplicam, os industriais exigem a implementação de um imposto sobre o carbono nas fronteiras.
É todo o edifício ideológico neoliberal que se está a desmoronar e o Estado ressurge como uma grande figura coordenadora
Mais anedóticas, mas reveladoras, “as pombas” - estes “empresários e investidores digitais franceses” que protestaram contra impostos com Hollande, agora, clamam por dinheiro público: o seu plano de redirecionamento exige que o Estado intervenha vigorosamente com investimentos em infraestruturas, injeções de capital, solicitações públicas e um amplo programa de formação da população.
Por trás dessas guinadas, há uma verdadeira desorientação das classes dominantes. Uma vez que os mercados financeiros já não são mais capazes de ser o quartel-general da coordenação económica, os sinais de preço que emitem já não podem pretender refletir o rendimento sob a pressão da concorrência. É todo o edifício ideológico neoliberal que se está a desmoronar e o Estado ressurge como uma grande figura coordenadora.
Depois do neoliberalismo
A sequência aberta em 2008 continua até hoje. É a crise do capitalismo neoliberal. Uma grande crise que constitui um momento intersticial entre duas configurações político-económicas. Os primos estadunidenses da escola de regulação falam sobre essas configurações de estruturas sociais de acumulação ESA (Social Structure of Accumulation-SSA). Uma estrutura social de acumulação deve, em regime capitalista, promover eficazmente a realização de lucros: as instituições garantem o crescimento económico, em particular estimulando a procura e estabilizam as relações de classes.
A grande crise do capitalismo neoliberal é a dos limites da regulação dominada pelos mercados financeiros globalizados. A situação dos últimos meses exacerba um dilema já evidente na última década nos debates sobre a grande estagnação
A grande crise do capitalismo neoliberal é a dos limites da regulação dominada pelos mercados financeiros globalizados. A situação dos últimos meses exacerba um dilema já evidente na última década nos debates sobre a grande estagnação.
Por um lado, como explica um administrador de fundos de investimentos aos seus acionistas, “o capitalismo sem falência é como o catolicismo sem o inferno”, por outras palavras, os mercados só podem ser eficazes se houver uma ameaça credível de fracasso. No entanto, o que as ajudas massivas às empresas, o acesso ilimitado ao crédito e as medidas monetárias excecionais fazem é justamente suspender a disciplina concorrencial. Privado do mecanismo de regeneração da destruição criativa, o capitalismo fica povoado por empresas zumbis com produtividade estagnada.
Por outro lado, a restauração da disciplina de mercado é inconcebível: enquanto muitas empresas estão hoje à beira da falência, qualquer aumento das taxas ou aperto da pressão orçamental precipitaria o sistema numa cadeia de falências e depressão cataclísmica.
O preço a pagar para superar simultaneamente a esclerose e a ameaça depressiva é tocar a centralidade dos mercados financeiros, isto é, o coração da lógica neoliberal
Do ponto de vista dos neoliberais, os anos de 2010 foram um período de espera preocupada, na esperança de que essa contradição pudesse ser superada graças a uma retomada do dinamismo. A crise atual marca o fim de tais fantasias. Não se sai de uma crise estrutural sem uma grande reestruturação institucional. O preço a pagar para superar simultaneamente a esclerose e a ameaça depressiva é tocar a centralidade dos mercados financeiros, isto é, o coração da lógica neoliberal. O que está em jogo neste momento é a definição de um novo regime de regulação económica no qual os Estados encontrem, de acordo com sua posição na cadeia imperialista, um papel central em detrimento dos mercados financeiros.
Como conclusão de The rise and fall of Neoliberal Capitalism (A ascensão e queda do capitalismo neoliberal), um trabalho publicado em 2015, David Kotz enfatiza que os Estados Unidos já experimentaram, no início do século XX e depois nas fases dos anos 1930, a alternância entre formas liberais e formas dirigidas de capitalismo. Segundo a sua leitura, hoje estaríamos nessa fase. Diante do beco sem saída da configuração neoliberal, o cenário mais provável é o de uma reorganização institucional que conduza à formação de uma regulação socioeconómica neodirigista. Contempla três cenários: uma ruptura ecossocialista que promoveria um novo modo de desenvolvimento, um renascimento social-democrata que levaria a uma redução das desigualdades, mas que colidiria com os limites ecológicos do produtivismo ou, então, uma re-regulação dominada pelo capital, no qual um fordismo de direita é uma figura possível…
A possibilidade de uma re-regulação do capitalismo pela direita continua a ser difícil de entender. No entanto, é possível arriscar duas observações.
Primeiro, deve-se notar que a re-regulação não implica, como tal, nenhum tipo de tendência progressista. Os danos do neoliberalismo às condições de emprego terão um impacto duradouro. A mercantilização da relação salarial pode até continuar a aumentar, mesmo que o setor financeiro fosse mais supervisionado, o crédito fosse redirecionado para os usos produtivos e o comércio internacional fosse mais controlado. O nacionalismo económico também pode ser fundamental na tentativa de neutralizar os conflitos de classe que enfraqueceriam ainda mais os direitos sociais.
Em segundo lugar, o ressurgimento da intervenção estatal carrega as sementes de uma intensificação do conflito político. De facto, embora a lógica do neoliberalismo tenda a esconder os mecanismos económicos por trás do fetichismo das trocas mercantis, a intervenção pública torna-os mais diretamente transparentes. Um maior autoritarismo nos cenários nacionais e um ressurgimento dos conflitos geopolíticos interestatais, preparados por enormes desequilíbrios internacionais, podem ser assim subprodutos do neodirigismo. E é assim que o internacionalismo e as batalhas democráticas recuperarão o traço anticapitalista do qual o neoliberalismo os privou.
Artigo de Cédric Durand, um dos principais representantes da atual escola marxista de economistas em França, professor da Universidade Paris XIII, publicado em Contretemps, a 6 de julho de 2020, traduzido para espanhol por Viento Sur, e para português por Cepat, para IHU Unisinos. Revisão para português de Portugal por Carlos Santos para esquerda.net
Nota:
1 É claro, o autoritarismo antissocial permanece, pois o acesso aos fundos europeus seria condicionado a medidas de competitividade. Aqui, novamente, encontramos a ideia de um acordo contratual evocado em 2012 no relatório Van Rompuy, que propôs que "as reformas estruturais fossem apoiadas por medidas de estímulo financeiro e levassem a transferências temporárias em favor dos Estados que sofrem de insuficiências estruturais excessivas”.