David Harvey sobre o que é o neoliberalismo exatamente – e porque o conceito é importante. Há onze anos atrás David Harvey publicou O Neoliberalismo. História e Implicações [A Brief History of Neoliberalism], agora um dos livros mais citados sobre a questão. Os anos desde então têm testemunhado novas crises económicas e financeiras, mas também novas ondas de resistência que frequentemente têm como alvo o “neoliberalismo” na sua crítica de sociedade contemporânea.
Cornel West fala do movimento Black Lives Matter como “um julgamento de poder neoliberal”; o falecido Hugo Chávez chamava o neoliberalismo de “caminho para o inferno”; e os líderes sindicais estão cada vez mais a usar o termo para descrever o ambiente mais amplo no qual ocorrem lutas laborais. Os media mainstream também adotaram o termo só para argumentar que o neoliberalismo realmente não existe.
Mas de que, exatamente, estamos a falar quando falamos de neoliberalismo? É um útil alvo para os socialistas? E como ele tem mudado desde a sua génese no fim do século XX?
Bjarke Skærlund Risager, um doutorando no Departamento de Filosofia e História das Ideias na Universidade Aarhus, sentou-se com David Harvey para discutir a natureza política do neoliberalismo, como tem transformado modos de resistência, e porque a esquerda ainda precisa de ser séria sobre a necessidade de acabar com o capitalismo.
Neoliberalismo é um termo amplamente usado hoje em dia. Porém, frequentemente não está claro ao que se refere quando as pessoas o usam. No seu uso mais sistemático, pode referir-se a uma teoria, um grupo de ideias, uma estratégia política ou um período histórico. Pode começar por explicar como entende o neoliberalismo?
Sempre tratei o neoliberalismo como um projeto político feito pela classe capitalista corporativa porque esta sentia-se intensamente ameaçada politica e economicamente no fim dos anos 1960 e durante os anos 1970. Desesperadamente queria lançar um projeto político que travasse o poder da classe trabalhadora.
Em muitos aspetos, o projeto era contrarrevolucionário. Conteria o que, na época, eram movimentos revolucionários no mundo em desenvolvimento – Moçambique, Angola, China, etc. – mas também uma maré crescente de influências comunistas em países como Itália e França e, em menor grau, a ameaça de um ressurgimento do que aconteceu em Espanha.
Mesmo nos Estados Unidos, os sindicatos produziram um congresso Democrata que era radical nas suas intenções. No começo dos anos 1970, juntamente com outros movimentos sociais, forçaram uma série de reformas e iniciativas reformistas que punham em causa os interesses dos grandes grupos empresariais: a Agência de Proteção Ambiental (EPA), a Administração de Saúde e Segurança Ocupacional (OSHA), proteções para consumidores, e um conjunto inteiro de questões que empoderavam a classe trabalhadora como esta nunca tinha sido empoderada antes.
Nesta situação, houve, de facto, uma ameaça global ao poder da classe capitalista corporativa e, portanto, a questão era: “o que fazer?” A classe dominante não era omnisciente, mas reconheceu que existiam várias frentes nas quais tinha que lutar: a frente ideológica, a frente política, e, acima de tudo, tinha que lutar para travar o poder da classe trabalhadora por quaisquer meios possíveis. Disso, surgiu o projeto político que eu chamaria neoliberalismo.
Pode falar um pouco sobre as frentes ideológicas e políticas e os ataques contra a classe trabalhadora?
A frente ideológica consistia em seguir o conselho de um homem chamado Lewis Powell. Ele escreveu um memorando no qual dizia que as coisas estavam a ir longe demais, que o capital precisava de um projeto coletivo. O memorando ajudou mobilizar a Câmara de Comércio e a Mesa de Negócios [Business Roundtable, a associação de executivos das maiores corporações dos Estados Unidos].
As ideias também eram importantes à frente ideológica. A conclusão na época era que era impossível controlar as universidades porque o movimento estudantil era forte demais e os docentes demasiado progressistas, então fundaram think tanks como o Manhattan Institute, a Heritage Foundation, a Ohlin Foundation. Esses think tanks trouxeram as ideias de Freidrich Hayek e Milton Friedman e a economia pelo lado de oferta.
A ideia era esses think tanks fazerem pesquisas sérias e alguns fizeram – por exemplo, a Agência Nacional de Pesquisa Económica (NBER) foi uma fundação privada que fez pesquisa extremamente boa e extensiva. Essas pesquisas seriam publicadas independentemente e influenciariam a imprensa e, pouco a pouco, cercaria e infiltrariam as universidades.
Esse processo demorou muito tempo. Penso que chegamos a um ponto em que não é mais necessária a Heritage Foundation. As universidades basicamente foram conquistadas pelos projetos neoliberais.
Em relação à classe trabalhadora, o desafio era fazer o trabalho “doméstico” competitivo com o trabalho global. Uma das formas era abrir a imigração. Nos anos 1960, por exemplo, os alemães estavam a importar trabalhadores turcos, os franceses trabalhadores do Magreb, os britânicos trabalhadores das colónias. Mas isso criou muito insatisfação e perturbação.
Em vez disso, escolheram uma outra maneira: levar o capital para onde a mão-de-obra barata estava. Mas para a globalização funcionar, tinha que reduzir tarifas e fortalecer o capital financeiro, pois o capital financeiro é a forma mais móvel do capital. Então, capital financeiro e coisas como a livre flutuação de moedas tornaram-se pontos críticos ao projeto de travar a classe trabalhadora.
Ao mesmo tempo, projetos ideológicos de privatizar e desregular a economia criaram desemprego. Então, desemprego no país e transferência de empregos para fora do país, e um terceiro componente: mudança tecnológica, desindustrialização através de automação e robotização. Essa era a estratégia de esmagar a classe trabalhadora.
Foi um atentado ideológico, mas também um atentado económico. Para mim, neoliberalismo era sobre isso: era um projeto político, e acho que a burguesia e a classe capitalista corporativa colocaram em prática pouco a pouco.
Não creio que começaram por ler Hayek ou algo do género, creio que intuitivamente diziam: “Temos que esmagar a classe trabalhadora e como fazemos?” E encontraram uma teoria legitimadora existente que apoiaria esse objetivo.
Desde a publicação do O Neoliberalismo. História e Implicações [em inglês] em 2005, muito já foi escrito sobre o conceito. Parece que tem dois campos: estudiosos mais interessados na história inteletual do neoliberalismo e pessoas que se preocupam com o “neoliberalismo atualmente existente”. Onde se encaixa?
Há uma tendência nas ciências sociais, que tendo a resistir, para procurar uma teoria singular das coisas. Então há uma ala de pessoas que dizem que o neoliberalismo é uma ideologia e escrevem uma história idealista dele.
Um exemplo disso é o argumento de governabilidade de Foucault que vê as tendências de neoliberalismo já presentes no século XVIII. Mas se você vê o neoliberalismo como uma ideia ou um conjunto de práticas limitadas de governabilidade, vai encontrar vários precursores.
O que falta aqui é perceber a maneira pela qual a classe capitalista orquestrou os seus esforços durante os anos 1970s e os primeiros anos da década de 1980. Acho justo falar que na época – no mundo inglês, pelo menos – os capitalistas corporativos se tornaram unificados.
Eles concordaram entre si sobre muitas coisas, como a necessidade de uma força política para os representar. Então, deu-se o controlo do Partido Republicano e uma tentativa de minar, até certo grau, o Partido Democrata.
A partir dos anos 1970s, o Supremo tribunal tomou muitas decisões que deixaram a classe capitalista corporativa comprar as eleições mais facilmente que no passado.
Por exemplo, surgem reformas de financiamento de campanhas que trataram as doações às campanhas como uma forma de livre expressão. Há uma longa tradição nos Estados Unidos de capitalistas corporativos comprarem eleições, mas agora essa prática foi legalizada ao invés de ser considerada como corrupção escondida.
Em geral, penso que esse período foi definido por um movimento amplo numa série de frentes, ideológicas e políticas. E a única maneira de explicar aquele movimento amplo é reconhecer o relativamente alto grau de solidariedade da classe capitalista corporativa. O capital reconheceu o seu poder numa tentativa desesperada de recuperar a sua riqueza económica e a sua influência, que tinham diminuíram a partir do fim dos anos 1960 e continuaram assim nos anos 1970.
Houve numerosas crises desde 2007. Como a história e o conceito de neoliberalismo nos ajudam a entendê-las?
Houve poucas crises entre 1945 e 1973; houve alguns momentos sérios, mas nenhuma crise grande. A viragem para políticas neoliberais ocorreu no meio da crise dos anos 1970, e o sistema inteiro tem sofrido uma série de crises desde então. E, é claro, crises produzem as condições de futuras crises.
Em 1982-1985, houve uma crise de endividamento no México, Brasil, Equador e basicamente todos os países em desenvolvimento, inclusive Polónia. Em 1987-1988, teve a grande crise nas instituições de poupança e crédito nos Estados Unidos. Teve uma crise ampla na Suécia em 1990 e todos os bancos tiveram que ser nacionalizados.
Então, certamente temos a Indonésia e Ásia Sudeste em 1997-1998, depois a crise mudou para a Rússia, Brasil e atingiu a Argentina em 2001-2002.
E existiram problemas nos Estados Unidos em 2001 que foram resolvidos tirando dinheiro da bolsa de ações e colocando-o no mercado imobiliário. Em 2007-2008, o mercado imobiliário implodiu, então deu-se a crise aqui.
Pode olhar num mapa do mundo e ver como as tendências à crise se movimentaram. Pensar no neoliberalismo é útil para entender essas tendências.
Um dos maiores movimentos de neoliberalização foi a demissão de todos os keynesianos do Banco Mundial e FMI em 1982 – um saneamento total dos assessores económicos que tinham ideias keynesianas.
Foram substituídos por economistas neoclássicos do lado da oferta e a primeira coisa que fizeram foi decidir que a partir de então o FMI deveria seguir uma política de ajuste estrutural sempre que surgisse uma crise.
Em 1982, certamente, houve uma crise de endividamento no México. O FMI disse: “Vamos salvar-te”. Na verdade, o que o FMI fez foi salvar os bancos de investimento de Nova York e implementar uma política de austeridade.
A população de México sofreu algo como uma perda de 25% do seu padrão de vida nos quatro anos depois que se seguiram a 1982 como resultado das políticas de ajuste estrutural do FMI.
Desde então, houve quatro ajustes estruturais no México. Muitos outros países tinham sofrido mais do que um. Essa tornou-se uma prática padrão.
O que estão a fazer na Grécia agora? É quase uma cópia do que fizeram no México em 1982, mas só mais sofisticado. Isto é o que também aconteceu nos Estados Unidos em 2007-2008. Salvaram bancos e fizeram as pessoas pagarem através de uma política de austeridade.
As crises recentes e a forma como as mesmas foram geridas pelas classes dominantes fez com que repensasse a sua teoria sobre o neoliberalismo?
Bom, não creio que a solidariedade entre a classe capitalista hoje seja como antes. Geopoliticamente, os Estados Unidos não estão numa posição de mandar globalmente como nos anos 1970.
Acho que estamos a assistir a uma regionalização das estruturas globais de poder dentro do sistema de estados – hegemonias regionais como Alemanha na Europa, Brasil na América Latina, China na Ásia Oriental.
Obviamente, os Estados Unidos ainda têm uma posição global, mas os tempos mudaram. Obama pode ir ao G20 e dizer: “Devemos fazer isso” e Angela Merkel pode responder “Não estamos a fazer isso”. Isso não aconteceria nos anos 1970.
Então a situação geopolítica é mais regionalizada, há mais autonomia. Penso que é parcialmente um resultado do fim da Guerra Fria. Países como Alemanha não precisam mais de depender dos Estados Unidos para proteção.
Além disso, o que tem sido chamado de a “nova classe capitalista” de Bill Gates, Amazon e Silicon Valley tem políticas diferentes dos tradicionais capitalistas do petróleo e da energia.
Como resultado, tendem a agir de forma própria, então há muita rivalidade entre, digamos, energia e finanças, e energia e o pessoal de Silicon Valley, etc. Há sérias divisões que são evidentes em questões como mudança climática, por exemplo.
A outra coisa crucial, penso eu, é que a onda neoliberal dos anos 1970 não aconteceu sem resistência. Houve resistência massiva dos trabalhadores, de partidos comunistas na Europa, etc.
Mas eu diria que até o fim dos anos 1980, a luta foi perdida. Então, na medida em que a resistência tem desaparecido, os trabalhadores e sindicatos já não têm o poder que tinham, a solidariedade entre a classe dominante não é mais necessária para [o neoliberalismo] funcionar. Não precisa mais de se juntar e fazer algo contra a luta de baixo porque não existe mais uma ameaça. A classe dominante está a dar-se extremamente bem e não precisa de mudar realmente nada.
Porém, enquanto a classe capitalista está a dar-se muito bem, o capitalismo não está. As taxas de lucro recuperaram-se, mas as taxas de reinvestimento são terrivelmente baixas e muito dinheiro não está a circular de volta na produção e está a ir para a compra de terras e a especulação financeira.
Vamos falar mais sobre resistência. No seu trabalho, aponta o aparente paradoxo de que os ataques neoliberais foram acompanhados por um processo paralelo de declínio em luta de classes – pelo menos no Norte Global – a favor de “novos movimentos sociais” para liberdades individuais. Pode desvendar como o neoliberalismo provoca certas formas de resistência?
Aqui uma proposta para pensar. E se cada modo dominante de produção, com a sua configuração política particular, cria um modo de oposição como uma imagem de espelho a si mesmo?
Durante a era Fordista da organização do processo da produção, a imagem de espelho era o grande e centralizado movimento sindical e os partidos políticos centralistas democráticos.
A reorganização do processo da produção e a viragem para a acumulação flexível durante os tempos neoliberais têm produzido uma esquerda que, em muitos aspetos, é a sua imagem de espelho: redes, descentralização, não hierárquica. Acho isso muito interessante.
E até certo ponto a imagem de espelho confirma aquela que está tentar destruir. No final, acho que o movimento sindical na verdade reforçou o Fordismo.
Creio que uma grande parte da esquerda hoje, sendo muito autonomista e anárquica, está na verdade a reforçar o jogo final do neoliberalismo. E muitas pessoas da esquerda não gostam de ouvir isso.
Mas, é claro, a questão surge: Há forma de se organizar que não é uma imagem de espelho? Podemos esmagar esse espelho e encontrar algo diferente que não faz o jogo do neoliberalismo?
A resistência ao neoliberalismo pode ocorrer de diferentes maneiras. No meu trabalho, eu enfatizo que o ponto no qual o valor é realizado é também um ponto de tensão.
O valor é produzido no processo de trabalho, e esse é um aspeto muito importante da luta de classes. Mas o valor é realizado no mercado através do comércio, e há muita política envolvida nisso.
Muita resistência à acumulação de capital ocorre não só no lugar de produção, mas também através do consumo e a realização do valor.
O exemplo de uma fábrica de automóveis: grandes fábricas costumavam empregar 25 mil trabalhadores; agora empregam 5 mil, pois a tecnologia tem reduzido a necessidade de trabalhadores. Então cada vez mais empregos estão a ser deslocados da esfera de produção e estão a ser cada vez mais empurrados dentro da vida urbana.
O centro principal de descontentamento dentro da dinâmica capitalista está crescentemente a mudar para lutas sobre a realização do valor – sobre as políticas da vida quotidiana na cidade.
Os trabalhadores obviamente são importantes e há muitas questões relativamente aos trabalhadores que são cruciais. Se estivéssemos em Shenzhen na China, lutas sobre o processo de trabalho são dominantes. E nos Estados Unidos, por exemplo, a greve na empresa Verizon deveria ter sido apoiada.
Mas em muitos lugares no mundo, lutas sobre a qualidade da vida quotidiana são dominantes. Registe-se as grandes lutas nos últimos dez a quinze anos: algo como Gezi Park em Istambul não foi uma luta de trabalhadores, foi descontentamento com as políticas da vida quotidiana e a falta de democracia e os processos decisórios; as revoltas nas cidades brasileiras em 2013, novamente foram manifestações de descontentamento com as políticas da vida quotidiana: transporte, possibilidades e contra todos os gastos nos grandes estádios quando não havia dinheiro para construir escolas, hospitais e habitação decente. As revoltas que nós vemos em Londres, Paris e Estocolmo não são sobre o processo de trabalho: são sobre as políticas de vida quotidiana.
Essas políticas são bem diferentes das políticas que existem no lugar da produção. No lugar do trabalho, é capital versus trabalho. Lutas sobre a qualidade da vida urbana são menos claras em relação à sua configuração de classe.
Políticas claras de classe, que geralmente vêm de um entendimento sobre produção, ficam mais confusas enquanto se tornam mais realistas. É uma questão de classe, mas não é uma questão de classe no sentido clássico.
Considera que falamos demais sobre neoliberalismo e pouco sobre capitalismo? Quando é apropriado usar um termo ou o outro, e quais são os riscos envolvidos em misturá-los?
Muitos liberais dizem que o neoliberalismo foi longe demais em relação à desigualdade de rendimento, que a privatização foi além do normal, que existem bens comuns que temos que cuidar, tal como o meio ambiente.
Há também uma variedade de maneiras de falar sobre o capitalismo, a economia da partilha, por exemplo, que acaba por ser muito capitalizada e muito exploradora.
Há a noção de capitalismo ético, que acaba por ser simplesmente sobre a necessidade de ser honesto em vez de roubar. Portanto, há possibilidades nas mentes de algumas pessoas de algum tipo de reforma da ordem neoliberal para uma outra forma de capitalismo.
Acho possível que se possa fazer um capitalismo melhor do que o atualmente existe. Mas não muito melhor.
Os problemas fundamentais estão tão enraizados agora que não há forma de avançar sem um movimento anticapitalista forte. Então, colocaria as coisas nos termos anticapitalistas ao invés de colocá-las em termos anti neoliberais.
E creio que o perigo é que, quando ouço pessoas a falar de anti neoliberalismo, não existe a perceção de que o capitalismo em si, em qualquer das suas formas, é o problema.
A maioria dos anti neoliberal falha em não tratar dos macroproblemas de crescimento composto sem fim – problemas ecológicos, políticos e económicos. Então, prefiro falar de anti capitalismo do que de anti neoliberalismo.
Publicado originalmente no blog da revista Jacobin.
Tradução de Sean Purdy para o Blog Junho.