Os laços de Isabel dos Santos com a elite económica portuguesa

20 de janeiro 2020 - 21:44

Só explicável pelas características e dificuldades dos próprios processos de formação e acumulação da burguesia portuguesa, este caso é único. Para compreender o Portugal de hoje, é necessário conhecê-lo. (Trechos do livro Os Donos Angolanos de Portugal, de Jorge Costa, Francisco Louçã e João Teixeira Lopes, 2014).

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Atuais sociedades de Isabel dos Santos com grandes grupos económicos portugueses.
Atuais sociedades de Isabel dos Santos com grandes grupos económicos portugueses.

A maior fatia de riqueza angolana aplicada em grupos económicos portugueses está nas mãos de Isabel dos Santos. Só no primeiro trimestre de 2013, esta parte da sua fortuna aumentou 66 milhões de euros na valorização de ações, ficando estimada em cerca de 2,3 mil milhões, só em títulos cotados na bolsa portuguesa. Como sublinha a revista Forbes, cerca de metade da fortuna de Isabel dos Santos está localizada em empresas cotadas em Portugal (Forbes, 2.9.2013).

O mais antigo parceiro de negócios português de Isabel dos Santos foi Américo Amorim. Chegaram juntos à Galp, em 2005. Foi também com Amorim que Isabel dos Santos dominou a maior cimenteira angolana, a Cimangola, em 2007. O esquema da aquisição foi denunciado pelo Expresso: alegando razões estratégicas, o Estado angolano comprou os 49% detidos pela Cimpor por 56 milhões de euros, contraindo um empréstimo do BIC (de Isabel dos Santos e Américo Amorim) e entregando depois aquela participação à Ciminvest (dos mesmos donos). O Estado angolano manteve os 40% que já tinha na cimenteira, sendo o restante do banco BAI, que conheceremos adiante. Em 2010, Amorim vendeu a sua parte da sociedade com Isabel dos Santos a uma empresa do marido desta, Sindika Dokolo.

O BIC está no centro dos investimentos de Isabel dos Santos em Portugal. A filha do presidente detém um quarto do capital, através da holding Santoro, que também controla 20% do BPI. Em 2010, o BIC, dirigido por mais um ex-ministro de Cavaco Silva, Mira Amaral, comprou o Banco Português de Negócios ao Estado português, depois de uma nacionalização ruinosa, cujo impacto nas contas do Estado ainda não é conhecido em toda a sua extensão. A venda ao BIC luso-angolano fez-se por um valor simbólico, 40 milhões de euros. Mas, na sequência da privatização, o BIC vendeu o BPN aos seus próprios acionistas. A revista Visão desvendaria os contornos do negócio: a venda foi feita a crédito e esse crédito foi depois “anulado” com uma diminuição de capital do banco, posto que o Estado capitalizara o BPN com 600 milhões de euros, mais do que o estritamente necessário (V, 17.10.2013). O BPN foi oferecido a Américo Amorim e Isabel dos Santos.

Outro dos pontos de apoio financeiros de Isabel dos Santos é o BPI português. O banco é dos mais antigos em Angola, onde se instalou em 1993 sob a sigla BFA, Banco de Fomento de Angola. Em 2008, a companhia telefónica Unitel (a maior empresa privada angolana, detida a 25% por Isabel dos Santos e onde a PT portuguesa detém quota semelhante) adquiriu 49% do BFA. O banco, que continua dominado pelo BPI, é hoje é o segundo maior banco privado em ativos, com mais de um milhão de clientes no país. Além desta participação, Isabel dos Santos é também a segunda maior acionistas do BPI, com 19,5%.

Na entrada de Isabel dos Santos na Zon, o BPI que teve um papel importante, concedendo um crédito de 150 milhões. Em 2010, Isabel dos Santos cria a Zap, operadora de TV por satélite em Angola, detendo diretamente 70% e, através da Zon, outros 30%. Em 2011, quando a troika impôs a saída da CGD do capital da Zon, a posição de Isabel dos Santos tornou-se dominante, atingindo os 29%.

O mais recente aliado de Isabel dos Santos é o grupo Sonae. A fusão da Zon com a Sonaecom (que detém 100% da Optimus) dá lugar à NOS. Estará presente nos negócios de telefone fixo e móvel, internet, televisão por subscrição, distribuição e exibição cinematográfica, venda de DVD. Foi também com o grupo de Belmiro de Azevedo que Isabel dos Santos lançou o Continente Angola, controlado a 51% pela parte angolana.

A aliança entre as burguesias portuguesa e angolana

As relações económicas entre os capitais angolanos e portugueses são a mais importante transformação no processo de acumulação de capital em Portugal nas últimas décadas. Portugal não pode hoje ser compreendido sem se conhecer este processo único que é a sua relação com o capital angolano.

As relações entre Portugal e Angola são subsidiárias de um passado de domínio e ocupação colonial. Portugal foi a potência colonizadora durante séculos, impôs e perdeu uma guerra contra a independência de Angola. Mesmo depois disso, forças políticas portuguesas tiveram particulares responsabilidades na sustentação da Unita na guerra civil que devastou o país. O passivo é portanto pesado.

Mas há uma característica que não pode ser atribuída a esse passado: o colonialismo português não formou a burguesia angolana. Quando da independência, em 1975, não havia burguesia angolana. Esta formou-se a partir do aparelho de Estado, do partido e do seu aparelho militar, durante e depois da guerra civil, apropriando-se em primeiro lutar da renda petrolífera e de outros minerais, e secundariamente de outros negócios de fornecimento de bens e serviços. A família de José Eduardo dos Santos é por isso o centro desta burguesia, em que se incorporam comandos militares e empresários que vivem de benesses e concessões de um poder centralizado na Presidência e na Sonangol.

O caso angolano é o de uma acumulação primitiva dirigida em modos imperiais, mas associando e multiplicando uma classe em ascensão. Esta classe foi formando o seu discurso, a sua identidade, a sua consciência e as suas redes de poder. A distribuição das oportunidades de negócio, o envolvimento de todas as ambições, a organização de apoios sociais é a chave da notável longevidade política de José Eduardo dos Santos e até da impunidade de um sistema que tanto soube evitar como soube recorrer a eleições.

A interligação da burguesia angolana com a burguesia portuguesa desenvolve-se depois desta acumulação inicial, com o investimento de grupos bancários e de construção civil portugueses em Angola e através dos investimentos de Isabel dos Santos e da Sonangol nas empresas petrolíferas e na banca portuguesa. O capital angolano beneficia de um amplo suporte político em Portugal, como se verifica pela lista de ex-governantes de vários partidos associados à direção das empresas com ligações angolanas. Estes negócios constituem assim uma via de dois sentidos que é essencial para qualquer dos parceiros: para a burguesia portuguesa, tem sido uma forma de financiamento e de capitalização, enquanto para a burguesia angolana constitui o único acesso na Europa para a reciclagem das fortunas do privilégio e da corrupção.

Este processo de interligação entre os capitais portugueses e angolanos não tem qualquer paralelo na história do pós-colonialismo. Nenhuma potência colonial se transformou em suporte direto de um processo de acumulação primitiva na sua ex-colónia e, simultaneamente, num campo de reciclagem de capitais da elite no poder. Mobutu foi protegido pela Bélgica; a França ou a Inglaterra intervieram ou favoreceram os seus interesses nas suas ex-colónias; mas em nenhuma destas potências europeias ocorreu uma transferência de propriedade de ativos estratégicos do sistema económico e financeiro como aquela que ocorre em Portugal pela intervenção do capital de origem angolana.

Só explicável pelas características e dificuldades dos próprios processos de formação e acumulação da burguesia portuguesa, este caso é único. Para compreender o Portugal de hoje, é necessário conhecê-lo.

Trechos do livro Os Donos Angolanos de Portugal, de Jorge Costa, Francisco Louçã e João Teixeira Lopes, 2014