A fuga de informação dos Panama Papers em 2016 identificou figuras do círculo familiar e de amizade de Vladimir Putin e seguiu o rasto de quase 1,8 mil milhões de dólares entre bancos russos, advogados suíços, gestores de offshores no Panamá, bancos cipriotas, offshores nas Ilhas Virgens Britânicas e de regresso à Rússia. Pelo meio registaram-se inúmeras transações, entre empréstimos, ações transacionadas retroativamente, honorários multimilionários por alegados serviços de consultoria ou compensações generosas por negócios cancelados. Dois anos depois, um relatório da Global Witness apontava as Ilhas Virgens Britânicas como o segundo maior destino do capital saído da Rússia, com os offshores ultramarinos britânicos a registarem entradas de mais de 81 mil milhões de euros entre 2006 e 2016, segundo dados do FMI e do banco central russo.
Passados estes anos e mais uma vaga de sanções, agora a propósito do ataque à Ucrânia, regressa a dúvida sobre a eficácia destas em atingir a elite financeira russa. O seu dinheiro é parqueado nestas jurisdições porque foram desenhadas para tornar quase impossível a identificação dos proprietários das fortunas. O montante com origem russa colocado em offshores corresponde a mais de metade do PIB anual russo e também a mais de metade das fortunas dos 0,01% mais ricos da Rússia, como aponta o economista francês Gabriel Zucman. "Uma política eficaz de sanções não deveria começar por apreender estes bens?", questiona este especialista em offshores.
O problema, destacam outros investigadores como Robert Huish, é que apesar desse capital escondido estar à vista de todos, como mostraram os Panama Papers, "ter como alvo centros de capital offshore como as Ilhas Virgens Britânicas poderá expor de forma inevitável as finanças de outras elites globais e mesmo políticos ocidentais, o que pode explicar a falta de apetite para o fazer". Ou como diria Zucman, "o problema com os mega-iates e contas na Suíça dos bilionários russos é que são muito parecidos com os mega-iates e contas na Suíça dos nossos bilionários. Pode ser difícil confiscar uns e não olhar para os outros".
Suíça: A neutralidade é a alma do negócio
A Suíça - segundo um relatório da sua própria embaixada em Moscovo, citado pela Associated Press - é hoje o principal destino das transações bancárias de milionários russos, com transferências superiores a 2,23 mil milhões de euros em 2020 e 1,61 mil milhões de euros na primeira metade de 2021. Mas apesar das declarações do presidente do Conselho Federal, Ignazio Cassis, a dizer que acompanhava as sanções decididas pela UE, até este domingo não se conheciam ações concretas e eficazes no mesmo sentido, além de proibir novas relações de negócios com os 363 cidadãos e quatro empresas na lista de sanções. "Os bancos suíços protegem os facilitadores de Putin, quer criando trusts para eles, quer permitindo que os seus banqueiros sirvam como diretores designados de contas para as empresas offshore do oligarca. Desta forma, não existem facilitadores de Putin nos registos", afirma Drew Sullivan, co-fundador do Organized Crime and Corruption Reporting Project que acabou de lançar a fuga de informação dos Suisse Secrets.
Por outro lado, o apego ao estatuto de neutralidade - a Suíça representa os interesses da Geórgia em Moscovo e os da Rússia em Tblissi desde o corte de relações entre os dois países em 2008 - fala mais alto. "Se a Suíça aplicasse automaticamente as sanções impostas pela UE ou outros países, já não poderia desempenhar de forma credível o papel tradicional pelo qual é valorizada em todo o mundo", justifica Guy Parmelin, responsável no Conselho federal suíço pela pasta das relações económicas, citado pela Associated Press.
Taxar o património ou banir os bancos cúmplices?
Para o economista francês Thomas Piketty, as autoridades hesitam em tomar medidas determinadas - como a criação de um registo financeiro internacional que identifique quem detém o quê nos vários países - porque os seus próprios milionários "temem que essa transparência os possa vir a prejudicar". Na Europa e nos EUA, acrescenta Piketty, "tudo é feito para distinguir os úteis e meritórios "empreendedores" ocidentais dos perversos e parasitas "oligarcas" russos, chineses, indianos ou africanos. Mas a verdade é que eles têm muito em comum", a começar pela forma como acumularam essa riqueza na base de favores e privilégios desde as décadas de 1980 e 1990. A receita do economista francês passa por taxar a 10% ou 20% os bens dos russos com mais de 10 milhões de euros em bens imóveis ou financeiros, o que representa cerca de 20 mil pessoas, congelando o restante por precaução. "Ameaçados com a ruína e a proibição de visitarem o Ocidente, apostamos que esse grupo arranjará forma de ser ouvido no Kremlin", conclui.
Nos EUA, há quem defenda que em vez de repetir pela enésima vez as sanções aos principais oligarcas russos, o alvo deve ser onde lhes dói mais: as contas bancárias offshore no Chipre. "O Departamento do Tesouro deve declarar o Chipre como uma jurisdição de 'principal preocupação de lavagem de dinheiro'", de forma a que os bancos ocidentais deixem de fazer transações com os bancos nessa jurisdição, argumenta Martin Sheil, um antigo agente do combate à fraude do fisco norte-americano. Basta para isso aplicar um mecanismo previsto no Patriot Act, considerada uma "arma bancária letal" e que já foi usada contra o Federal Bank of the Middle East, sediado no Chipre. Citando uma notícia da BBC que em 2013 apontava que entre um terço e metade dos depósitos bancários no Chipre tinham origem russa, ou os Cyprus Papers de 2020 que expunham a forma como os vistos gold atraíram um milhar de milionários, a aplicação desta "pena de morte ao branqueamento", defende o ex-agente, iria complicar muito a vida à elite que usa os bancos cipriotas como base para os seus investimentos luxuosos nos países ocidentais.