Cinema

O documentário vencedor do Óscar que os distribuidores dos EUA não querem mostrar

03 de março 2025 - 12:21

“No Other Land” capta com coragem as expulsões de palestinianos na Cisjordânia por parte de Israel. O filme que passou na mostra Desobedoc em Portugal ganhou um Óscar, mas não conseguiu arranjar um distribuidor nos EUA.

por

Agnitra Ghosh

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imagem de "No Other Land"
imagem de "No Other Land"

Poucos minutos depois do início do documentário nomeado [e vencedor] de um Óscar, vemos soldados israelitas a invadir uma aldeia depois de ter sido dada uma ordem judicial para demolir casas palestinianas em Masafer Yatta, no sul da Cisjordânia ocupada. Uma câmara portátil capta os bulldozers a demolir violentamente as casas enquanto os habitantes da aldeia protestam. “Não temos outra terra”, diz aos jornalistas uma mulher idosa, impotente.

As famílias palestinianas desalojadas são empurradas para quartos improvisados dentro de grutas. Durante a noite, uma menina que acabou de testemunhar os horrores da intimidação e da violência dos soldados israelitas remexe-se na cama, como se estivesse a rodopiar. A mãe, cansada, esforçando-se por dormir, também se sente inquieta.

“O que estás a fazer?”, pergunta ela.

“Estou a girar para que ninguém me apanhe”, responde a rapariga.

O momento comovente recorda os versos pungentes do poeta palestiniano-canadiano Rafeef Ziadah: “Nós, palestinianos, ensinamos a vida depois de eles terem ocupado o último céu”.

No Other Land, de Basel Adra, Hamdan Ballal, Rachel Szor e Yuval Abraham, vencedor do Melhor Documentário nos Óscares de domingo, é um dos filmes mais politicamente prementes do nosso tempo - um documento robusto de ocupação e destruição e um testemunho de amizade, solidariedade e resistência. Produzido por um coletivo de cinema israelo-palestiniano, No Other Land documenta a devastação de várias aldeias em Masafer Yatta pelas forças israelitas antes do ataque do Hamas a 7 de outubro de 2023.

Ao longo dos anos, Adra, um jovem ativista e jornalista palestiniano, tem vindo a documentar os esforços israelitas para expulsar estes habitantes. Após uma demolição no verão de 2019, conheceu o jornalista israelita Abraham e a sua amizade intensificou-se. Os dois, juntamente com o fotógrafo palestiniano Hamdan Ballal e a cineasta israelita Rachel Szor, começaram a filmar milhares de famílias palestinianas enquanto o governo israelita arrasava aldeia após aldeia para converter toda a área num campo de treino militar.

Terceiro Cinema

O filme começa com Adra a receber uma chamada sobre a chegada de soldados israelitas a uma aldeia vizinha. Ele procura desesperadamente a sua câmara e corre para o local. Vemos vários bulldozers na autoestrada, seguidos de vários veículos do exército, enquanto o ouvimos ofegar atrás da câmara. A demolição começa. Os habitantes da aldeia retiram freneticamente os seus pertences enquanto os bulldozers arrasam impiedosamente as suas casas. Depois de todas as casas da aldeia terem sido transformadas em escombros, os rapazes recolhem o que resta e levam os restos para o interior das claustrofóbicas grutas.

Apesar de não ter sobrado quase nada após a demolição, uma mulher põe leite à disposição de um pequeno gato que mia, suspirando: “Oh meu Deus, não sobrou nada. Destruíram até o curral das ovelhas”. O que é que pode ser uma imagem mais poderosa da resiliência de um povo sob ocupação?

No final da década de 1960, discutindo as possibilidades de um cinema politicamente comprometido, distinto tanto dos filmes comerciais (primeiro cinema) quanto dos filmes de arte (segundo cinema), os cineastas argentinos Fernando Solanas e Octavio Getino escreveram que “a capacidade de síntese e a penetração da imagem cinematográfica, as possibilidades oferecidas pelo documento vivo e pela realidade nua e crua e o poder de esclarecimento dos meios audiovisuais tornam o filme muito mais eficaz do que qualquer outra ferramenta de comunicação”. Solanas e Getino defendiam um “terceiro cinema”, especialmente documentários de guerrilha, onde os cineastas trabalhariam clandestinamente para a transformação revolucionária em ambientes hostis. No Other Land ressuscita esta visão radical do terceiro cinema ao documentar a crueldade da ocupação israelita e a resistência quotidiana das pessoas em Masafer Yatta.

Enquanto o filme documenta uma apropriação de terras por parte de Israel entre o verão de 2019 e o inverno de 2023, também justapõe excertos de vídeos antigos gravados pela família e pelos vizinhos de Adra. Vemos imagens de protestos de quando Adra tinha apenas sete anos de idade. Enquanto está sentado com a mãe num campo, o seu pai ativista é violentamente agredido e depois preso pelo exército israelita.

Numa sequência posterior, Abraham fica ligeiramente impaciente com o facto de o seu artigo sobre as atrocidades em Masafer Yatta não estar a obter visualizações suficientes. “Queres que tudo aconteça rapidamente, como se fosses resolver tudo em dez dias e voltasses para casa”, diz-lhe Adra com um sorriso. “Isto está a acontecer há décadas".

Amizade invulgar

Pouco antes de um dos momentos mais chocantes do filme, que não vou abordar aqui, os soldados israelitas confiscam todas as ferramentas dos habitantes da aldeia para que não possam reconstruir as suas casas. Um Abraham agitado começa a discutir com eles. “Porque é que te preocupas?”, pergunta-lhe um soldado. “Importo-me porque estão a fazer isto em meu nome”, responde Abraham com raiva.

No Other Land é também a história de uma improvável amizade e camaradagem entre Adra e Abraham. Mas a enorme desigualdade entre as suas vidas palestinianas e israelitas é absolutamente evidente. Quando Adra apresenta Abraham aos seus amigos e vizinhos, um palestiniano troça dele. “És um israelita dos direitos humanos?”

Noutra altura, um Adra cansado e exausto diz a Abraham, em tom de brincadeira, que deviam deixar este lugar juntos e ir de férias para as Maldivas. Ao ouvirmos um burro a zurrar ao fundo, Abraham brinca com ele dizendo que provavelmente está a rir-se da sua ideia de partir. Os dois começam a rir, mas momentos depois apercebem-se de que Abraham pode voltar para casa em qualquer altura, mas Adra está preso na Cisjordânia. As brutalidades israelitas intensificam-se e, a certa altura, Ballal, o fotógrafo palestiniano, pergunta com raiva a Abraham como podem continuar amigos quando os israelitas destroem repetidamente a sua casa. “ Pode isto continuar?”

Numa entrevista ao Democracy Now, Abraham conta uma história reveladora sobre estas realidades desiguais:

Quando regressei a Jerusalém, comecei a rever as condições em que estávamos a trabalhar no filme. Adra contou-me que, quando era pequeno, dormia sempre com os sapatos calçados (…) Estava tão habituado a isso em criança que andava sempre de sapatos calçados para estar pronto a fugir se os soldados entrassem na aldeia... [Em Jerusalém,] não tenho de dormir com os sapatos calçados.

Se gritares, não morres

Adra acredita que a recolha de imagens das atrocidades cometidas pelos israelitas em Masafer Yatta vai chamar a atenção do mundo e obrigar os Estados Unidos a pressionar Israel a parar com as expulsões. Sempre que os soldados israelitas desencadeiam a violência, Adra corre sempre com a sua câmara, gritando: “Estou a filmar-vos!”

O cinema é uma forma improvável de resistência em No Other Land para aqueles a quem restam poucas ferramentas, e os seus realizadores arriscam tudo para captar a verdade. Para intimidar Adra a parar o seu ativismo cinematográfico, o exército israelita prende o seu pai a meio da noite. Até Abraham sofreu as consequências: depois do seu discurso no Festival de Cinema de Berlim, recebeu ameaças de morte, enquanto uma multidão da direita israelita ameaçou os membros da sua família. A coragem monumental dos cineastas em dar um testemunho no terreno das brutalidades da limpeza étnica é evidente. Mas há também momentos de exaustão e desilusão. A certa altura, Abraham pergunta frustrado a Adra: “Alguém vê uma coisa, fica comovido, e depois?”

Mas a esperança de que o cinema seja um instrumento de transformação permanece viva em No Other Land. Apesar da aclamação da crítica e de um impressionante registo de elogios em festivais internacionais - para não mencionar o seu estatuto de filme com maior bilheteira na sua categoria de Óscar - No Other Land não foi divulgado pelos distribuidores estadunidenses e os produtores acabaram por optar por lançar o documentário de forma independente para chegar a um público dos EUA. Além disso, na Índia, No Other Land foi abruptamente retirado da programação do MAMI Mumbai Film Festival e do Dharamshala International Film Festival. Talvez o pronunciamento de Solanas e Getino, há mais de cinquenta anos, sobre o poder da imagem em movimento ainda seja verdadeiro.

Ainda há poucas semanas, Adra publicou três vídeos na sua página do Facebook e escreveu sobre a intensificação das atrocidades israelitas na Cisjordânia, onde a campanha de limpeza étnica de Israel disparou no momento em que o cessar-fogo em Gaza entrou em vigor, levando a níveis recorde de deslocações forçadas.

E mesmo perante a morte, Adra continua a registar a violência inimaginável contra o povo palestiniano. A sua persistência recorda outro momento de No Other Land em que, após o terrível ataque a Harun Abu Aram, jovens palestinianos gritam perante as granadas de atordoamento israelitas durante uma manifestação: “Levantem a vossa voz, levantem a vossa voz! Se gritares, não morres!”


Agnitra Ghosh ensina comunicação de massas e jornalismo na Universidade de Jadavpur, Calcutá. Artigo publicado na Jacobin antes da cerimónia dos Óscares, atualizado para referir que foi o filme vencedor na categoria de Melhor Documentário. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net