Líbano

O cessar-fogo no Líbano não é nenhuma “vitória divina”

27 de novembro 2024 - 22:34

A situação atual e o acordo de cessar-fogo são muito diferentes do que eram em 2006. A primeira e mais importante diferença é que o golpe que as forças armadas sionistas conseguiram infligir ao Hezbollah é muito maior hoje do que foi em 2006, embora não seja fatal.

porGilbert Achcar

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Duas libanesas olham para um prédio destruído depois do anúncio do cessar-fogo.
Duas libanesas olham para um prédio destruído depois do anúncio do cessar-fogo. Foto de Wael Hamzeh/EPA/Lusa

Poderá o acordo de cessar-fogo entre Israel e o Líbano ser uma nova “vitória divina”? Foi assim que o acordo que pôs fim ao ataque israelita ao Líbano, em 2006, foi caracterizado pelo Hezbollah. Depois, o partido exibiu essa frase em enormes outdoors com uma fotografia do seu secretário-geral, Hassan Nasrallah, num claro jogo de palavras, já que o slogan poderia ser lido tanto como uma vitória atribuída a Deus como uma vitória liderada por Nasrallah, cujo nome em árabe significa “vitória de Deus”.

Independentemente desta alegada divindade, a reivindicação de vitória fez realmente sentido em 2006, quando o ataque de Israel não conseguiu desferir um golpe decisivo no partido, que o enfrentou com feroz resistência. O Estado sionista foi forçado a parar a sua guerra e a aceitar uma resolução internacional, a Resolução n.º 1701 do Conselho de Segurança da ONU, que não fornecia nenhuma garantia real para a sua implementação – nem que fosse apenas a da sua primeira cláusula, que apelava à retirada das forças armadas do partido para norte do rio Litani, e muito menos a cláusula que reafirma a anterior resolução 1559 (2004) do Conselho de Segurança das Nações Unidas, apelando ao desarmamento do Hezbollah – a única organização que insistiu em continuar a transportar armas no Líbano depois de 1990, em nome da resistência à ocupação israelita.

O partido conseguiu curar as feridas da guerra de 2006, que fez mais de mil vítimas e testemunhou uma destruição generalizada nas áreas que este dominava, de acordo com o que mais tarde ficou conhecido como a “Doutrina Dahiya”. O financiamento iraniano permitiu ao Hezbollah pagar indemnizações por vidas e bens, assim como o armamento iraniano lhe permitiu não só compensar a perda de equipamento militar, mas também aumentar muitas vezes o seu poder de fogo, tanto em quantidade como em qualidade, a fim de adquirir uma capacidade dissuasora contra o Estado sionista. Como é bem sabido, a força militar do partido e o apoio do Irão aumentaram posteriormente através da sua intervenção na Síria para apoiar o regime de Assad, e da sua transformação de facto numa divisão da Força Quds – a ala da Guarda Revolucionária Islâmica do Irão especializada em operações no estrangeiro – encarregadas de missões militares que incluíam o Iraque e o Iémen.

A situação atual e o acordo de cessar-fogo que foi negociado em lume brando durante meses e em fogo muito mais intenso nas últimas semanas são completamente diferentes do que eram em 2006. A primeira e mais importante diferença é que o golpe que as forças armadas sionistas conseguiram infligir ao partido traduz-se num valor muito mais elevado hoje do que era em 2006, embora não seja fatal. De qualquer modo, Israel não tem ilusões de poder eliminar o partido simplesmente bombardeando-o, uma vez que o Líbano oferece vários abrigos locais e regionais – ao contrário da Faixa de Gaza, que continua a ser uma grande prisão apesar da rede de túneis escavados pelo Hamas.

A ofensiva lançada pelas forças armadas sionistas no Líbano há dois meses e meio, começando com a explosão dos aparelhos de comunicação nas mãos dos quadros do Hezbollah, permitiu-lhe decapitar o partido matando a maioria dos seus líderes e concentrar-se na destruição dos seus capacidades e infraestruturas militares de forma muito mais eficaz do que há dezoito anos, graças a informações mais eficazes que beneficiam dos desenvolvimentos tecnológicos alcançados nos últimos anos. O Hezbollah sairá desta guerra exausto para além de qualquer comparação com o que lhe aconteceu em 2006, e a sua capacidade de reconstruir a sua força, já para nem dizer de a aumentar, será muito limitada em comparação com o que aconteceu nesse ano.

Como disse recentemente o embaixador de Israel nas Nações Unidas, aprenderam as “lições de 2006 e 1701”, o que significa que desta vez os israelitas estarão interessados em verificar a retirada completa das forças do Hezbollah para norte do rio Litani, bem como para evitar que o Irão rearme o partido através do território sírio. Pediram uma garantia oficial dos EUA relativamente a estas duas questões, mantendo ao mesmo tempo a sua liberdade de atacar qualquer movimento que contradiga o acordo, tal como a liberdade de que gozam de atacar movimentos iranianos em território sírio. Falou-se mesmo de Israel solicitar à Rússia que coopere nesta área, no espírito do acordo entre os dois Estados, segundo o qual as aeronaves e os sistemas de defesa aérea russos estacionados em território sírio não intercetam ataques realizados pela Força Aérea Israelita nesse mesmo território.

Além disso, a capacidade do Hezbollah para curar as feridas da sua base popular e do seu meio será desta vez mais fraca, não só porque as feridas atuais são maiores do que eram em 2006 (mais de três vezes o número de mortos, cerca de quatro vezes o número de feridos e uma destruição muito mais grave), mas também porque as capacidades financeiras de Teerão são hoje relativamente mais fracas do que eram em 2006, antes de os Estados Unidos reforçarem as sanções contra o país. Isto soma-se aos problemas que provavelmente impedirão a capacidade de Teerão de transferir fundos para o partido, como fez há dezoito anos.

Por último, mas não menos importante, o Estado sionista aposta nos esforços de Washington, em cooperação com Paris, para alterar decisivamente o mapa político libanês no próximo período, reforçando as forças armadas regulares libanesas e evitando ao mesmo tempo que o partido recupere a sua força, de modo a chegar a um ponto em que aqueles possam impor o desarmamento deste, quer por acordo político, quer pela força. A restauração das instituições governamentais libanesas, especialmente a eleição de um novo presidente e a nomeação de um novo Governo, será um passo fundamental neste caminho. É sabido que Washington está a pressionar para a eleição de Joseph Aoun, o atual comandante das forças armadas libanesas, como presidente.

Se as coisas avançarão nesta direção de forma relativamente suave, ou se o conflito entre projetos conduzirá a uma nova ronda de guerra por procuração em solo libanês, desta vez entre o Irão, por um lado, e os Estados Unidos e Israel, por outro, dependerá de ambos. Todos notaram como Teerão – depois de insistir na rejeição do Hezbollah de um cessar-fogo no Líbano antes de este ser alcançado em Gaza (esta posição foi de facto um pretexto para manter o partido envolvido na guerra, em antecipação a uma escalada do confronto entre Israel e o Irão) – mudou a sua posição e deu luz verde ao partido para abandonar a pré-condição de Gaza. Alguns acreditam que a razão para esta mudança é o sucesso do ataque sionista ao Hezbollah e a compreensão de Teerão de que a passagem do tempo significa um enfraquecimento ainda maior das capacidades do partido, enquanto outros acreditam que é o receio de Teerão da participação de Washington num próximo ataque israelita ao Irão e em particular às suas capacidades nucleares, após o regresso de Donald Trump, o seu arqui-inimigo, à Casa Branca.

Se esta última avaliação estiver correta e Teerão procurar concluir um “acordo” com Trump, então o preço deverá ser que Teerão recomende aos seus auxiliares regionais, principalmente ao Hezbollah, que se empenhem na construção do Estado local em vez de procurarem construir um Estado paralelo, para além da sua aceitação de desistir do seu urânio altamente enriquecido e de um controlo mais rigoroso sobre as suas instalações nucleares. No entanto, se esta aposta falhar, o Líbano e toda a região caminharão para novas fases de violência, e o cessar-fogo no Líbano não será mais do que uma trégua temporária num confronto multifacetado que começou há quase quarenta anos com a fundação da Hezbollah, ou mesmo seis anos antes, com o nascimento da “República Islâmica”.


Traduzido do original em árabe publicado no Al-Quds al-Arabi a 26 de novembro de 2024. 

Gilbert Achcar
Sobre o/a autor(a)

Gilbert Achcar

Professor de Estudos de Desenvolvimento e Relações Internacionais na SOAS, Universidade de Londres. Entre os seus vários livros contam-se: The Clash of Barbarisms: The Making of the New World Disorder; Perilous Power: The Middle East and U.S. Foreign Policy, com Noam Chomsky; The Arabs and the Holocaust: A Guerra de Narrativas Árabe-Israelita; The People Want: A Radical Exploration of the Arab Uprising; e The New Cold War: The United States, Russia and China, from Kosovo to Ukraine. Leia mais em gilbert-achcar.net