Nas eleições para a sucessão de Alexis Tsipras à frente do Syriza, Stefanos Kasselakis ganhou com 56% dos votos. Trata-se de uma nova “estrela” que não era membro do partido até há pouco tempo e que não reivindica qualquer ligação à esquerda política organizada, nem à sua história nem aos seus objetivos.
A sua rival derrotada, com 44%, é Effie Achtsióglou. Ela liderou uma coligação de membros históricos do Syriza que tinham as suas origens principalmente na tradição euro-comunista e que optaram – após a capitulação de 2015 – por permanecer no Syriza e servir como ministros de topo no governo de Alexis Tsipras entre 2015 e 2019. Effie Achtsióglou foi ministra do Trabalho e Euclid Tsakalotos [que obteve 8,78% dos votos na primeira volta das eleições internas] foi ministro das Finanças no governo que impôs e implementou o terceiro memorando de austeridade.
Stefanos Kasselakis vem de uma família próspera de empresários e cresceu nos Estados Unidos, onde se envolveu em atividades empresariais (quer a trabalhar para a Goldman Sachs, quer movendo-se nos círculos de célebres armadores gregos). Durante a sua estadia nos Estados Unidos, afirma ter contribuído para o CSIS (Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais), ao mesmo tempo que se manteve ativo na periferia do Partido Democrata, enquanto doador de Joe Biden, então membro do Congresso. Pouco antes das eleições cruciais de 2023 [em que o Syriza obteve 71 lugares em maio e 47 em junho], no quadro do projeto de alargamento do Syriza para o centro político e para dar algum glamour aos boletins de voto do partido, Alexis Tsipras pediu a este jovem promissor que assumisse um lugar honorário, mas não elegível, na lista do “círculo eleitoral nacional”. Kasselakis aceitou o convite e regressou à Grécia. Na altura, nada fazia prever os acontecimentos posteriores, com a possível exceção dos laços políticos estreitos que Kasselakis rapidamente desenvolveu com o círculo de Alexis Tsipras.
Após a derrota esmagadora do Syriza nas eleições duplas de maio-junho de 2023 (com um resultado 20% inferior ao da Nova Democracia e uma clara perda de apoio entre a classe trabalhadora), Alexis Tsipras foi forçado pela força dos acontecimentos a demitir-se [formalmente a 29 de junho], apesar da sua tentativa inicial de o evitar. Nas eleições internas do partido para suceder a Tsipras, Stefanos Kasselakis apresentou-se como candidato, com a arrogância de afirmar que é o único que pode derrotar Kyriákos Mitsotákis em termos eleitorais. Porquê? A resposta, nas palavras de Kasselakis, é espantosa. Ele cita os seguintes factos: fala melhor inglês do que Mitsotakis, é melhor em matemática do que Mitsotakis e tem mais experiência empresarial do que ele…
A questão que se coloca é como é que um tal personagem conseguiu impor a sua liderança num partido que ainda se definia como componente da “esquerda radical”. A imprensa grega está repleta de artigos que analisam o “triunfo da pós-política”, onde uma personalidade “glamorosa” e técnicas de comunicação inteligentes podem eclipsar o conteúdo político. Tais análises correm o risco de levar a conclusões que se situam no domínio do maravilhoso. Na minha opinião, há explicações mais simples e mais concretas. Durante a campanha de Kasselakis, tornou-se imediatamente evidente que estava em jogo dinheiro, muito dinheiro. A campanha de Kasselakis foi promovida por uma grande parte dos meios de comunicação social gregos. Durante várias semanas, coordenaram-se para fazer de cada palavra ou gesto do jovem líder em formação uma notícia importante, anunciando geralmente a sua vitória. Mas estes elementos, por si só, não teriam sido suficientes. A vitória de Kasselakis foi organizada por uma força dentro do Syriza: o círculo dos colaboradores mais próximos e de maior confiança de Alexis Tsipras, aliados a uma grande parte dos políticos sociais-democratas que se juntaram gradualmente ao Syriza depois de 2015. Nikos Pappas (o antigo braço direito de Tsipras), Giorgos Tsipras (primo do antigo primeiro-ministro), Pavlos Polakis (o cão de guarda político-ideológico de Tsipras), o almirante Evaggelos Apostolakis (o antigo conselheiro de Tsipras responsável pelos assuntos políticos do governo), e o (mais discreto) social-democrata Christos Spirtzis compõem o círculo dos quadros que, até ontem, serviam de guarda pretoriana de Tsipras e que agora são os pilares centrais de apoio à vitória de Kasselakis.
Alexis Tsipras não é conhecido pelas suas demonstrações de generosidade, nem sequer por tratar de forma justa aqueles que o ajudaram. Porque é que ele doou o seu partido a um homem que apareceu, há alguns meses, como um cometa no seio do Syriza, continua a ser uma questão importante. Um outro candidato à liderança do Syriza, o social-democrata da velha guarda Stefanos Tzoumakas, que obteve apenas cerca de 2% dos votos, agindo como um “eletrão livre”, deu a resposta. Afirmou que Kasselakis é e será um “presidente de transição”, sugerindo que o caminho está aberto para o regresso de Tsipras à liderança do partido. Esta resposta está, de facto, bem fundamentada. Mas não é completa. A verdade é que o Syriza, no seu conjunto, é atualmente um “partido de transição”. Alexis Tsipras declarou claramente o seu compromisso com o projeto estratégico de uma recomposição que inclua tanto o Syriza quanto o Pasok [esta sigla refere-se, desde maio de 2022, ao Movimento para a Mudança que emergiu da coligação de quatro formações entre 2017 e 2018, incluindo o PASOK histórico], no sentido da fundação de um amplo “campo” progressista que já não incluirá qualquer referência, símbolo ou caraterística (ou até a palavra “esquerda”) que recorde os grandes confrontos políticos do passado.
É verdade que o Syriza já deu grandes passos nesta direção. A sua política de oposição a Mitsotakis (2019-2023) cortou os laços entre a reivindicação de poder governamental e a formulação de uma “narrativa” ou de um compromisso para mudar o mundo em benefício da maioria trabalhadora. Esta política, promovida com o pretexto de reforçar as perspetivas eleitorais do Syriza, revelou-se desastrosa, mesmo em termos eleitorais. Mas a lição que estes aprendizes de feiticeiro daí tiraram é que as razões da derrota se devem aos “fardos” do passado, que impediram Tsipras de concluir rapidamente e de forma coerente a viragem à direita em direção ao “campo democrático”.
Neste processo de mutação conservadora, as mudanças de hábitos e práticas organizacionais não foram secundárias. Quando Tsipras reivindicou para si próprio o privilégio de ser eleito diretamente pelos membros e simpatizantes do partido, deu um passo importante contra a tradição de um partido estruturado que é uma caraterística da esquerda. Hoje, 120.000 a 130.000 pessoas participaram no processo de eleição do Presidente. A única condição prévia para participar era o pagamento de dois euros. Deste total, uma maioria de 56% escolheu como presidente do partido uma pessoa cujas opiniões políticas permanecem totalmente desconhecidas, enquanto a sua biografia avisa que, se essas opiniões existem, são hostis a qualquer variante da política de esquerda.
Mas também é verdade que a mutação do Syriza não está completa. No seio do partido, ainda há membros cuja vida política está ligada às tradições de esquerda, ao movimento dos trabalhadores e a uma perspetiva socialista (pelo menos através de uma estratégia reformista, como objetivo final após muitas “etapas” sucessivas ou uma acumulação de reformas, etc.). A principal fraqueza destas correntes é a posição que adotaram durante o período crucial de 2015 e a sua diferenciação tardia, relutante e tímida em relação a Tsipras depois de 2019. Mas indicaram claramente que não têm intenção de seguir um caminho que resultaria num Partido Democrático ao estilo dos EUA.
O conteúdo real da “era Kasselakis” é a limpeza do Syriza destas vozes de oposição. E esta limpeza não se limitará a indivíduos ou a grupos de membros. Incluirá também uma inserção ainda maior de partes da ideologia e da política burguesas no ADN do partido. O resultado será uma transformação ainda mais rápida das ligações do Syriza com estes círculos sociais, numa direção conservadora, com efeitos cumulativos previsíveis. E o que surgirá no horizonte será um novo partido que terá simplesmente de mudar de nome.
Tsipras optou por tentar liderar esta via por procuração, porque implica conflitos e práticas impopulares. Hoje, não conhecemos ainda o calendário desta “transição”, nem sequer sabemos se o congresso do Syriza, previsto para novembro, irá finalmente realizar-se. Não sabemos, evidentemente, se, no final da “transição”, Kasselakis entregará a liderança ou se se mostrará mais resistente e ameaçador para o seu atual mentor (Tsipras). Na minha opinião, o cenário mais provável é a aceleração do declínio do Syriza e a sua degeneração num conjunto de políticos centristas “democráticos” de importância política secundária.
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Uma coisa é certa: esta evolução não será definida unicamente pela situação no seio do partido Syriza. Será influenciada, talvez de forma decisiva, pelas possibilidades de um confronto generalizado entre o movimento social e o governo selvagemente agressivo de Mitsotakis.
Porque, na Grécia, o regresso à normalidade está longe de um facto adquirido. Como todos os anos, na Feira Internacional de Salónica (9-17 de setembro), Mitsotakis teve de apresentar a sua política económica e social.
Mas o contexto era bastante difícil. Os incêndios e as inundações deste verão destruíram mais de 200 mil hectares de terra [2 mil quilómetros quadrados]. As referências hipócritas de Mitsotakis às alterações climáticas não foram suficientes para responder à raiva suscitada pelo colapso dos mecanismos mais básicos de proteção civil, após muitos anos de cortes nos financiamentos públicos e de limitação de contratação de novos funcionários.
Mitsotakis, consciente do regresso à disciplina orçamental a partir de janeiro de 2024, afirmou que a política do seu novo governo consistiria em “menos benefícios” (!) do que 2019-23 mas “mais reformas” (!).
Estes dois aspetos constituem um desafio. Os preços dos produtos alimentares batem recordes atrás de recordes [1] e, neste contexto de austeridade extrema, o governo trava “benefícios” como a ajuda limitada aos mais pobres dos pobres que permitiam um consumo mínimo. Mais difícil ainda é a ameaça de “reformas”: num país onde a semana de trabalho média é a mais longa da Europa (41 horas!), o ministro do Trabalho de extrema-direita, Adonis Georgiadis, introduziu uma lei que permite um aumento espetacular do horário de trabalho: legaliza o trabalho sete dias por semana e abre caminho a um horário de trabalho diário que pode chegar às 13 horas! [2] O trágico indicador dos “acidentes” de trabalho mortais testemunha o esgotamento físico e psicológico das classes trabalhadoras gregas: 2022 foi um ano recorde com 122 mortes no local de trabalho. Nos primeiros nove meses de 2023, registaram-se 135 mortes, o que sugere uma tendência sombria para um aumento…
Foi perante este tipo de “desafio” próprio à “reforma” contra os direitos dos trabalhadores sobre o seu tempo de trabalho que se realizou a primeira greve geral, na quinta-feira, 21 de setembro, durante o novo mandato de Mitsotakis, iniciado a 26 de junho. Apesar da inércia da burocracia da Confederação Geral do Setor Privado, a greve foi um sucesso notável e, como foi organizada algumas semanas após a vitória eleitoral de Mitsotakis, poderá ser um aviso: desta vez não haverá período de lua de mel.
Nos tempos de um sistema político bipartidário muito forte, ou seja quando a Nova Democracia e o PASOK tinham ambos grande poder político, deputados experientes costumavam dizer que não bastava que um deles fosse forte. Segundo eles, uma condição para a estabilidade sistémica é que a votação combinada dos dois principais partidos esteja próxima 70-80% do eleitorado, a fim de garantir o papel tanto do governo como da oposição institucional.
No campo de Mitsotakis, existe atualmente um sentimento de supremacia invencível, devido à crise da oposição e do Syriza em particular. Isto é um erro de vistas curtas e de arrogância. Na verdade, a crise da oposição é um fator de instabilidade para o sistema. Os trabalhadores são levados a compreender que as suas mobilizações são a única força de oposição. Na Grécia, este fator provou em várias ocasiões que pode forçar Mitsotakis e Tsipras a mudar, até radicalmente, os seus cálculos políticos.
Antonis Ntavanellos é membro da direção da DEA e editor do jornal Ergatiki Aristera. Traduzido e publicado pelo A l'Encontre. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.
Notas:
[1] Para além do aumento dos preços dos produtos alimentares – que, segundo as estatísticas oficiais, ronda os 12% ao ano – um estudo recente publicado em setembro pela Associação Grega de Consumidores revela que uma em cada duas famílias reduziu as suas despesas alimentares para poder pagar as contas da eletricidade e do aquecimento. Ora, 75% das famílias reduziram o consumo de aquecimento e 50% o consumo de água quente. Além disso, um terço dos agregados familiares refere problemas de saúde relacionados com as suas condições de habitação. Recorde-se que o salário mínimo por hora é de 5,46 euros e o salário mínimo mensal é de 778 euros. E uma grande parte das novas contratações não é a tempo inteiro. (Nota do A L’Encontre)
[2] O Governo quer introduzir um contrato “zero horas”: os trabalhadores contratados teriam de aguardar a chamada do patrão quando este o entenda, o mais tardar 24 horas antes de começarem a trabalhar, e apenas o tempo efetivamente trabalhado seria remunerado. Há ainda os “trabalhadores em estágio”, contratados neste regime e despedidos ao fim de seis meses sem indemnização. (Nota do A L’Encontre)