O Plano Estratégico nacional da Política Agrícola Comum (PEPAC) vai definir a implementação da PAC em Portugal até 2027 e assim condicionar o futuro da agricultura e floresta do nosso país. Num comunicado subscrito por 14 ONG do ambiente após a divulgação da estrutura do PEPAC, o Governo é acusado de não querer mudar grande coisa em relação ao passado, impedindo assim uma mudança no setor que vá no sentido da sustentabilidade ambiental e social. A falta de transparência e de envolvimento da sociedade civil em todo este processo é também criticada pelas ONG.
Em entrevista ao Esquerda.net e na sequência de uma audição parlamentar com a ministra da Agricultura, o deputado bloquista Ricardo Vicente faz o ponto de situação do debate e das posições que o Bloco tem assumido para contrariar o rumo que o Governo quer dar ao futuro do setor agroflorestal português. E defende que "não basta despejar dinheiro em medidas destinadas à agricultura biológica ou qualquer outra modalidade se não houver gestão rigorosa dos apoios e monitorização dos resultados". O Bloco teme que a grande fatia dos fundos continue a ter como destino oferecer uma renda garantida aos grandes proprietários fundiários do sul do país, "em vez de servirem para promover melhores práticas agrícolas, mitigar e adaptar a agricultura às alterações climáticas". Entrevista de Luís Branco.
14 ONG do ambiente denunciaram na semana passada a falta de transparência do processo em curso de elaboração do PEPAC. O Bloco partilha desta preocupação?
Sim. A crítica destas organizações é justa. O processo tem decorrido de forma muito pouco transparente. O Governo começou por contratualizar a produção da Avaliação Ambiental Estratégica do PEPAC com uma empresa dirigida por Francisco Gomes da Silva, ex-secretário de Estado das Florestas durante o Governo de Passos Coelho e Assunção Cristas, que produziu a famosa lei que liberalizou a plantação de eucaliptos. Francisco Gomes da Silva é também Diretor Geral da CELPA, associação representativa da indústria da celulose. Até hoje ainda não se sabem os resultados e o Governo quer ter o PEPAC pronto no final do ano.
O Governo lançou para consulta pública as linhas gerais do PEPAC, mas não facilitou a sua compreensão, pois os documentos são um embrenhado de referências a leis e regulamentos que os tornam ilegíveis até mesmo para quem está mais familiarizado com a matéria. Além disso, a consulta pública decorreu num curto espaço de tempo, aquando da discussão do Orçamento do Estado e durante o Estado de Emergência. O Governo não procurou o envolvimento da sociedade civil no processo, antes pelo contrário. O Bloco apresentou um diploma para alargar a consulta pública até ao final de Março, mas foi chumbado no Parlamento.
Para apoiar a produção do PEPAC, o Governo criou um Conselho de Acompanhamento onde participavam 17 peritos das áreas do desenvolvimento rural, floresta e agricultura. Entre estes já houve várias manifestações de descontentamento e sete já se demitiram, tendo havido alegações de falta de transparência e desprezo pelo interesse público.
A intenção anunciada para a nova Política Agrícola Comum (PAC) era dar prioridade à atenuação dos efeitos das alterações climáticas, nomeadamente à prevenção dos incêndios rurais. O plano do Governo está a concretizar esta promessa?
Apesar da existência de sinais contraditórios, o envelope financeiro da PAC – 10 mil milhões até 2027 – está a ser fortemente disputado e o Governo demonstra estar a ceder aos interesses da Confederação dos Agricultores Portugueses (CAP). Estudos recentes relacionam a falta de cobertura territorial e social dos subsídios da PAC com o abandono da atividade agrícola de pequena dimensão, a uniformização da paisagem com monoculturas de eucalipto e pinheiro-bravo e a incidência de incêndios de grande dimensão e perigosidade. A região do Pinhal Interior, onde ocorreram grandes incêndios em 2017 (Pedrógão Grande), recebe dez vezes menos apoio por trabalhador agrícola do que o Alentejo.
Recentemente criou-se legislação relevante para transformar a paisagem. É o caso dos Planos de Transformação da Paisagem e das Áreas Integradas de Gestão da Paisagem (AIGP), onde se identificam os territórios de maior risco e se preveem pagamentos de serviços de ecossistema que visam mobilizar os agricultores e os proprietários florestais de forma conjunta para a diversificação paisagística e incorporação de biodiversidade como forma de promover a resiliência do território aos incêndios, com diversas mais-valias para as economias locais. Para concretizar estes planos, mas também para toda a política de desenvolvimento rural, é necessário mobilizar uma parte substancial dos fundos da PAC para estes territórios. O Governo tem de escolher se quer apoiar esta mudança ou continuar a defender a política de privilégio aos grandes proprietários do sul. Até ao momento a segunda opção está claramente a ganhar.
O Bloco de Esquerda teve acesso a um documento do Ministério da Agricultura onde se verifica que o Governo não pretende canalizar os fundos da PAC para prevenir incêndios e apoiar as populações mais vulneráveis. Prepara-se para reduzir o mapa das necessidades e atribuir apoios unitários que são insuficientes para mobilizar os agentes locais.
E no que diz respeito à agricultura biológica e outras agriculturas mais amigas do ambiente, o reforço dos apoios vai mesmo ser concretizado?
A nova PAC tem margem de manobra para aplicar ferramentas mais apropriadas para garantir a mudança, mas é preciso que o Governo as queira aplicar e orçamentar devidamente, com metas concretas e monitorizadas, coisa que não aconteceu até ao momento. Não basta despejar dinheiro em medidas destinadas à agricultura biológica ou qualquer outra modalidade se não houver gestão rigorosa dos apoios e monitorização dos resultados.
Na anterior mudança de quadro, os grandes proprietários fundiários do sul candidataram centenas de milhar de hectares de terras não cultivadas à medida agroambiental produção integrada e geraram um overbooking de 250 milhões de euros. Desta forma receberam uma renda durante anos que em nada contribuiu para transformar a agricultura.
À entrada da nova PAC, os mesmos proprietários já candidataram 650 mil hectares, desta vez à medida agroambiental agricultura biológica. Se tal se concretizar, estes fundos vão-se perder de igual forma em vez de servirem para promover melhores práticas agrícolas, mitigar e adaptar a agricultura às alterações climáticas.
As verbas da atual PAC correspondem em larga medida a rendas por hectare que beneficiam latifundiários detentores de terras classificadas como pastagens pobres e não cultivadas. Isso vai mudar com a nova PAC?
Existe margem de manobra para o fazer, mas o Governo não aparenta ter vontade política para tal. Um terço da despesa pública da PAC está agregada a direitos históricos que estão anexados a áreas agrícolas com registos de produção da década de noventa. Desde então que os beneficiários destes direitos auferem uma renda sobre a qual não têm de prestar contas sobre qualquer serviço prestado. O montante possível de atribuir por esta via tem vindo a reduzir-se ao longo dos quadros, alguns países já abandonaram a lógica dos direitos históricos há muito tempo, mas em Portugal, não só a lógica se manteve, como criativamente se perverteram algumas medidas agroambientais como forma de compensação. Já o demonstrei no caso da Produção Integrada. As regras comunitárias obrigam ao fim deste histórico até 2026, resta saber se o Governo pretende manter o business as usual com base na criatividade, o que é sempre possível. Existem alguns sinais nesse sentido. O Ministério já desenhou uma medida de pagamentos ligados à produção de milho para grão, a ser entregue em função da área cultivada e com orçamentação superior a 10 milhões de euros. Este tipo de ajuda está previsto para compensação de preços de mercado, mas a conjuntura atual demonstra que o preço do milho atingiu níveis recorde, pelo que a medida não tem justificação. Se tal se concretizar, trata-se de mais uma borla para quem tiver mais área disponível para tal.
Quais as principais divergências do Bloco com o plano que está a ser proposto pelo Governo?
Ainda não é conhecido o plano oficial. O Bloco de Esquerda defende que a transposição e gestão da Política Agrícola Comum deve ser feita de forma transparente e participada garantindo equidade territorial e social. Num país tão heterogéneo, do ponto de vista edafoclimático, social e económico, o planeamento das medidas e a sua gestão tem de ser fundamentado com diagnósticos regionais que o Governo se recusou a fazer até ao momento e não pode descurar a urgência climática e as grandes limitações que o atual sistema agroalimentar e florestal apresentam para fazer frente aos cenários futuros. Para garante da coesão e do desenvolvimento sustentável dos territórios rurais, é essencial que a agricultura permita a fixação de residentes jovens e pessoas qualificadas, pelo que a aplicação de fundos deve assumir entre os fatores determinantes o trabalho familiar e as condições de trabalho assalariado, propostas que o Bloco tem feito mas que o Governo recusa.
Para fazer este caminho é preciso romper com os interesses dos grandes proprietários fundiários e do grande agronegócio, que frequentemente aprisionam o território, consomem recursos naturais e financeiros, destroem património cultural e, indiretamente, dirigem a política agroflorestal em Portugal.
No Bloco consideramos que é necessário um programa de transição ecológica para toda a produção agroflorestal, que a PAC não pode continuar a financiar sistemas de produção em monocultura intensiva que uniformizam a paisagem, degradam recursos hídricos e quebram a resiliência do território e das atividades económicas conexas. Este deve ser um ponto de partida para o delineamento da Política Agrícola Comum.