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Matrix e a impossibilidade da revolução

A guerra entre humanos e máquinas, com toda a sua disparidade de forças, coloca-nos abertamente o problema da revolução contra o sistema dominante que se desenvolve nos dois filmes seguintes. Porém, Matrix, apesar das promessas iniciais, não contém uma mensagem revolucionária. Pelo contrário, torna-se uma experimentação da revolução impossível. Por Carlos Carujo.

Ao ler um artigo recente do Correio da Cidadania (1) relembrei um filme que há cerca de 15 anos se tornou moda e originou múltiplas leituras. Não procuro colocar em causa o uso que o artigo de Paulo Metri faz do filme Matrix nem a sua analogia com a estrutura do poder midiático no Brasil. O seu artigo acabou por se tornar um pretexto para revisitar o “universo Matrix” a contratempo.

Metri, como tantos outros, retém de “Matrix” uma parte da história. Centra-se no domínio dos humanos pelas máquinas que os utilizam como pilhas e mantêm num estado de ilusão total, ligados a um sistema virtual que simula a realidade e indica ainda a existência de resistentes desligados dessa máquina totalitária. A sua descrição termina aqui. Provavelmente porque isto basta para o que pretendia retirar do filme. Fico com a impressão que outros pararam a análise mais ou menos no mesmo ponto talvez por diferentes razões. Mas creio que tais paragens são significativas do que parece ter ficado da trilogia concebida pelos irmãos Wachowski para além da espuma dos dias ou do assombro com os efeitos especiais.

Também não sigo várias linhas de análise que seriam interessantes para nos situarmos face a este fenômeno. Não analiso a forma como a cultura mainstream se tornou um bem de consumo e como permanece uma forma de catarse social. Não penso o papel da indústria cinematográfica enquanto instrumento de hegemonia, nem a ironia do blockbuster de Hollywood sobre o controle total da máquina do poder. Não tomo em consideração o estatuto do tempo no capitalismo tardio e a rapidez do consumo que faz com que as informações, as teses e as metáforas artísticas (ou outras) se sucedam a velocidades vertiginosas sem tempo para serem digeridas. Não penso sequer na capacidade de recuperação de um sistema de poder capaz de vender a subversão como um produto.

Não escrevo, ainda, para apresentar nenhuma tese particularmente inovadora acerca do filme, nem para fazer a arqueologia das discussões passadas. Trata-se apenas de partir de uma constatação simples: encontra-se em Matrix tanto (a) uma teoria da dominação que se traduz numa crítica à sociedade contemporânea (sem nunca se referir diretamente ao capitalismo, à sociedade de consumo ou à sociedade do espetáculo) quanto (b) uma teoria da resistência que passa sobre uma tese da possibilidade da revolução. E é interessante o sucesso (relativo) da teoria da dominação e o aparente fracasso (ou a muito menor repercussão) da teoria da resistência.

Esta diferença pode-se explicar por vários fatores: porque este fenômeno segue o sucesso diferenciado dos filmes da trilogia e houve um esgotamento evidente da novidade do “universo Matrix”, porque a primeira parte nos deixa envolvidos em mistérios que permitem a exploração da imaginação. E alguns desses mistérios foram mal resolvidos pelas sequelas, porque a teoria da dominação, envolvida no brilho de referências filosóficas reconhecíveis para os iniciados, seria bem mais interessante de debater do que a saga final do herói, das batalhas e da sua libertação falhada como anticlímax.

1- Matrix e a dominação

Como já foi referido, houve uma profusão de análises sobre o Matrix como sistema da dominação. Descontado o misticismo New Age misturado com a tecnologia de ponta dos efeitos especiais, foram as referências filosóficas que capturaram, em primeiro lugar, as análises. Encontram-se facilmente as referências a Descartes com a sua dúvida hiperbólica colocada na possibilidade do gênio maligno (perante a possibilidade de um Deus Enganador, que nos ludibriasse em todas as impressões, que certeza nos restaria?); a sua tradução contemporânea na experiência mental de Hilary Putnam do cérebro numa cuba (imagine-se que um cientista louco coloca o nosso cérebro num ambiente em que o mantém vivo e em que o alimenta com impulsos de forma a simular a realidade externa, como poderíamos distinguir entre esta experiência e a nossa vida?); a Platão com a sua Alegoria da Caverna (imagine-se que somos como prisioneiros numa caverna que nunca viram o mundo real, apenas sombras que tomamos como realidade, se alguém for libertado à força o que sentiria ao ver o mundo pela primeira vez?) e, claro, a Baudrillard e ao livro “Simulacro e Simulação”.

A referência a Baudrillard é a mais explícita. O livro surge no próprio filme e a frase “bem-vindo ao deserto do real”, com que Morpheus saúda Neo quando este se liberta, é uma referência direta a este. Torna-se, assim, a referência principal para as análises e uma tese central que nos permite ligar o filme não apenas a uma tese sobre o papel ilusório da realidade ou a uma experiência de pensamento sobre os sentidos e/ou o papel da mente, mas a uma crítica da sociedade atual.

Correndo o risco de simplificar demasiado, Baudrillard apresenta o consumismo contemporâneo como um mundo em que a experiência quotidiana é fabricada enquanto simulação da realidade. E, por detrás do simulacro, já não há um real escondido pela máscara da aparência, apenas jogos de simulacros em que a cópia dispensa já o original (2). Assim, a imagem teria passado por quatro fases sucessivas sendo: (a) o reflexo de uma realidade profunda; (b) a máscara e deformação de uma realidade profunda; (c) a máscara da ausência de realidade profunda; (d) algo que já não tem relação com qualquer realidade: a imagem seria o seu próprio simulacro puro (3). Para muitos, Matrix procuraria encenar a tese de que tudo é simulacro.

Em segundo lugar, para além das referências filosóficas, a metáfora da exploração presente no filme tem ressonâncias marxistas: os seres humanos são utilizados como pilhas das máquinas, uma forma de extração de uma mais-valia absoluta, assim como o trabalho humano é a pilha do sistema capitalista, ao mesmo tempo em que a ideologia e o desejo consumista se apresentam como visões totalitárias que dominam toda a nossa vida. Estranhamento de si, coisificação, reificação, alienação como realidade humana são acompanhados quer pela crença de que tudo está bem e pelos pequenos prazeres do sistema quer por um sistema repressivo. O sentimento de conforto de quem é agido pelas forças ideológicas do sistema contrastaria com a dureza do deserto da realidade de forma que a maioria preferiria a ilusão. Matrix, essa máquina da dominação totalitária que se imiscui não apenas na forma de pensar, mas também na forma de sentir e desejar, existe por causa da exploração direta. Descobrimo-nos assim consumidores permanentemente iludidos, mas também trabalhadores permanentemente explorados.

Assim, uma primeira linha de leituras conduziu aos debates sobre qual a “verdadeira” “Filosofia Matrix” (na qual se incluem as tensões entre pós-modernismo e marxismo e entre filosofias e abordagens religiosas do New Age ao messianismo cristão) ou sobre o grau de adequação das imagens à teoria filosófica que lhe estaria subjacente. Uma segunda linha de leituras centrou-se mais na imagem central do sistema de dominação, abstraindo-se das construções teóricas mais elaboradas, tomando o (primeiro) filme como um espelhamento do estado atual da dominação capitalista e procurando divulgá-lo por isso. Interessa-nos aqui mais seguir a pista política do que a filosófica.

Bem entendido, esta distinção assim feita é bastante esquemática. Muitas leituras lhes escapam de maneiras diversas. Uma das mais famosas é a de Slavoj Žižek. Este filósofo reconhece no filme o jogo de referências cruzadas, deixadas em aberto, que se exibe como vago e até inconsistente, sublinhando a ideia que Matrix se apresenta como um teste Rorschach, em que cada um projeta o que quiser e que, portanto, a busca da “Filosofia Matrix” se torna um logro. Assim o parece.

Mas o filósofo esloveno não fica por aqui e revisita a trilogia à medida que ela foi sendo produzida. Primeiro, no artigo “Matrix ou os dois lados da perversão” (4) , Žižek olha para o primeiro filme sob o signo de Lacan: a ideia do “deserto do Real” e o Matrix como o “grande Outro” permitiriam ler o filme seguindo a distinção de Lacan entre Real, Simbólico e Imaginário. Este “grande Outro” é a ordem simbólica virtual, a rede inconsistente que estrutura a nossa realidade, e Žižek defende que “a tese do Matrix é que o grande Outro está externalizado num megacomputador realmente existente”. Assim, Matrix reduzir-se-ia a mais uma fantasia paranoica de Hollywood apostada em dar consistência à totalidade simbólica e fá-lo-ia sob o signo da “derradeira fantasia perversa, a noção de que somos derradeiramente instrumentos do gozo do Outro”, ou seja, nós, livres, necessitaríamos da (e gozaríamos com a) fantasia da prisão (5). Posta desta forma a temática, teríamos uma outra alternativa de leitura entre o psicanalítico, o filosófico e o político, que consistiria em esvaziar o potencial subversivo da teoria da dominação de Matrix para a encerrar na indústria da espetacularidade paranoica para entretenimento de massas.

Na leitura que entende Matrix como uma típica produção hegemônica de Hollywood e não como uma peça contra-hegemônica que escaparia de alguma forma por entre as mãos do sistema, este não seria assim tão diferente de filmes com Arnold Schwarzenegger em “Terminator” (cuja temática é a resistência humana às máquinas que dominam no futuro) e “Total Recall” (cuja temática é a revolta dos explorados habitantes de Marte) ou o mais recente “Truman Show” protagonizado por Jim Carrey (cuja temática é a realidade enquanto ilusão total: o protagonista descobre que toda a realidade que conhece é, afinal, um reality show transmitido na televisão). O político e o filosófico seriam máscaras pseudo-sofisticadas para encenar o mesmo de sempre, uma revolta espetacularmente deslavada.

2- Matrix e a resistência

Se Matrix fosse apenas uma teoria da dominação total, seria como que um remake mais elaborado da mensagem do filme “They live” de John Carpenter em que o herói (Nada) descobre uns óculos que mostram a “verdadeira realidade”, na qual os seres humanos são dominados por extraterrestres constituindo todas as mensagens publicitárias e toda a comunicação televisiva em apelos consumistas e à obediência. Até o mesmo Žižek, no seu documentário de 2012, “The Pervert’s Guide to Ideology”, faz uma crítica do filme que, sendo mais positiva do que a que dedica ao Matrix inicial, parece seguir o mesmo roteiro: o filme mostra uma “ordem invisível que sustenta a liberdade aparente”, apresenta a ideologia através da metáfora dos óculos e a libertação da ideologia como dolorosa e conclui que, tal como Matrix, mesmo quando pensamos que escapamos da ideologia estamos dentro da ideologia. Entre o sinal emitido para a mente e a ligação direta ao corpo, entre a colocação dos óculos e o desligar dos fios, a analogia seria simples.

Só que é mais complicado aplicar a analogia aos processos de libertação (em “They live” a libertação acontece simplesmente através de um desligar do sinal) e existe Matrix para além do primeiro filme. E é, aliás, justiça lhe seja feita a Žižek, um dos que se interessa pelas sequelas depois de perdido o brilho midiático inicial da discussão, e quem mais claramente coloca a segunda questão que nos interessa: Matrix não só como teoria da dominação, mas também como teoria da resistência.

Depois da exibição do segundo filme, Žižek regressa à carga em “Fantasia Recarregada – Sobre os filmes Matrix” (6), defendendo que o segundo filme é uma metáfora do estado da resistência de esquerda ao capitalismo e dos seus dilemas estratégicos: “será a solução, contudo, arriscar a rebelião total, resignar-se a jogar os jogos locais de ‘resistência’ enquanto se permanece no Matrix, ou até envolver-se numa colaboração transclassista com as ‘boas’ forças do Matrix?” Assim, o filósofo esloveno coloca o sarrafo muito alto antes de conhecer o conteúdo do filme que conclui a trilogia: “este terá de produzir nada menos do que uma resposta apropriada aos dilemas da política revolucionária hoje, um diagrama para o ato político que a esquerda desesperadamente procura”.

Claro que, do seu ponto de vista, esta conclusão falhará a vários níveis. Em “Revoluções recarregadas” (7), depois já de assistir ao terceiro filme, Žižek insiste em pormenorizar as inconsistências do filme, acrescentando o óbvio que “o fracasso da narrativa, a impossibilidade de construir uma ‘boa história’, assinala uma falha social mais fundamental”, ou seja, o filme não resolve o que a inteligência coletiva da militância política e social não conseguiu resolver dadas as correlações de forças.

Mas regressemos ao enredo para ensaiar clarificar a forma como a teoria da resistência se coloca no Matrix: depois de resgatado pela resistência que vive na última cidade humana, Neo, o herói, descobre-se como aquele que é esperado, segundo as profecias, para liderar a revolta. Ainda no primeiro filme da saga, esta mitologia do herói e do pequeno grupo de iluminados que escapam ao domínio das máquinas convida-nos a experimentar a possibilidade da rebeldia já enquadrada na forma do individualismo heroico, próprio dos filmes de aventuras e no coletivismo vanguardista da minoria esclarecida.

A guerra entre humanos e máquinas, com toda a sua disparidade de forças, coloca-nos abertamente o problema da revolução contra o sistema dominante que se desenvolve nos dois filmes seguintes. Porém, Matrix, apesar das promessas iniciais, não contém uma mensagem revolucionária. Pelo contrário, torna-se uma experimentação da revolução impossível.

Regresse-se ainda outra vez ao enredo: o “UM”, o salvador esperado, vem-se a saber, já é uma resposta do sistema. A revolta reduz-se a uma farsa e parece que não se escapa de forma alguma ao totalitarismo. Afinal, o sistema Matrix já tinha tido duas versões anteriores (uma utópica e outra distópica) que falharam, e, mesmo depois de aperfeiçoado, continua a ter falhas: há um conjunto de seres humanos que não se adaptará nunca à simulação.

Assim, é o próprio sistema que vai ao ponto de prever o que fazer com esses renegados: deixa-os fugir, criar a sua cidade e esperar pelo seu salvador que de gerações em gerações surge. No momento crucial, este é confrontado com a escolha entre a destruição da resistência e a destruição total da humanidade. A lógica fá-lo-á salvar a humanidade a custas da revolta e, destruídos os excedentes de inadaptados, o ciclo da permanência da mentira continua: ao pseudo-salvador é concedida a possibilidade de libertar alguns seres humanos e continuar o processo. Matrix poderia, pois, ser o nome cínico do eterno retorno da recuperação em que a pseudo-revolta é já uma peça na grande engrenagem desse sistema, que não só não deixa nenhum espaço para que uma alternativa viável se desenvolva como inventa formas de se alimentar da própria tentativa de criação de alternativas.

Contudo, a história da impossibilidade da revolução parece ainda quebrada por momentos pela diferença que representa Neo relativamente a tudo isto. Afinal, o herói é uma encarnação anômala do salvador e faz a escolha inesperada: por amor prefere arriscar o futuro da humanidade inteira, possibilidade que a frieza das máquinas parece não contemplar. Esta diferença, que escapa ao domínio “político” da narrativa, é capturada pela narrativa habitual do romantismo de ficção científica: o amor é o que baralha o domínio das máquinas, são os sentimentos que supostamente seriam uma fraqueza face às máquinas que afinal constituem a superioridade humana. Porém, nem a diferença vivida na modalidade “Terminator” acaba por ser suficiente para desestabilizar o sistema. O calor humano não triunfa da frieza maquínica nem a revolução com ele. E aí reside uma diferença importante da série Matrix e uma recaída na perspectiva política.

Uma outra diferença que se situa no interior do tradicional enredo político simples da oposição entre dominantes e dominados e que contribuirá decisivamente para enterrar a possibilidade revolucionária: o estatuto do vilão maquínico que persegue Neo, o “Agente Smith”, altera-se. De agente repressivo do Matrix, Smith transforma-se em revoltado quando se torna um programa obsoleto que iria ser destruído pelo próprio sistema. É esta revolta que acrescenta o problema do terrorismo (8) à equação revolucionária: não se trata somente de uma dicotomia entre libertação e dominação, a desestabilização do sistema implica a possibilidade da aniquilação total, de uma vitória de forças ainda mais terríveis. Se a história do Agente Smith é uma anomalia brutal do sistema ou se este permanece onipotente, sendo assim uma outra armadilha do sistema, caberá ao espectador escolher. Certo é que face à ameaça que supostamente poderá destruir ambos os lados da contenda, Neo faz finalmente a escolha que se esperava dele, a escolha de colaborar com o sistema, o que tinha evitado fazer por amor, o que nesta situação implica sacrificar-se, salvar a resistência, mas desistir da revolução.

A mensagem libertadora do filme obscurece-se neste ponto. Matrix passa também a poder ser lido como um programa de desistência: face ao terrorismo e dada a impossibilidade da revolução, há que colaborar com o sistema para salvar o mundo. Curiosamente, a primeira parte da trilogia estreia antes dos ataques de setembro de 2001, ao passo que as segunda e terceira partes estreiam imediatamente a seguir. E, apesar do clima político, nem a analogia com o terrorismo que estava na ordem do dia permite aos dois últimos filmes replicar o sucesso dos debates que o primeiro filme despoletou.

Da contingência do terrorismo à absolutização da situação, o programa político que desiste da libertação é até apresentado como uma vitória: o sacrifício do herói obtém um “acordo de paz” entre humanos e máquinas que prevê que quem se quiser desligar do Matrix o poderá fazer. Na certeza de que apenas uma minoria o fará e a paz reinará até os humanos livres serem demasiados e ameaçarem as máquinas, seguindo-se provavelmente novo ciclo de guerra. Os humanos libertos celebram o fim da guerra que significa desistir de libertar a maioria alienada e viver separadamente em comunidade, a que se juntam os que no interior do sistema já tenham desenvolvido a intuição (de que forma?) do que seja o sistema de dominação e estejam preparados para serem desligados dele. A revolta das pilhas exploradas é negada pela vanguarda cultural que se contenta com a sobrevivência isolada. A sua “libertação” não consegue apagar o fato de que o preço é a aceitação da exploração das massas, essa exploração que, longe de ser uma simulação, é o dado primeiro de todo sistema político e social em que vivemos.

Do ponto de vista “político-estratégico”, a trilogia fica resolvida neste final. Contudo, como narrativa que se quer em aberto, Matrix utiliza constantes interferências à leitura meramente política (do individualismo do herói, ao binarismo romântico, à fusão religiosa) que tanto podem abrir o caminho da identificação como conduzir a curtos-circuitos entre si. E, assim, a tensão sobre a mensagem do filme para além do seu aspecto da revolta fracassada (para quem a queira procurar) não é resolvida e implica uma escolha. Escolhendo a Filosofia do simulacro, tratar-se-ia de desfazer a simplicidade platônica do desvelar dos falsos sistemas de dominação em nome da distinção entre aparência e realidade (retratando a passagem das fases 1 e 2 das imagens em Baudrillard para as fases seguintes).

Daí as viragens do argumento, sobretudo, as que mostram que revolução é uma farsa e a que mostra que Neo é capaz de realizar o impossível, não só no interior do Matrix, onde aprendeu a “dobrar” as regras da física, mas também fora dele. Onde a Filosofia do simulacro pode ler rebuscadamente que isto indica que, afinal, o “mundo verdadeiro” seria outro simulacro, a religião impõe a sua simplicidade desarmante. O saldo final parece ser favorável a um desânimo político minimalista disfarçado de festa da vitória e a uma religiosidade etérea maximalista, ostentatória da ideologia do sacrifício. Afinal, a revolução, tão indesejável porque perigosa quanto impossível, permanece apenas vagamente como a promessa mística que um dia o iluminado voltará... se for preciso. E Neo é retratado no final como um Cristo.

Coloque-se ainda mais uma questão ociosa: afinal que resposta estratégica em concreto é a descrita alegoricamente no filme? Sabendo que não existirá uma resposta direta e que o caminho está armadilhado, exploremos duas possibilidades bem mais pelo que nos dizem sobre a revolução do que pela forma como estão ligadas às películas.

2.1

Tal como se apresenta a teoria da dominação de Baudrillard, em “Simulacros e Simulação”, também a teoria da resistência poderia ser encontrada na mesma fonte. No final deste livro, o filósofo francês esforça-se por afastar as teorias da resistência concorrentes em nome daquilo a que chama o “terrorismo teórico”. Escreve: “contra esta hegemonia do sistema podem exaltar-se as astúcias do desejo, fazer a micrologia revolucionária do quotidiano, exaltar a deriva molecular ou mesmo fazer a apologia da culinária. Isso não resolve a imperiosa necessidade de fazer fracassar o sistema na claridade plena. Isso só o terrorismo o faz”. (9)

Na sequência da defesa deste terrorismo teórico, apela-se à “imagem de uma falha em cadeia” uma vez que “só ela mobiliza o imaginário”. Mas numa reviravolta que poderia ser cinematográfica, logo a seguir Baudrillard parece confessar a impotência do seu terrorismo teórico: no mundo pós-moderno já não há radicalidade, nem a morte já tem sentido e “ao niilismo ativo da radicalidade o sistema opõe o niilismo da neutralização”. A desesperança ganha: “estamos na era dos acontecimentos sem consequências (e das teorias sem consequências)”. Nestas circunstâncias, o que fica do terrorismo teórico? Uma ainda mais vaga imagem da sedução, a confissão de inconsequência, a estetização da rebelião necessária, mas fracassada. Será a conclusão de Matrix a poética destes impasses?

2.2

Pode-se escolher uma pista mais ousada: a de que a teoria da resistência apresentada nos filmes antecipa algumas teorias que irão estar na garganta dos movimentos alterglobalização. Recorde-se que 1999, ano de estreia do primeiro filme, é o ano dos protestos de Seattle contra a Organização Mundial do Comércio e que correspondem a uma nova vaga de mobilização social e às suas discussões.

Apesar de anacrônico, parece adequado comparar a imagem da cidade de Zion, libertada das máquinas, mas separada do resto da humanidade, à comuna de Holloway, que pretende “mudar o mundo sem tomar o poder” (2002) e às teorias da fuga como forma de resistência (o livro “Império”, de Negri, também é de 2002).

Claro que convém não exagerar na capacidade dos filmes captarem o zeitgeist esquerdista nem tomar demasiado literalmente esta ideia. Mas, como o filme da impossibilidade da revolução nas sociedades contemporâneas, Matrix é tanto uma celebração da fuga para a comuna como uma espécie de exéquias do potencial libertador desta situação: afinal, ao contrário de muitos dos seus defensores, apresenta-a como uma forma de acordo de paz com o sistema e expõe a impossibilidade da fuga massiva enquanto estratégia. Por si só e sem disputa direta com a totalidade do sistema, poucos no interior do Matrix são capazes de atingirem sozinhos a possibilidade de serem desligados. Os outros são abandonados sem remorsos na festa da libertação que procura esquecer pela euforia que a comuna isolada é a ilha que o sistema deixa existir na medida simples em que não coloque em causa o sistema. Derrotada, a possibilidade da revolução parece derrotar também a radicalidade das suas alternativas numa voragem niilista...

3- Bensaïd e a avaria na Matrix

Concluo, pela parte que me toca, com a escolha de um companheiro que não Baudrillard ou Lacan para me acompanhar no que resta da viagem ao interior do Matrix e à sua tese da impossibilidade da revolução. Escolhi entrar na máquina com Daniel Bensaïd, particularmente através do seu derradeiro “O espetáculo, estádio último do fetichismo da mercadoria – Marx, Marcuse, Debord, Lefebvre, Baudrillard” (10).

Neste livro, Bensaïd apresenta-nos uma genealogia da ligação entre as teorias da dominação total do consumismo contemporâneo e as teorias sobre a impossibilidade da revolução, que vai do “círculo vicioso sem saída da dominação (e do fetichismo) absolutos” às suas consequências: “desrealização do mundo”, “eclipse da política” e “impasse estratégico” (e a “postura da radicalidade sem política (entre estética e moralina)” - (11). Um conjunto de conceitos que parecem feitos à medida para serem aplicados ao Matrix.

Matrix, não interessa se consciente ou inconscientemente, se como sintoma ou espelho das esperanças de libertação do capitalismo, enquadra-se nesta história. E, por paradoxal que pareça, já que se assemelha a um conto revolucionário, Matrix é também, não nos esqueçamos, uma ode ao capitalismo do início do século XXI. De toda a história humana, o sistema escolhe simular aquilo que nomeia como “o auge da vossa civilização”, o capitalismo ocidental.

Matrix é, pois, um mundo sem historicidade e sem outras geografias possíveis, uma sociedade que, para além de nos querer impor a ideia de que todo o conflito já é parte do sistema, nos remete para uma situação em que o conflito é impossível. Entra-se na Matrix sempre pela simulação da sociedade norte-americana, entra-se na Matrix e não colocamos a questão da pobreza que parece tão deslocada desta fantasia, ao mesmo tempo em que tão próxima de qualquer perspectiva que se creia emancipatória (se alguém estivesse ligado à máquina sendo pobre que razões teria para continuar ligado?), entra-se na Matrix como se aí, nessa pseudo-realidade desvalorizada, ninguém lutasse.

Matrix só se entende enquanto forma de “anulação espetacular do conflito”, ideia utilizada por Bensaïd (e que mais uma vez não se referindo em nada ao Matrix a ele se cola tão bem, filme da guerra permanente que termina na utopia da paz podre). Acontece que a anulação espetacular do conflito foi agora anulada espetacularmente pelos conflitos reais. Matrix avariou. A crise não é uma experiência de Realidade Virtual e, por isso, talvez Matrix não seja filme para acompanhar estes tempos de crise econômica de longa duração. A experiência da crise não é facilmente compaginável com a noção do sistema ideológico perfeito e mesmo a manobra de a converter, ela própria, num logro do sistema parece demasiado ficcional.

E, no entanto, Matrix ao mesmo tempo, se assim o escolhermos, sussurra-nos desde o seu fracasso que o tempo do “eclipse da razão estratégica” (de que também fala Bensaïd) só pode ter terminado e que nos devemos emaranhar nos dilemas da política sem lhe fugir. O que se impõe agora não cabe na filmologia tradicional: organização, trabalho quotidiano a partir de baixo, sujar as mãos na política. Esta revolução não será cinematografada à moda de Hollywood. Mas isso é defeito do gênero, por mais inteligente que o roteiro seja...


Notas:

1) Paulo Metri, Triste Notícia, disponível em http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=9563:submanchete300414&catid=82:paulo-metri&Itemid=206

2) “Toda a fé e boa-fé ocidental se empenharam nesta aposta da representação: que um signo possa remeter para a profundidade do sentido, que um sentido possa trocar-se por sentido e que alguma coisa sirva de caução a esta troca – Deus, certamente. Mas e se o próprio Deus pode ser simulado, isto é, reduzido aos signos que o provam? Então todo o sistema perde a força da gravidade, ele próprio não é mais do que um gigantesco simulacro – não irreal, mas simulacro, isto é, nunca mais passível de ser trocado por real, mas trocando-se em si mesmo, num circuito ininterrupto cujas referência e circunferência se encontram em lado nenhum.” Jean Baudrillard, Simulacros e Simulação, Relógio D’Água, 1991. Pag. 13.

3) Idem, ibidem.

 4) Philosophy Today, Celina, 1999, volume 43, disponível online em: http://www.egs.edu/faculty/slavoj-zizek/articles/the-matrix-or-two-sides-of-perversion

 5) “Aí reside a intuição correta do Matrix: na sua justaposição dos dois aspetos da perversão – por um lado, a redução da realidade a um domínio virtual regulado por regras arbitrárias que podem ser suspensas; por outro lado, a verdade escondida desta liberdade, a redução do sujeito a uma absoluta passividade instrumentalizada. Por outras palavras, o Matrix acerta mas numa ordem errada (invertida), i.e., nós apenas temos de alterar os termos para ter o verdadeiro estado de coisas. O que o filme nos providencia como a cena do nosso acordar para a nossa verdadeira situação é efetivamente o seu exato oposto, a próprio fantasia fundamental que sustém o nosso ser. Não estamos a sonhar numa Realidade Virtual que somos agentes livres na nossa realidade comum quotidiana, enquanto somos verdadeiramente prisioneiros passivos explorados pelo Matrix no fluido pré-natal; ao invés a nossa realidade é de agentes livres no mundo social que conhecemos, mas de forma a sustentar esta situação, temos de suplementá-la com a repudiada, terrível e iminente fantasia de sermos prisioneiros passivos explorados pelo Matrix no fluido.” Idem.

6) Em Lacan.com. No. 16, 2003, disponível em http://www.egs.edu/faculty/slavoj-zizek/articles/fantasy-reloaded/

7) Disponível em: http://www.lacan.com/zizreloaded.htm

8) No último dos artigos de Zizek aqui citados, este apresenta uma alternativa à leitura aqui apresentada de que Smith personifica o terrorismo (sendo que a perspetiva do terrorismo tem a seu favor o facto de ser um tema central no “Simulacros e Simulação” de Baudrillard). Para Zizek o “agente Smith” é uma “alegoria das forças Fascistas”: “assim a lição do filme, é, na melhor perspetiva, a de uma luta anti-fascista: os rufias brutais fascistas desenvolvidos pelo Capital para controlar os operários (…) ficam fora de controlo e o Matrix tem de recrutar ajuda dos humanos para os esmagar da mesma forma que o capital liberal teve de recrutar a ajuda dos comunistas, o seu inimigo mortal, para derrotar o Fascismo…” O problema é que o tema do anti-fascismo não foi tematizado pelas forças comunistas como o fim da possibilidade revolucionária da mesma forma como esta é colocada nos filmes.

9) Jean Baudrillard, Simulacros e Simulação, Relógio D’Água, 1991. Pag. 200.

10) Le Spectacle, stade ultime du fétichisme de la marchandise – Marx, Marcuse, Debord, Lefebvre, Baudrillard, Nouvelles Éditions Lignes, 2011.

11) Idem, pags 131 e 132, (anexo “temas”).

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