Está aqui

Mariana Mortágua: “Melhorar as condições de trabalho é condição para aumentar a produtividade”

Nesta entrevista, Mariana Mortágua fala sobre o panorama económico nacional, a integração na União Europeia, o aumento das desigualdades e a guerra na Ucrânia.
Mariana Mortágua. Foto de Ana Mendes.

Segundo a Pordata, o rácio da produtividade do trabalho por hora trabalhada em paridade do poder de compra em Portugal é um dos mais baixos da UE. Como achas que é possível conciliar a melhoria das condições dos trabalhadores incluindo a redução do horário de trabalho com o aumento da produtividade? 

Para já, não há nenhuma relação direta entre número de horas de trabalhadas e produtividade. Não há um problema de compatibilização, ou seja, a lógica de “como é que se melhora as condições de trabalho e se consegue aumentar a produtividade ao mesmo tempo?” não é necessariamente uma lógica que necessite ser compatibilizada, porque melhorar as condições de trabalho é uma condição para aumentar a produtividade. E se nós olharmos para os países mais desenvolvidos o que vemos é que melhores horários de trabalho e melhores condições de trabalho são uma condição para o aumento de produtividade. Em Portugal existiu durante muito tempo a ideia de que longas horas são uma condição de produtividade, mas isso não é verdade. Não é preciso encontrar grandes milagres para melhorar. Para além de melhores condições de trabalho, há duas questões que são importantes, uma tem a ver com a falta de capital, no sentido de modernização da estrutura produtiva, ou seja, de máquinas, de modernização do aparelho produtivo que permite aumentar também a produtividade. E a outra tem a ver com a formação dos empresários, ou seja, o patronato em Portugal tem muito baixa formação e isso foi identificado como um dos problemas do atraso da economia, não tem a ver com a produtividade do trabalho, tem a ver com a forma como se organiza ao trabalho, e como o patronato e a função pública consegue organizar processos produtivos, que tanto no Público como no Privado, especialmente nas pequenas e médias empresas ainda tem muito que se lhe diga. Se queremos aumentar a produtividade temos de pensar em todos esses aspetos, mas de forma nenhuma os direitos laborais são contraditórios ao objetivo de melhorar a produtividade, eles são uma condição de produtividade, não são uma coisa que é possível compatibilizar com.

 

Segundo um estudo do IML, desde 2016, a margem de lucro bruta das empresas não financeiras em Portugal está a diminuir, e encontra-se abaixo da média da UE, devido a fatores como a excessiva carga fiscal, o excesso de burocracia e a dificuldade de acesso a financiamento. Achas que se a competitividade internacional das empresas nacionais aumentasse, isso iria levar a maior empregabilidade e melhores salários?

Não... Eu acho que o lucro não tem de ser um medidor de nada, o que é preciso medir é o investimento fixo, os níveis de produção, os níveis de riqueza produzida. As empresas servem, em teoria, para produzir investimento e riqueza, criar postos de trabalho e dinamizar a economia. É óbvio que é do interesse do empresário ter lucro, mas se eu quero medir o desenvolvimento de uma economia, eu não quero medir a taxa de lucro, eu quero medir a taxa de emprego, a taxa de investimento e a taxa de crescimento económico, porque nós não nos podemos esquecer que o lucro é o que sobra depois de tudo isto. Depois de se ter investido, contratado os trabalhadores e ter pagado os impostos, o lucro é o que sobra. Não me parece que o lucro seja um medidor de desenvolvimento produtivo ou da economia. E também não me parece que as condições para uma economia ser mais produtiva se baseiem na descida de impostos generalizados sobre as empresas, porque isso entra numa competição fiscal que não leva a lado nenhum, a não ser à depauperização dos orçamentos dos vários países, uma corrida para o fundo de uma competição desenfreada. Acho que se queremos olhar para a produtividade e para o crescimento económico devemos olhar para condições estruturais que fragilizam a economia portuguesa, o financiamento é uma delas, o acesso a capital é uma fragilidade grande. Mas também existe uma grande falta de orientação industrial, é uma economia muito largada sobre si mesma e que depois acaba por seguir setores um bocado aleatórios, alguns deles muito rentistas. A existência de grandes monopólios também é um problema para as pequenas empresas, porque esses grandes monopólios controlam setores essenciais como a luz e as telecomunicações, que são essenciais para a criação de um ambiente de negócios mais favorável às pequenas empresas. Eu diria que há muito por onde pegar que não seja a mesma ladainha da carga fiscal, porque isso, na verdade, é só um pretexto para se pagar menos impostos. Se nós olharmos não só para Portugal, mas para as cidades ocidentais desde os anos 60 e 70 até agora, as empresas pagam cada vez menos impostos, o lucro paga menos impostos do que alguma vez pagou desde que se construíram os Estados Sociais no pós-guerra. E por isso, é uma queixa que não tem fundamento nem histórico, nem teórico, é uma queixa política que tem um fundamento político, que é continuar a degradar os impostos pagos pelas empresas pela parte do capital e isso faz com que Estados estejam menos financiados, que privatizem e enfraqueçam mais serviços públicos, criando mais negócios. É uma pescadinha de rabo na boca, e depois a carga fiscal acaba por cair muito sobre o consumo e o trabalho, e esse sim parece-me um processo importante de reverter.

 

O Bloco já manifestou vontade em desprivatizar empresas como a REN, a GALP, a EDP, os CTT e a ANA que teriam um custo estimado em 20 mil milhões de euros para o Estado. Qual seria o plano para que estas nacionalizações não descapitalizem a economia, aumentem a dívida pública e causem um grande dano económico? 

O Bloco apresentou um horizonte necessário. Vamos lá ver uma coisa, a China não tomou nenhum partido nesta guerra, se tivesse tomado, imaginemos que a China apoiava a Ucrânia. Como é que Portugal ia fazer, sendo a China a dona da sua empresa de produção, distribuição e comercialização de eletricidade? E já foi da REN, hoje em dia já não é. Mas é óbvio que há empresas que não podem ser privadas, têm de garantir políticas públicas. Antes de discutirmos o dinheiro, vamos discutir o princípio. Elas devem ou não devem ser públicas? Acho que sim, devem. Os países que se atreveram a privatizar os CTT, a maior parte deles voltou atrás, porque aconteceu lá o que aconteceu cá, o serviço ficou muito degradado, e eles perceberam que precisavam de renacionalizar os CTT e de travar processos de privatização. O que o Bloco propõe é uma política de recaptura dessas empresas para o serviço público, mas que é faseado ao longo do tempo, ninguém diz que amanhã o Estado Português vai pagar 20000 milhões de euros por uma empresa, por duas ou por três. Há uma estratégia no caso dos CTT, da TAP, da REN, que é um centro de despacho, que é um sítio mais importante da organização do trabalho, que nos permite ir começando a recuperar controlo em algumas empresas, e ter esse como um projeto de [desprivatização]. Mas uma coisa também digo, as pessoas apressam-se muito a fazer as contas ao que se gasta a nacionalizar, mas nunca fazem as contas aos lucros que as empresas davam ao Estado e deixaram de dar, e passaram a dar aos investidores estrangeiros. Esse dinheiro, quando tanto se fala de falta de capital na economia portuguesa, vai todo para fora do país. Os lucros da EDP, da ANA, dos CTT saem todos do país no mesmo momento em que são distribuídos, porque vão todos para os investidores estrangeiros, e estas são empresas que tem lucrado muito. A EDP tem sido ao longo dos tempos uma das empresas mais lucrativas, portanto Portugal perdeu milhares de milhões de euros por ter privatizado essas empresas e abdicado dos seus lucros. O mais importante não é só pensarmos o custo, é óbvio que tem um custo, nós temos de pensar a longo prazo como é que fazemos para minimizar esse custo, mas porque é tão necessário para ter políticas públicas, até ambientais, controlar algumas empresas estratégicas na economia.

"A economia beneficia se tiver um serviço público mais sustentável"

Portugal é um dos países da UE com menor percentagem de funcionários públicos, no entanto o seu gasto com a função pública é superior à média da UE. Como é que achas que é possível aumentar o número de funcionários públicos e conseguir manter o equilíbrio das contas públicas?

Gastos de função pública nem sempre querem dizer melhor função pública, por duas razões. [Primeiro], altos níveis de pobreza e de desemprego significam gastos de função pública, porque é preciso um Estado Social para financiar, e a Segurança Social é das grandes fatias do orçamento da função pública. E depois, temos outro problema em setores como a segurança social e a saúde, em que uma boa parte do orçamento é dirigida diretamente para o setor privado, através da compra de serviços que podiam estar a ser feitos no Público. Quando a Direita fala em gastos de setor público é uma afirmação muito populista e ideológica, mas com pouco conteúdo, porque uma parte destes gastos vão diretamente para o Privado, porque o Público não tem capacidade de resposta. O que é preciso é tornar o setor público mais eficiente, e eliminar os desperdícios. Só que os desperdícios no setor público não são o excesso de funcionários e de meios, pelo contrário, têm a ver com a falta de investimento. Quando não se faz investimento durante anos no serviço e se deixa acumular problemas estruturais, a médio prazo esses problemas são muito mais caros do que investir. O SNS gasta mais em horas extraordinárias do que a contratar novos médicos; o que gasta em horas extraordinárias daria para contratar mil novos médicos. O SNS paga mais a um tarefeiro, que é um [trabalhador a] recibos verdes que vai fazer um trabalho indiferenciado, do que paga a um técnico de serviço por hora, porque se deixaram ficar sem médicos e agora pagam balúrdios a tarefeiros. Isto são só exemplos de processos que não têm a ver com dinheiro, mas sim com a vontade de dar dinheiro em investimentos estruturais, que depois se transformam em problemas caríssimos de manter e que só serão resolvidos quando puder haver um investimento estrutural nesses serviços públicos. A ideia de “o que é que é barato e o que é caro” não se pode fazer assim. Às vezes investir hoje significa ter um melhor serviço público e mais sustentável amanhã. E reorganizar os serviços públicos também é muito importante. Portanto, eu acho que é compatível ter um bom serviço público, contratar mais funcionários e garantir a sustentabilidade das contas públicas, até porque a economia beneficia se tiver um serviço público mais sustentável.

 

Portugal lidera o crescimento económico da UE em 2022 com uma subida de 5,8% do PIB face a 2021, no entanto a recuperação da economia portuguesa pós-pandemia é a 4ª mais lenta da UE. Qual é que achas que seria a melhor medida para recuperar mais rapidamente a economia neste momento?

Aumentar os salários e diversificar os sectores. A economia portuguesa demorou tanto a recuperar porque é altamente dependente do turismo, e, portanto, caiu muito e muito rápido, e agora está a recuperar. Como demorou mais a recuperar, parece por efeito de base que está a recuperar muito, mas não, está só a recuperar mais devagar. E está a ter não só, o fluxo do turismo que volta, como também o benefício de a guerra estar a direcionar mais turistas para Portugal. Eu acho perigoso uma economia que se concentra toda num setor de atividade, ainda para mais um setor que tem consequências sociais e ambientais brutais. O turismo de massas tem consequências muito sérias a nível do ordenamento do território, da habitação e do ambiente. É claro que uma rápida recuperação depende de quanto é que nós conseguimos aguentar durante a recessão. Se conseguirmos aguentar postos de trabalho e empresas, e não entrarmos numa espiral de austeridade e de corte de salários, então é mais fácil recuperar. A crise da pandemia mostra isso, por oposição à crise de austeridade. Como não houve austeridade foi mais fácil recuperar, mantiveram-se os contratos, as moratórias bancárias, tudo isso permitiu manter a economia em suspenso. A subida dos salários é essencial para manter uma procura sólida e consistente, mas a longo prazo falta ter uma política industrial que pense quais são os destinos da economia e os setores que é preciso desenvolver, para não deixar uma economia demasiado dependente do turismo de massas, como neste momento é.

"União Europeia não tem de ser um projeto de controlo, austeridade e condicionamento das democracias"

Um estudo da Defending Democracy revela que 88℅ dos portugueses acha que o facto de pertencer à UE é um fator positivo. Sendo que o Bloco sempre manteve uma posição intransigente em relação à UE, o que achas que deveria mudar na nossa política externa em relação à UE? 

Eu diria que o Bloco teve uma postura bastante transigente com a UE e demos todas as chances. A UE e as instruções do euro é que foram absolutamente intransigentes com Portugal, com a Grécia e com a Itália. Foi a posição de intransigência da UE e da Zona Euro, especialmente a partir do processo da Grécia, que levou muitos democratas de esquerda a rever a posição que tinham sobre a possibilidade de um projeto alternativo no contexto europeu como ele hoje existe. A partir do momento que há um governo democrático que ganha eleições na Grécia que quer ter um programa diferente, que não é assim tão radical, só não quer cortar salários e pensões e não privatizar a saúde e o sistema de proteção social, e a resposta da UE foi esmagá-los e mandar o BCE cortar financiamento aos bancos e forçá-los a um programa de austeridade. A partir deste momento, torna-se muito difícil para um projeto de esquerda conceber a ideia do que é viver na UE, porque as regras da UE proíbem praticamente qualquer política de esquerda e isso é um problema de democracia como é lógico, porque estamos a limitar as possibilidades políticas de um projeto. Não basta a um partido ou a um país mudar eleitoralmente o seu programa, depois tem de ter certeza de que esse programa mesmo depois de sufragado e de ganhar eleições, está de acordo com as regras europeias, que, por norma, têm sido liberalização e de austeridade. E por isso é que a nossa crítica é muito forte, e achamos que tem de haver, e quando houve nós fomos bem-sucedidos, uma política de confrontação e de desobediência aos ditames da Europa quando é preciso. A UE não pode determinar se Portugal sobe ou não sobe o seu salário mínimo, não pode determinar o que é que Portugal faz com a sua empresa de energia, se ela deve ser pública ou privada, isso são decisões soberanas dum país que só democraticamente e internamente podem ser sufragadas e decididas. Essa é a postura que me parece mais razoável, mas não é uma política de régua e esquadro. Temos todos de compreender que a UE é um processo consolidado na sociedade portuguesa, mas isso não quer dizer que ele não possa ser disputado. Não tem de ser um projeto de controlo, austeridade e condicionamento das democracias. E por isso é esse outro projeto que eu defendo, sabendo que ele é politicamente muito difícil, mas já tivemos mais perto e já tivemos mais longe. São dinâmicas e dialéticas políticas com as quais temos de viver, mas não dar como garantido que temos de viver num mundo altamente condicionado por um poder burocrático e muito pouco democrático como são as instituições europeias.

 

Disseste numa entrevista que achas que a UE serviu maioritariamente um propósito político de uma economia capitalista e liberal. Mas ao mesmo tempo esta defende políticas ecologistas. Até há partidos políticos que são ao mesmo tempo ambientalistas e europeístas. Achas que se possa afirmar que “o capitalismo não é verde” ou o capitalismo regulado poderá ser compatível com o ambientalismo? 

É lógico que o capitalismo está a produzir destruição sistemática do clima, e aquilo que destrói não constrói. O “capitalismo verde” é, em larga medida, uma fraude criada para vender novos produtos financeiros e continuar a fazer negócio. Nós temos as grandes petrolíferas com licença para produzir, mas que como fazem compensação de emissão, podem continuar a explorar petróleo e a emitir gases com efeito de estufa, desde que depois comprem créditos de carbono ou compensem as emissões de uma forma que toda a gente sabe que não vai compensar as alterações e os danos provocados pela poluição hoje. A UE é um projeto de liberalização, é óbvio que tem outras características e é alvo de outras disputas, mas o centro da UE e da União Monetária é um projeto económico e um mercado comum e liberalizado, e que hoje se estende a todas as áreas, vai desde a produção do alfinete até ao sistema bancário. O projeto da UE precisa depois de outras formas de legitimidade social e de um projeto de coesão, mas, na verdade não há coesão, não tem havido um esforço de convergência e a crise de austeridade mostrou isso. A crise da austeridade atirou-nos anos para trás em termos de desenvolvimento económico, portanto percebemos aí qual era o verdadeiro propósito das instituições europeias. E precisamente porque a preocupação é económica, não podemos contar que a UE mexa um milímetro. Quem a UE convidou e contratou para fazer o aconselhamento dos processos de alteração das regras bancárias para serem “verdes” foi a BlackRock, que é a empresa que mais investe em petróleo e carvão. É o fundo internacional com mais interesses poluentes no mundo, e é a mesma empresa que está a fazer aconselhamento financeiro para a “indústria bancária verde”, portanto é deste nível de hipocrisia que nós estamos a falar. Não é por pôr um “label verde” em cima de uma política que ela se vai transformar em “verde”. Acho que pode ser um bom negócio, pode criar uma nova imagem, mas não vai resolver o problema das alterações climáticas.

"Impedir o dumping fiscal é muito importante, mas isso exige coordenação europeia

A Família Europeia do Bloco, a Esquerda Europeia, recentemente criticou o facto de grandes empresas como a Google, a Amazon, a Apple e a Pfizer fugirem às obrigações fiscais para pagarem o mínimo de impostos. E por isso, propôs uma taxa mínima global de 15% sobre as sociedades no Parlamento Europeu. Na tua opinião, qual seria o melhor plano para combater a fuga aos impostos destas grandes empresas?

Há muitas propostas que têm sido avançadas, a OCDE tem tido alguns planos e avançado com alguns projetos. É óbvio que conseguir ter uma taxa mínima global ou europeia, ou seja, não uma taxa que vincule os estados e que se intrometa nos sistemas financeiros, mas um limiar mínimo, um acordo entre estados para ninguém cobrar menos do que 15%, impedir o dumping, é muito importante, mas isso exige coordenação europeia. Há medidas de informação que também são importantes, o Country Back Country Reporting que obriga as empresas e multinacionais a divulgarem quanto é que lucram e quanto é que pagam de imposto em cada país, para nós percebermos que a Google lucra em países onde não paga um cêntimo de imposto. Há medidas na própria forma como os sistemas fiscais nacionais estão montados, que podem impedir certo tipo de planeamento fiscal agressivo, porque o que essas empresas fazem é encontrar forma de desviar os lucros para outro país. Portugal tem uma patent box, que é um regime de benefício fiscal para patentes. As empresas registam cá as patentes e direcionam para cá os lucros para não pagarem imposto, e depois direcionam os lucros da faturação para a Irlanda e lá não pagam imposto... Este planeamento fiscal em que cada país oferece a pontinha duma offshore permite muita fuga. É o papel dos países não permitir estas fugas fiscais, porque o resultado é que estas empresas que geram milhões estão a pagar muito menos impostos do que qualquer trabalhador ou empresa paga. Há aqui um caso de injustiça fiscal brutal por parte de quem consegue fugir aos impostos, e que depois são os maiores defendidos e protegidos pelo argumento da competitividade fiscal e da baixa os impostos. Esse tipo de discurso diz-se em nome da economia, mas, na verdade, é em nome de grandes grupos multinacionais que se aproveitam desse tipo de regras.

 

O ministro da cultura Pedro Adão e Silva disse recentemente que “não é desejável acabar com os vínculos precários na cultura”. O que é que mudarias no investimento público na cultura para que esta seja mais valorizada pelos portugueses e para que seja finalmente considerada um trabalho digno e não precário?

Há muita coisa para mudar. É preciso ter financiamento estrutural e previsível e muito mais eficácia na forma como esse financiamento existe, porque ele tem um excesso de burocracia que não é compatível com a própria incompetência do Ministério da Cultura para gerir esses financiamentos. Para além do aumento do financiamento que é crucial e deve ser de longo prazo para as pessoas poderem saber ao que vão e poderem ter estruturas, acho que se criou um modelo de enviesamento ao teatro, entre financiar estruturas para financiar programadores, e isso faz com que haja uma dispersão muito grande de pequenas coisas. Os espetáculos não ficam muito tempo em cena, não se tem tempo para criar público, as pessoas gastam muito tempo para preparar os espetáculos, que precisam de financiamento e estão sempre à cata de mais 500 euros para conseguir mais um financiamento para fazer um pequeno espetáculo que depois fica em cena 2 meses…. Acho que este é o modelo errado. E, entretanto, acabou-se com estruturas de longo prazo, onde fixavam um reconhecimento, que podiam dar trabalhos a tempo inteiro, que contratavam pessoas de companhia, e por isso acho que é preciso repensar a cultura, pondo como ponto essencial que ela é um serviço público que tem de ser financiado, ela não é feita pelo Estado, mas ela tem de ser financiada enquanto serviço público. Uma sociedade sem cultura não se pensa, não se imagina, não se vê si própria, não existe. A cultura é a nossa capacidade de nos imaginarmos e pensarmos as possibilidades do mundo e da vida, portanto tratar a cultura como um serviço público e financiá-la e dar-lhe estabilidade e financiamento é muito importante. Mas também me parece que era importante ter uma política cultural, pensarmos em modelos, se queremos um teatro assente em estruturas, se queremos um teatro assente em programação, se queremos teatros e companhias com financiamento de longo prazo, que tipo de infraestruturas queremos? O Bloco propôs e conseguimos finalmente a rede de cineteatros portugueses para criar uma capacidade de estrutura de programação descentralizada no território, mas eu acho que é este pensamento que [faz] falta, de como é que queremos financiar e organizar esse serviço público. No cinema os problemas são outros, têm mais a ver com a dependência dos grandes operadores privados que financiam o audiovisual e que tornam o audiovisual muito dependente da NOS e desses grandes financiadores. E depois o financiamento público é muito pequeno, financiam sempre o mesmo tipo de projetos, há muito pouca capacidade para expandir para novos projetos. Mas acho que dependendo das áreas há muita coisa para fazer, sobretudo no plano laboral, regras fiscais e estatuto laboral que se adaptem e que acabem com a precariedade no setor, porque ela é imensa. A ideologia associa de tal forma a precariedade a liberdade que acham que é substituto, mas pode-se ser livre para criar e não ser precário do ponto de vista laboral. Se calhar o facto de não ser precário até dá mais liberdade para criar de forma diferente. Precariedade e liberdade não são sinónimos, antónimos muitas vezes.

"Cultura das portas giratórias cria um ambiente propício à corrupção"

Disseste recentemente numa entrevista que a melhor medida para acabar com a corrupção em Portugal seria acabar com as offshores. Um estudo publicado no ECO concluiu que a classe política é a principal produtora de corrupção em Portugal. Para além do fim das offshores, o que propunhas para acabar com a corrupção na classe política em Portugal?

Não proponho acabar com os políticos porque acho que eles são uma condição democracia. E não gosto do termo “classe política” porque acho que nós não somos uma classe, e não defendemos todos a mesma classe. Eu não acho que pertença à classe do Chega que tem grandes interesses económicos imobiliários e defende as offshores e os vistos Gold, não acho que pertença à classe da Iniciativa Liberal, nem à classe do PSD, nem à classe do PS que tem promovido este tipo de promiscuidade. É óbvio que a corrupção existe no sistema, é mais fácil existir quando há dinheiros públicos à mistura, mas ela existe no Privado. Os esquemas do Privado para não pagar impostos e para benefício próprio chamam-se “fuga ao fisco”, mas alguns desses temas aplicados ao Público, só que em vez de não pagar impostos é para pagar a este ou aquele, chama-se “corrupção”. Há um problema endémico com as normas da economia e com o cumprimento da justiça na economia, porque toda a gente acha que tem direito a pagar menos impostos, a receber a sua parte, a receber o seu quinhão pelo serviço e que o enriquecimento pode ser fácil e imediato. Essa cultura cria um ambiente propício à corrupção, tal como cria a cultura da porta giratória, as pessoas estão no Público, estão no Privado, vão para o Público, vão para o Privado e depois vão para grande empresa… Este tipo de cultura de porta giratória entre grandes interesses económicos, e a própria forma como o Estado em vez de se proteger desses interesses, abre a porta, a forma como lida com grandes escritórios de advogados, que num dia o escritório está do lado do Estado, no dia seguinte está do lado comprador de uma empresa e com as grandes consultoras, tudo isso cria um ambiente propício à corrupção. Mas eu insisto na minha questão, só há corrupção se houver como esconder o dinheiro da corrupção, e para esconder esse dinheiro é preciso um sistema financeiro, e é por isso que o sistema financeiro e as offshores são tão cruciais a este tipo de atividades. 

"Para disponibilizar casas é preciso haver menos alojamento local e menos casas vazias"

Cada vez mais jovens em Portugal são licenciados, mas a percentagem de pessoas com ensino superior continua inferior à média da UE. Há imensos estudantes deslocados a viver nas grandes cidades, o preço das rendas aumentou 8,3% no final de 2021 em relação ao ano anterior devido à especulação imobiliária. Somos considerados a geração mais preparada de sempre, mas os nossos empregos são maioritariamente precários, e uma grande percentagem ganha o salário mínimo. O que achas que é prioritário mudar para que mais jovens possam aceder ao ensino superior, ter rendas mais acessíveis e conseguir melhores empregos e melhor salário?

Mais jovens terem o ensino superior é o desejável. Ainda bem que estamos a conseguir aumentar a taxa de escolarização e acabar com o défice de qualificações que este país tinha, nós precisávamos de dar esse salto, e esse salto está a dar-se, apesar de hoje [haver] cada vez mais limitações, inclusive dos preços de mestrados pós-Bolonha que são inacessíveis para muita gente, mas a questão é que não basta dar qualificações, é precisar dar salários e condições de vida. Os salários não sobem por decreto, mas há leis podem contribuir para o aumento dos salários: leis contra a precariedade, leis laborais, proteção de cooperação coletiva, leis de despedimento, leis de horas extraordinárias, trabalho por turnos, salário mínimo, contratos a prazo… Tudo isso influencia depois a forma como o salário aumenta ou desce. Saiu agora há dias um estudo em que dizia que Lisboa era a terceira cidade mais cara do mundo para se viver quando se compara o salário com o preço da habitação. E hoje não podemos falar em salários sem falar do preço da habitação, porque até se pode ter um salário de 1500 euros, mas se um T2 em Lisboa custa 1300, não serve de muito… Eu acho que é preciso ter uma intervenção muito séria na habitação, nas rendas, na forma como se controlam as rendas, e em particular no alojamento local e na especulação imobiliária, porque se criaram fundos imobiliários sem controlo, deram-se benefícios fiscais completamente injustificados a esses fundos imobiliários, e permitiu-se a expansão do alojamento local desenfreada em zonas em que era necessário ter habitações. Está-se a tornar a vida impossível para toda a gente e para os jovens que não conseguem encontrar casa em Lisboa. Nas grandes cidades isto chegou a um ponto de catástrofe e de emergência, e emergências requerem medidas de emergência, portanto controlar e pôr limites ao alojamento local, baixos e verdadeiros, era necessário e muito urgente em cidades como Lisboa e Porto. E, obviamente aumentar a oferta de habitação pública, mas isso era uma política daqui a 5 anos ou 10 anos, já não é para agora. Agora é preciso disponibilizar casas, e para disponibilizar casas é preciso haver menos alojamento local e menos casas vazias. É preciso que a Câmara tenha instrumentos para poder arrendar compulsoriamente essas casas, intervir nelas, criar bolsas de arrendamento. Há mecanismos que outras cidades já usaram para limitar os preços, mas isso significa ir contra os interesses do imobiliário e os interesses económicos, e isso é uma coisa que nem toda a gente está disposta a fazer.

 

Neste momento, mais de 1 milhão de utentes continua sem médico de família e as listas de espera continuam muito extensas no SNS. O Bloco sempre apoiou o aumento do investimento público no SNS. Como é que a população poderá ter garantias que o aumento do orçamento para a saúde iria conseguir resolver estes problemas dos utentes? 

O problema é que não é só o orçamento para a saúde que é preciso aumentar para resolver esses problemas. Neste momento o que está a acontecer é que os concursos para médicos de família estão vazios, ou seja, os médicos são formados, mas depois não querem ir para o Público, porque o Público paga mal, o Privado paga melhor, ou porque no Público se trabalha muito e não compensa. Para além de ser uma questão orçamental, é uma questão também das regras da organização do Público. Um regime de exclusividade que permitisse aos médicos e aos trabalhadores ficarem no SNS, serem remunerados por isso exclusivamente na SNS, seria importantíssimo para fixar médicos. Nos centros de saúde, que são quem precisa dos médicos de família, há o único tipo de unidade familiar do tipo B, que são centros de saúde que dão muita autonomia aos médicos e são bons para atrair médicos, só que custam dinheiro, e por isso o Governo não os quer. E como não os quer, o Governo vai perdendo médicos de família, vai ter de contratar serviços ao Privado ou a tarefeiros, ou vai deixar de dar resposta. Isto acontece nos médicos de família como acontece em cirurgias ou em especialidades, [o Governo] começa a ter de fazer os cheques-cirurgia, a ter de contratar ao Privado para fazer cirurgias... Tudo isto acaba por sair muito mais caro do que ter medidas para internalizar médicos. [É necessário] dar carreiras às pessoas que trabalham no SNS, aos auxiliares que aguentam os hospitais, que fazem um trabalho tão importante nos hospitais e que ainda não têm uma carreira e ganham pouco mais que o salário mínimo. Ainda é preciso criar condições para as pessoas quererem ficar no SNS, e ter uma boa organização e boa gestão. A ideia dos hospitais-empresa claramente não funcionou e é preciso pensar nisso como um serviço público. Há uma série de propostas que nós temos, que passam por dar mais autonomia às instituições, ter um regime de exclusividade, conseguir aumentar o número de pessoas para ficarem em concursos, que acho que são medidas importantes para ajudar a resolver o problema do SNS.

 

Segundo um relatório da Oxfam, a pandemia gerou um multimilionário a cada 30 horas no mundo, por outro lado cerca de 1 milhão de pessoas pode cair no limiar da pobreza em 2022 em Portugal. O que é que achas que poderia ter sido feito para combater estas desigualdades em tempos de pandemia e que não foi feito?

Os apoios sociais em Portugal foram muito parcos, não foi só em Portugal, mas em Portugal foram especialmente parcos. E, sobretudo, não há nenhuma intenção de regular uma economia predatória, ou seja, com as transferências para offshores permite-se que haja fuga de capitais nestes momentos, não há nenhuma tentativa para controlar os lucros que são claramente abusivos em períodos de pandemia. Há vários exemplos, o setor segurador, o setor do retalho, e também o energético, são setores da economia que beneficiam em crises, em guerras, em catástrofes, como sempre beneficiaram, e a quem não é pedido nada em troca para a economia, e é permitido que continuem a lucrar. O outro lado da moeda dos apoios sociais, da baixa dos impostos, tem de ser pedir um contributo a quem ganha de forma extraordinária por uma questão de controlar o agravamento das desigualdades sociais. Como isso não foi feito tivemos processos de acumulação de riqueza brutais muito ligados também a uma subida dos ativos financeiros, por causa da política monetária do BCE. O BCE injetou muito dinheiro nas economias, esse dinheiro ficou a circular na esfera financeira, aumentou o preço dos ativos, e quem já tinha ativos, ações e é dono de riqueza financeira viu a sua riqueza financeira explodir por causa dos ganhos em bolsa. Quem vive do seu trabalho passou a viver com mais dificuldades. Este tipo de disparidades encontra sempre o mesmo discurso, que é “não podemos taxar porque se não o investimento vai-se embora” ou “não podemos taxar porque há poucos lucros”. Esse tipo de argumentos tem impedido regras mais iguais para a economia e têm permitido os tais “1% e os 99%” cada vez mais distantes como hoje sabemos.

"Política europeia não deve estar subjugada aos interesses dos EUA"

Recentemente assistimos aos trágicos acontecimentos da Guerra na Ucrânia. O Bloco condenou esta invasão, mas sempre rejeitou o recurso à NATO como solução, continuando a preferir a diplomacia. Sendo que esta tem apresentado as suas debilidades, continuas a achar a diplomacia uma opção confiável, ou apoiarias outra opção para resolver este problema que não a diplomacia?

Ninguém tem outra opção. Mesmo aqueles que dizem que têm, não têm, porque a alternativa à diplomacia é a guerra nuclear. Se alguém quiser jogar os dados para arriscar uma guerra nuclear de forma completamente irresponsável, que arrisque. Há uma razão para ninguém ter enviado a NATO para dentro da Ucrânia, é porque têm medo de uma guerra nuclear e de uma escalada nuclear. Essa escalada nuclear não ia salvar a vida de nenhum ucraniano, nem de nenhum russo, pelo contrário, ia pôr em risco a segurança de toda a Europa. Esses discursos de bravata, de soldado de sofá, que acham que a guerra e a violência são para escalar não têm sido acompanhados pelos principais líderes europeus, que percebem perfeitamente a fragilidade deste processo. E ultimamente, ouvem-se até vários comentadores políticos a pedir uma saída diplomática porque se compreende perfeitamente que uma escalada militar não resolve nenhum problema. Por um lado, a força nuclear da NATO nunca poderá ser usada sem criar uma resposta nuclear doutro lado, se ela for usada, a catástrofe é total. A NATO é uma ilusão de resposta, mas ela, na realidade, não é uma resposta. Em segundo lugar, porque acho que a política europeia e as suas necessidades de coordenação não devem estar subjugadas aos interesses dos EUA, e a NATO é uma força subjugada a esses interesses. Não entendo porque é que é que devido aos EUA o papel de organização da geopolítica mundial de acordo com os seus interesses, e porque é que a política de defesa de outros países tem de se subjugar aos interesses dos EUA. É óbvio que pode haver uma cooperação, recordo que ela já existia, houve na Segunda Guerra Mundial. Ninguém nega a necessidade de haver uma cooperação entre países europeus em matérias de segurança e militares, mas daí a achar que a melhor resposta é uma intromissão dos EUA nos destinos da Europa parece-me muito arriscado. E depois, finalmente, porque a NATO nunca foi uma força de defesa, até hoje. Esta é a primeira vez que ela se situa numa posição em que não está a integrar diretamente os ataques. O passado da NATO não é de defesa, é de mortes de civis. A NATO é acusada pela Amnistia Internacional de ter massacrado civis na Sérvia, quando fez bombardeamentos na guerra do Kosovo. Ela tem um passado de desestabilização de governos, de zonas de fronteira, de zonas estrangeiras de intervenção militar, que é tudo menos de defesa, mas que foi de ataque. A NATO tem esse cadastro atrás de si, de intervenção, de morte, de massacre. E aliás, estava em completa falência, a seguir aos desastres do Iraque e do Afeganistão a NATO não existia, e recuperou agora com isto, mas ela não se torna menos má por causa desta situação. Esta situação deve-nos fazer refletir sobre a capacidade e cooperação de defesa na UE, mas não torna a NATO numa força pacifista ou de defesa, quando, na verdade, tem sido uma força de agressão e de ataque.


Entrevista realizada por Jorge Tabuada, estudante da licenciatura em Ciências da Comunicação na NOVA FCSH, no âmbito da cadeira de Produção Jornalística, lecionada por Marisa Torres da Silva

Sobre o/a autor(a)

Jornalista, licenciado em Ciências da Comunicação
(...)