As agressões de Israel e dos Estados Unidos da América ao Irão, bem como o genocídio em curso na Palestina, têm o apoio da Europa. São a confirmação de que “já não existe direito internacional” e culminam numa contestação enorme do Sul global contra o Norte.
Ali Lmrabet é um jornalista crítico marroquino. Escreveu sobre o Saara Ocidental e foi pressionado e censurado pela monarquia marroquina por abordar temas que iam contra o interesse desta. Em entrevista ao Esquerda.net fala sobre o papel do jornalismo em Marrocos, as tensões entre o Norte e o Sul Global e os ataques ao direito internacional de Israel.
Tens uma longa história de jornalismo livre em Marrocos. Essa foi uma atividade de dissidência?
Eu faço o que se chama jornalismo crítico e independente. Que respeita as regras do jornalismo em geral. Fui diretor de três publicações marroquinas. Sou um jornalista crítico com o regime, mas aceitando o respeito pelo outro. Não concordo em tudo com o rei de Marrocos. Sou um republicano sentimental. Não quero que o regime caia, nem quero ajudar o regime. Portanto, jornalista, sim. Dissidente político, não.
Como é que esse jornalismo crítico mudou em Marrocos nos últimos anos?
Nos últimos anos de Hassan II, quando comecei a ser jornalista em Marrocos, houve uma certa liberalização. Ele tinha, creio eu, compreendido que a sociedade tinha de mudar e que o jornalismo não estava ali para derrubar a monarquia. Quando Mohamed VI chega, há um discurso de uma nova era, de que vamos viver num Estado de direito. Então, eu disse: vamos fazer um jornalismo crítico. E começámos a fazê-lo falando de um tema de que ninguém falava, o conflito do Sahara Ocidental. Também não se falava de direitos humanos em Marrocos, não se falava das vítimas de Hassan II. Há pessoas que morreram, há pessoas que foram enterradas vivas, há pessoas que foram atiradas de helicópteros, por exemplo. Nós chegámos para contar as histórias. Trouxemos à luz histórias que eram completamente desconhecidas. Disseram-nos que estávamos a fazer política. Não estávamos a fazer política, estávamos a fazer jornalismo.
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E isso resultou em confrontos com o regime?
Sim, porque para eles há três temas principais que não se podem abordar. Estamos no século XXI e não podemos falar livremente sobre o conflito do Saara Ocidental, sobre religião e sobre a monarquia. Se não posso falar sobre religião, sobre o conflito mais importante das nossas vidas, e sobre a monarquia marroquina, sobre o que é que vou falar? Sobre flores? Foi aí que começaram os problemas. Já me proibiram três revistas. A polícia secreta foi à gráfica antes do jornal sair para ver se há algo que incomoda, o que é censura indireta e ilegal. E houve também outro tipo de censura. Proibiram-nos a publicidade para nos matar, porque publicávamos em papel, e nós introduzimos o humor e a caricatura. Fizemos uma coisa que era revolucionária. Vivíamos das vendas, não vivíamos da publicidade. E isso foi algo que os incomodou muito. No final, perceberam que a melhor solução era fechar-nos. E foi decisão de um primeiro-ministro “socialista”.
Que reação internacional é que isso teve?
Alguns meios de comunicação europeus recolhem a informação, mas sem saber o que se passa. Disseram que insultámos o rei. Se ouves que me condenaram por ter insultado o rei, vais achar que o desrespeitei. Mas “desrespeitar o rei” em Marrocos, nos tribunais, é dizer coisas verdadeiras. Como, por exemplo, que o orçamento real de Marrocos nunca é discutido no Parlamento. Isso é insultar o rei. Também me acusaram de atentado contra a segurança do Estado. Mas o que significa atentado? Disseram que eu, ao divulgar uma “informação sensível”, atentei contra a segurança. É um mecanismo de pressão. Mas os jornalistas do mundo inteiro disseram que insultei o rei.
Falar criticamente sobre o Saara Ocidental é insultar o rei?
Para o Saara Ocidental é muito simples. É um conflito que existe, que não se pode negar, não existe, está lá. No conflito do Saara Ocidental, investimos durante décadas o que poderia ter sido usado para desenvolver o país. E o que acontece é que há censura. Não se pode falar com o povo da Polisário. Não se pode divulgar informações sobre o que está a acontecer no território do Saara Ocidental. Não se pode falar da perseguição que existe no Saara Ocidental. Eu sou jornalista e tenho de falar com todos.
Como é que essa política de não ver, não ouvir e não falar se articula com o regime de propaganda em Marrocos?
Quase toda a imprensa faz propaganda do assunto. Hoje em dia existe uma imprensa independente, mas sem tocar nos assuntos delicados de que falei. Quando digo isso às pessoas, elas dizem-me: «Como é possível?». Hoje em dia, o que temos é uma imprensa em que a grande maioria dos jornalistas é paga pelo Estado. Se és pago pelo Estado marroquino, podes criticar o Estado marroquino? Não podes criticá-lo. É propaganda. Eu sou a favor do compromisso que o Estado marroquino já assumiu há décadas, de que haja um referendo de autodeterminação no Saara. Agora, Marrocos nunca vai fazer esse referendo.
Como caraterizarias a posição da União Europeia face a Marrocos nas disputas onde foste protagonista?
É totalmente hipócrita. Os ocidentais, americanos e europeus, querem ter liberdade de imprensa, sindicatos livres, uma imprensa que informa realmente. Direitos que nós não podemos ter. Porque é que os europeus e os americanos têm direitos que eu não tenho no meu país? Porque me prendem em Marrocos pelas minhas opiniões? Eu quero uma democracia, mas não uma democracia à espanhola, à portuguesa, à francesa ou à americana. Quero uma democracia adaptada ao que somos. A minha civilização é uma civilização muçulmana, mas os fundamentos da democracia têm de estar lá, adaptados a nós. Então, há muita hipocrisia, como o que está a acontecer agora na Palestina e no Irão. Quando houve a invasão na Ucrânia, tiveram uma enorme solidariedade com o povo ucraniano. Muito bem. E os palestinianos? E vi na televisão francesa algo que me chocou: uma jornalista francesa muito conhecida, que apareceu na televisão dois meses após a invasão da Ucrânia, disse: “Não é a mesma coisa”. E perguntaram-lhe: “Porquê?”. Ela disse: “Porque eles são brancos como nós, porque têm olhos verdes como nós”. Então, tudo o que nos disseram desde a Segunda Guerra Mundial é falso. O que é isto se não hipocrisia?
Essa hipocrisia é consistente com os interesses da União Europeia, não? A Ucrânia interessa-lhe, e Israel também.
Se me dizem que a Ucrânia é a vanguarda do mundo ocidental contra a Rússia, e que Israel é a vanguarda do mundo ocidental no mundo árabe e que é por isso que o ajudam, então eu pergunto: “O que significa vanguarda?”. É uma vanguarda do império. Vem Israel e instala-se. Criam um Estado judeu numa terra onde a maioria das pessoas são muçulmanos e cristãos. O que significa isto? Onde estão os preceitos democráticos que nos diziam que são fundamentais? Quando ocuparam esta terra, esta terra tinha um proprietário. Houve uma decisão das Nações Unidas em 1948. Mas Israel respeita as decisões atuais das Nações Unidas? Como podemos aceitar hoje, em 2025, um genocídio em que todos os dias matam e disparam contra pessoas? Na Ucrânia não aceitam. Isso cria um ódio no mundo árabe, e no Sul global, contra o Ocidente.
A instrumentalização do direito internacional aprofunda esse ódio....
Já não existe direito internacional. O que é o direito internacional? Há um ódio tremendo contra a hipocrisia ocidental que está lá para defender um colonialismo. Um dos países mais inaceitáveis que existem hoje é a Alemanha. A Alemanha é cúmplice do genocídio que está a ocorrer na Palestina e não entende nada da história. Dizem que não podem criticar Israel porque cometeram um genocídio, mas estão a ajudar Israel a cometer outro. Isso é outro tipo de hipocrisia.
Como jornalista, como caracterizas a narrativa mediática que se criou na Europa sobre o genocídio na Palestina?
Já que estamos a falar de propaganda, apenas o facto de não escandalizar quando estamos a viver um genocídio ao vivo, o facto de não escandalizar quando Israel atacou um Estado independente, quando os Estados Unidos atacaram um Estado independente, é surreal. Ninguém condenou o ataque ao Irão. Porquê? Porque o Irão é inimigo de Israel, nós vamos ajudar Israel. Isso é propaganda. E, além disso, propaganda criminosa que viola todas as leis internacionais. Mas nenhum país da União Europeia condenou o ataque de Israel e dos Estados Unidos ao Irão. Nem um único país. Enquadram como se o Irão fosse um vilão de um filme.
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Israel já não esconde os seus objetivos genocidas em Gaza. O mundo vai continuar a olhar para o lado?
Omar H. Rahman
Há décadas que o Irão, o Iraque e o Afeganistão são retratados dessa forma caricatural. Como vilões de um filme.
É exatamente isso. Há uma espécie de revanchismo, porque os países do sul Global deram um pontapé aos grandes impérios. E o ocidente considera que a civilização árabe-muçulmana é inferior à sua. Respondo: então vocês são os bons, os melhores que existem, mas porque não respeitam as vossas próprias leis internacionais? O que significa que o Tribunal Penal Internacional lance mandados internacionais de captura contra Netanyahu e que muitos países digam que não vão aplicá-los? Então, pegamos nesta ordem internacional, que surgiu após 1945 e atiramo-la para o lixo, ponto final. Mas não venham me dizer que a Nicarágua, que a Venezuela, que o Irão, que a Coreia do Norte, a Rússia e mais não sei o quê são os vilões do filme. Os vilões do filme são vocês. Vocês colonizaram metade do mundo, vocês causaram as guerras mundiais. Vocês provocam a maioria das alterações climáticas. Lançam duas bombas nucleares, matam 60.000 em Gaza e querem que vos digamos que são os bons? É por isso que eu digo há um sentimento geral do sul global, que já estamos fartos da hipocrisia. É absurdo quando vemos alguém como Kaja Kallas a dizer que o Irão não pode ter a bomba nuclear. E Israel, tem o direito de ter a bomba nuclear? Eu não simpatizo com o Irão, mas é um estado independente.
Como vês o quadro dessa tensão entre o Sul e o Norte Global com um ocidente cada vez mais fragmentado e em disputa consigo mesmo?
Na minha situação, o que eu digo quando olho para a fenda que Trump criou é: que se entendam entre eles. Eu, o que vou fazer? Defender a União Europeia contra os Estados Unidos ou defender os Estados Unidos contra a União Europeia neste momento? Há três ou quatro anos eu não teria dito isto, mas agora digo. Digo isto agora porque as coisas mudaram: que se lixem. Que interesse tem a Europa em que os Estados Unidos e Israel ataquem o Irão? Isto não é um discurso dissidente, não é um discurso ideológico, é o discurso da realidade. Os palestinianos estão a lutar pela sua sobrevivência e não por outra coisa. Não me venham dizer que Israel nunca é o mau, que a Palestina é má, que o Irão é mau. Antes havia um pouco de contenção, mas agora nada. Quando me perguntam sobre a guerra das taxas aduaneiras entre a Europa e os Estados Unidos, respondo: que se entendam entre eles e nos deixem em paz. Não sejam cúmplices de um genocídio. A União Europeia, no seu conjunto, é cúmplice de um genocídio que está a acontecer diante dos nossos olhos hoje.