Genocídio

Israel já não esconde os seus objetivos genocidas em Gaza. O mundo vai continuar a olhar para o lado?

04 de junho 2025 - 15:17

Desde o regresso de Trump, Israel abandonou todas as desculpas de auto-defesa. Mas, ao mesmo tempo que foge à responsabilização, cimentou o seu legado como pária global.

por

Omar H. Rahman

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Benjamin Netanyahu em visita ao norte da Faixa de Gaza em abril.
Benjamin Netanyahu em visita ao norte da Faixa de Gaza em abril. Foto de Haim Tzach/Gov. Israel

Desde o 7 de Outubro, ministros israelitas, figuras políticas, oficiais militares e comentadores dos meios de comunicação social têm incitado aberta e incessantemente à destruição de Gaza e dos seus habitantes palestinianos. Já em dezembro de 2023, a África do Sul tinha compilado um extenso registo destas declarações para apresentar ao Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), alegando que Israel tencionava perpetrar um genocídio no enclave palestiniano.

No entanto, à medida que a lista de declarações inflamatórias aumentava e que a liderança israelita se recusava a articular uma visão do pós-guerra que excluísse este terrível desfecho, também se dirigiam ao público internacional em termos que realçavam os objetivos militares mais restritos de derrotar o Hamas e resgatar os reféns israelitas. Isto deu margem aos apoiantes estrangeiros para ignorarem a retórica mais extrema.

Entretanto, Israel continuou a infligir níveis de morte, destruição e privação que não poderiam ser justificados por necessidade militar. Gaza, povoada há milénios, foi reduzida a escombros e cinzas. Bairros residenciais, escolas, universidades, bibliotecas, hospitais, empresas e sítios culturais e históricos foram destruídos.

Apesar de ainda não ser possível fazer uma contabilidade correta sob as condições do cerco, presume-se que pelo menos 54.000 pessoas morreram - incluindo 18.000 crianças - e centenas de milhares ficaram feridas, quase sem cuidados médicos disponíveis. As imagens de satélite revelam hoje um cenário que faz lembrar o que o vice-presidente do parlamento israelita, Nissim Vaturi, disse ser o “único objetivo comum” do país depois do 7 de Outubro: “apagar a Faixa de Gaza da face da terra”.

Embora os líderes israelitas não precisem de admitir que levaram a cabo um genocídio para serem culpados do crime, nos últimos meses deixaram de fingir o contrário. De facto, desde que Donald Trump regressou à Casa Branca, em janeiro, tem havido uma mudança nítida na comunicação israelita.

Depois de Trump ter sugerido, em fevereiro, que os Estados Unidos deveriam assumir o controlo de Gaza e transformá-la numa “riviera” sem palestinianos, o primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu aproveitou a ideia, utilizando-a como cobertura política para declarar Gaza inabitável e apelar à reinstalação permanente da população sobrevivente fora do território ao abrigo do “plano Trump”.

Trump e Netanyahu na Casa Branca em fevereiro.
Trump e Netanyahu na Casa Branca em fevereiro. Foto Avi Ohayon/Gov. Israel

Em março, Israel retomou os seus ferozes bombardeamentos aéreos, quebrando um cessar-fogo de dois meses, matando e mutilando milhares de pessoas e impondo um bloqueio total aos alimentos e à água potável que gerou situações de fome em toda a Faixa de Gaza. Depois, no início de maio, o gabinete de segurança de Israel revelou um plano para mobilizar dezenas de milhares de soldados adicionais para “conquistar” Gaza, apoderar-se do território e expulsar os seus residentes.

Netanyahu descreveu a operação como os “últimos passos” de Israel, cujo objetivo era assegurar que “os habitantes de Gaza escolhessem emigrar para fora da Faixa”. O ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, declarou no início de maio que, dentro de seis meses, Gaza deixaria de existir. A população sobrevivente, acrescentou, seria reunida numa única “zona humanitária” e - quebrada pelo desespero - partiria, “compreendendo que não há esperança e nada a procurar em Gaza”.

Intenções claras

Estas declarações já não podem ser encaradas como desabafos emocionais e retórica vingativa de uma sociedade em luto. Dezanove meses após o início da campanha de Israel para liquidar Gaza, é agora claro para todos que elas traduzem uma lógica estratégica e uma visão a longo prazo.

Josep Borrell, antigo responsável pela política externa da UE, classificou estas declarações como “claras afirmações de intenção genocida”, observando que “raramente ouvi o líder de um Estado delinear tão claramente um plano que se enquadre na definição legal de genocídio”.

De acordo com a Convenção sobre o Genocídio de 1948, essa definição inclui atos cometidos com a “intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, como matar membros do grupo ou impor condições destinadas a provocar a sua destruição física. Quando os oficiais israelitas falam abertamente em tornar Gaza permanentemente inabitável para induzir um êxodo em massa, estão a descrever exatamente esse cenário.

Benjamin Netanyahu em visita ao norte da Faixa de Gaza em abril.
Benjamin Netanyahu em visita ao norte da Faixa de Gaza em abril. Foto de Haim Tzach/Gov. Israel

Então, quais são as consequências desta confissão? Ao abrigo do direito internacional, a proibição do genocídio é uma norma jus cogens - vinculativa para todos os Estados sem exceção. Existe uma obrigação universal de prevenir o genocídio e de assegurar a responsabilização. Em janeiro de 2024, o TIJ considerou que Israel estava em risco de perpetrar um genocídio e que devia tomar medidas provisórias para evitar cometer o crime. Com as suas ações subsequentes, Israel fez troça dessa ordem.

Em julho de 2024, o TIJ decidiu, num processo separado, que a ocupação dos territórios palestinianos por Israel era ilegal e devia terminar. Em novembro, o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu mandados de captura contra Netanyahu e o antigo Ministro da Defesa Yoav Gallant por acusações relacionadas com crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

No entanto, a reação da comunidade internacional tem sido insignificante. Enquanto alguns países, como a Colômbia e a África do Sul, tomaram medidas para cortar relações e responsabilizar Israel, a maioria - incluindo Estados árabes com laços formais com Israel - pouco fez para além de emitir condenações vazias de significado. Apesar dos mandados do TPI, Netanyahu e outros responsáveis israelitas têm desde então viajado livremente para os Estados Unidos e partes da Europa. Alguns Estados membros do TPI, incluindo a Bélgica, hesitaram em confirmar que iriam fazer cumprir os mandados.

Esta paralisia deve-se, em grande parte, à fraqueza estrutural dos tribunais internacionais, que dependem dos Estados membros para fazer cumprir a lei. Enquanto Washington der a Israel um apoio inabalável, a responsabilidade continuará refém da realpolitik, empurrando a ordem jurídica internacional para a beira do colapso.

Poucos países querem arriscar-se a ser alvo da retaliação de Washington. Os responsáveis governamentais dos EUA têm sido claros quanto à forma como responderão aos tribunais e aos países que executam os mandados de captura de funcionários israelitas, ameaçando: “Se atacarem Israel, nós atacamo-vos a vocês”. Em fevereiro, Trump impôs sanções aos funcionários do TPI, o que levou ao congelamento das contas bancárias e de correio eletrónico do procurador do TPI, Karim Khan.

Não se pode esconder o genocídio

Estas táticas de força podem preservar a impunidade a curto prazo. Mas não podem salvar Israel de graves consequências para a sua reputação e a longo prazo. Na era da gravação em smartphone e da acessibilidade imediata, as ações de Israel em Gaza foram captadas digitalmente, disseminadas e inscritas na consciência global. Nas palavras do historiador israelo-britânico Avi Shlaim, “Israel tornou-se um pária internacional pelas suas próprias mãos”. Nenhuma campanha de relações públicas pode apagar o custo humano e a montanha de provas visuais permanentes. Israel está agora a tornar-se sinónimo do genocídio de Gaza.

Palestinianos deslocados internamente saem com os seus pertences após uma ordem de evacuação emitida pelo exército israelita do norte da Faixa de Gaza,.
Palestinianos deslocados internamente saem com os seus pertences após uma ordem de evacuação emitida pelo exército israelita do norte da Faixa de Gaza, na Cidade de Gaza em maio. Foto Mohammed Saber/EPA

O impacto imediato é evidente nas sondagens de opinião pública a nível mundial. De acordo com o Índice de Perceção da Democracia de 2025, Israel é atualmente o país mais mal visto do mundo. Mesmo nos Estados Unidos, o sentimento está a mudar rapidamente. Uma sondagem da Pew Research realizada em março revelou que 53% dos americanos têm uma opinião negativa sobre Israel, incluindo 69% dos democratas e metade dos republicanos com menos de 50 anos. Este valor representa um aumento acentuado em relação aos últimos anos e é transversal a todas as faixas etárias e partidárias.

Este descontentamento crescente desencadeou um aumento da censura e da repressão da dissidência, tanto nos Estados Unidos como na Europa. O fosso entre a política das elites e o sentimento público é tão grande que a sua gestão exige atualmente medidas extraordinárias. A dependência de Israel em relação aos Estados Unidos não é apenas militar ou financeira - é diplomática e existencial. Uma erosão sustentada do apoio público no Ocidente poria em risco a proteção de Israel no sistema internacional.

As divisões no seio da comunidade judaica dos EUA também estão a aprofundar-se. Um número crescente de pessoas sente-se incomodada com a pretensão de Israel de falar e atuar em nome dos judeus de todo o mundo, especialmente no contexto de Gaza. A invocação reflexiva do antisemitismo para silenciar as críticas à política israelita começou a perder a sua força, o que será uma perda na luta contra o antisemitismo genuíno. Mais preocupante é o facto de alguns recearem que a escala de destruição em Gaza possa alterar a perceção pública do sofrimento histórico dos judeus - incluindo o legado do Holocausto.

Com os processos jurídicos internacionais entravados pelo poder americano, a sociedade civil, do Chile à Tailândia, já está a ativar mecanismos internos para exigir a responsabilização dos responsáveis israelitas que entram nas suas jurisdições. A mancha na reputação pode prejudicar as interações quotidianas dos israelitas, desde a atividade comercial aos intercâmbios estudantis e culturais e ao turismo.

Destruição em Beit Lahia, norte de Gaza, em março.
Destruição em Beit Lahia, norte de Gaza. Foto de Haitham Imad/EPA.

À medida que a guerra de aniquilação de Israel prossegue em Gaza, há mesmo sinais de fratura com os seus aliados mais próximos não estadunidenses. A 20 de maio, o Reino Unido, a França e o Canadá avisaram que iriam impor sanções se Israel continuasse a bloquear a ajuda humanitária e a intensificar a sua ação militar em Gaza. A Alemanha e a Itália emitiram declarações de exasperação. Nas esferas internacionais do poder e nos meios de comunicação social, há quem esteja a abandonar o barco.

Mas parar a carnificina e desmantelar a impunidade israelita não será nem rápido nem fácil. Os defensores de Israel no Ocidente têm demonstrado uma determinação extraordinária em protegê-lo das consequências - minando o direito internacional, as instituições, a liberdade académica e até as suas próprias normas democráticas ao longo do processo. Cada vez mais, os movimentos de extrema-direita, bem como a administração Trump, têm transformado o apoio a Israel e as acusações de antissemitismo em ferramentas para promover agendas iliberais mais amplas.

Mas ao reconhecer as suas intenções, Israel obrigou o mundo a confrontar-se com uma emergência moral e legal que não pode continuar a ser ocultada por eufemismos ou evasivas diplomáticas. A campanha genocida de Israel em Gaza expôs não só a brutalidade da sua doutrina militar, mas também a fragilidade da ordem jurídica internacional - em grande parte estabelecida na sequência do Holocausto - destinada a impedir tais atrocidades. Quer as instituições mundiais estejam ou não à altura da ocasião para o impedir, a memória deste crime e a cumplicidade daqueles que o permitiram perdurarão. Isso torna a fuga à responsabilidade ainda mais difícil para Israel a longo prazo.


Omar H. Rahman é um escritor e analista político especializado em política do Médio Oriente e política externa dos EUA. É atualmente membro do Middle East Council on Global Affairs, onde está a escrever um livro sobre a fragmentação palestiniana na era pós-Oslo. Uma versão deste artigo foi publicada pela primeira vez no Afkār.. Artigo publicado no portal +972.