As metas de descarbonização da economia europeia e estadunidense obrigaram a indústria automóvel a reconverter a sua produção para os carros elétricos. Mas neste mercado ninguém produz tanto, nem tão barato, como a China. Nos Estados Unidos, onde a quota de mercado de marcas chinesas é residual, Joe Biden anunciou em março a quadruplicação das tarifas aduaneiras para estes veículos, de 25% para 100%, em mais um capítulo da guerra comercial em curso nos setores do digital, da inteligência artificial ou da transição energética.
Mas, na Europa, onde a indústria automóvel era das últimas que afirmava ainda uma liderança global, o assunto deixou à vista as divisões entre a França e a Alemanha, incluindo no grupo socialista. A eurodeputada francesa Aurore Llucq declarou que “os EUA têm razão” em avançar com o aumento das tarifas sem um inquérito prévio à ajudas estatais chinesas à indústria dos automóveis elétricos - como fez a UE em outubro de 2023. Já os seus companheiros de bancada alemães do SPD, como o ex-presidente da comissão de Comércio Internacional, Bernd Lange, consideraram que as vantagens para os EUA não compensam os danos que a medida causará, em especial para a Europa.
A diferença de posições explica-se pela exposição dos fabricantes alemães à China, quer através de parcerias para a produção de veículos e componentes mais baratos, quer através da venda desses veículos no mercado chinês. Como avisou em maio o chanceler Olaf Scholz, “50% das importações europeias de veículos elétricos provenientes da China são de marcas ocidentais”, como é o caso da Tesla e BMW. Segundo o CEO da BMW, Oliver Zipse, no ano passado 20% dos carros elétricos vendidos na Europa foram fabricados na China, mas a quota de mercado dos fabricantes chineses na Alemanha não ultrapassou os 0,8%.
Em outubro, a reunião dos chefes de governo da UE aprovou finalmente uma tarifa suplementar até 35,3%, a juntar aos 10% já existentes, sobre os automóveis dos construtores chineses. A Alemanha votou contra, mas não conseguiu bloquear a decisão. Pequim reagiu de imediato com a imposição de uma caução até 39% para as empresas que importem brandy europeu, poupando por enquanto os setores dos laticínios e suinicultura, enquanto diz estudar o aumento de tarifas sobre a importação de veículos a gasolina de grande cilindrada.
Aposta da China pode inundar mercado de carros elétricos baratos
Meses antes desta decisão, analistas económicos como Romaric Godin consideravam pouco provável que a UE colocasse entraves à chegada de produtos que a ajudam a cumprir os seus tão propalados objetivos de descarbonização. O mesmo se passa com as células fotovoltaicas ou as baterias de lítio, onde a China representa 80% e 50% do mercado, respetivamente. Além disso, as ligações entre as indústrias europeia e chinesa tornaram-se mais estreitas, com a Volkswagen a entrar no capital da Xpeng com 5% e um assento na administração e a anunciar a parceria entre a Audi, FAW e SAIC para desenvolverem em conjunto novos veículos 100% elétricos topo de gama para o mercado chinês, onde o grupo Volkswagen vendeu mais de três milhões de automóveis em 2023 sob o lema “Na China para a China”.

Outro exemplo dessa relação estreita, mas no sentido inverso, vem do grupo Stellantis - que agrupa marcas como a Peugeot, Citroen, Fiat e Chrysler: a partir de 2026, a fábrica histórica da Fiat em Turim produzirá 150 mil unidades de modelos elétricos da marca chinesa Leapmotor - da qual adquiriu 20% do capital. Ao mesmo tempo que finta as tarifas de Bruxelas, o grupo Stellantis agrada a Meloni, com quem se comprometeu a produzir um milhão de veículos por ano em Itália até ao fim da década. Uma promessa difícil de cumprir, tendo em conta os números da produção deste ano.
Por seu lado, o CEO do grupo Renault, Lucas de Meo, admite que os construtores chineses “têm uma geração de avanço” e diz que o caminho é o da colaboração e não o da competição com um “ecossistema que inclui as giga-fábricas de baterias, os melhores engenheiros nesta área, mas também as capacidades de refinação das matérias-primas”. E por isso aposta também nas parcerias, neste caso com a chinesa Geely, dona das marcas Zeekr e Lynk & Co.
Além da montagem de automóveis elétricos, a China é também cada vez mais incontornável no fabrico dos componentes eletrónicos. Exemplo disso é a aposta chinesa no grupo Forvia (antiga Faurecia), que ali fornece várias marcas. Se a nível global o número de automóveis produzidos em 2022 era semelhante ao de 2012, a grande diferença na última década, na opinião do diretor-geral da Forvia, Patrick Koller, foi o aumento do número de construtores, com os estadunidenses a perderem quota de mercado e os chineses a avançarem. O objetivo do grupo foi equilibrar as vendas dos seus componentes entre construtores chineses e internacionais, acompanhando os que entram num mercado onde “as barreiras à entrada caíram com a eletrificação” e esta tecnologia permite aos que não têm nenhum histórico no setor “fazerem lucros com 500.000 unidades”.
A aposta de Xi Jinping de competição no setor tecnológico foi acelerada pela crise imobiliária, com o crédito e os apoios públicos a serem canalizados para os setores dos automóveis elétricos, energias renováveis e baterias de lítio. No ano passado, a China ganhou a liderança no número de viaturas produzidas e o investimento nestes setores compensou a queda do setor do imobiliário. O problema é como escoar esta sobreprodução num país onde a crise fez recuar os rendimentos, a confiança e o consumo, ao mesmo tempo que aumentou o desemprego jovem. E a única resposta será inundar os mercados dos países que elegeram a neutralidade carbónica como objetivo para as próximas décadas, com preços que tornam inúteis os esforços destes governos para desenvolver uma concorrência. Para Romaric Godin, ao contrário do que ocorreu a partir dos anos 1990, quando a UE aceitou o desmantelamento das suas indústrias de baixo valor acrescentado a troco da exportação para a China da maquinaria alemã ou de viaturas topo de gama, neste momento a sobreprodução chinesa vem atingir o que resta da indústria europeia.

A economia chinesa está prestes a bater o recorde de deflação da crise financeira asiática do fim dos anos 1990 (seis trimestres consecutivos de queda de preços) e no mercado interno automóvel a concorrência pelo menor preço é feroz. Para já a vencedora é a BYD, que num email divulgado este mês nas redes sociais, exige a um fornecedor um corte de 10% nos preços. Os responsáveis da empresa dizem que é uma prática anual normal e que o objetivo é sempre negociável, mas os analistas veem aqui um sinal de que a guerra dos preços no mercado chinês está para durar. A BYD é a marca mais vendida na China. Até outubro já tinha vendido 3,2 milhões de carros elétricos e híbridos plug-in. No último trimestre, pela primeira vez, ultrapassou as receitas da Tesla. Fora da China, a marca ganha terreno no Japão, Tailândia e no México, também graças à diferença de preços face à concorrência europeia. No final do ano deverá ultrapassar a Ford e a Honda no número de carros vendidos.
Construtores alemães queixam-se da fraca procura, mas os lucros continuam a aumentar
Num relatório elaborado em 2021 para o Parlamento Europeu sobre o futuro da indústria automóvel na UE, um grupo de especialistas identificava as principais fraquezas e ameaças ao setor, destacando-se a dependência externa no fornecimento de matérias-primas para o fabrico das baterias e a forte presença dos fornecedores asiáticos, bem como a fraca procura de veículos 100% elétricos e a falta de um setor de tecnologia e software forte. O setor automóvel representava na altura 6% do emprego total na UE e o seu volume de negócios correspondia a 7% do PIB europeu, com 936 mil milhões de euros em 2020.
O fabrico de automóveis está concentrado em poucos Estados-Membros e a externalização da rede de fornecedores para países com salários mais baixos, nomeadamente na Europa de Leste - onde se encontra quase metade do emprego no setor - tornou a indústria automóvel no setor mais integrado em cadeias de valor intra-UE. Uma vez que os novos veículos elétricos, sobretudo no motor e transmissão, precisam de muito menos peças, a maioria dos fornecedores atuais deixarão de produzir elementos que hoje produzem. O estudo cita ainda um relatório da PwC de 2018 onde se prevê que o parque automóvel da UE poderá cair de 280 milhões para 200 milhões de veículos em 2030 com a introdução dos veículos autónomos partilhados, ou “táxis-robôs”.
Nos últimos anos, a queda do poder de compra e da procura por automóveis na Europa fez soar os alarmes nos grandes fabricantes, ameaçando com o fecho de fábricas e despedimentos em vários países. As crises no setor não são novidade. Já sob a crise financeira em 2009 e sob a pandemia em 2020 os governos abriram os cofres públicos em auxílio das grandes marcas.
Capitalismo
O desastre da Volkswagen revela os limites da “co-determinação” à alemã
Romaric Godin
Num artigo sobre a atual crise na indústria automóvel alemã, Stephan Krull, antigo membro do conselho de trabalhadores da fábrica da Volkswagen em Wolfsburg, e Mario Candeias, da Fundação Rosa Luxemburgo, defendem que esta é uma crise de emprego e não de rentabilidade. Nos últimos cinco anos, o conjunto da indústria automóvel alemã eliminou 60 mil empregos e em França, Itália e Bélgica somam-se notícias sobre anúncios de novos encerramentos.
Apesar da queda da produção alemã - de 5,7 milhões de veículos em 2016 para 4,1 milhões em 2023 -, os lucros continuaram a crescer, atingindo 50 mil milhões para os acionistas dos três principais fabricantes - Volkswagen, Mercedes e BMW - e 250 mil milhões em lucros não distribuídos. Lucros feitos à custa não dos pequenos automóveis, mas dos SUV e carros de luxo que proporcionam maiores margens de lucro. No caso da Volkswagen, a razão apontada para o encerramento de fábricas não é qualquer perda financeira, mas sim o objetivo dos administradores de aumentar a margem de lucro dos atuais 3,5% para os 6,5% na marca e para 10% no grupo. Ou seja, aumentar os lucros dos atuais 22 mil milhões de euros para os 30 mil milhões de euros.
No ano passado, a VW distribuiu 4.500 milhões de euros em dividendos, cerca de metade diretamente para os bolsos da família Porsche-Piëch. Nas negociações com os sindicatos, a família Porsche-Piëch respondeu à proposta sindical de redução dos dividendos com o assumir de uma posição clara a favor do encerramento de fábricas na Alemanha, ameaçando vender parte da sua posição na VW. O pré-acordo foi alcançado no dia 20, à custa do corte de 35 mil postos de trabalho até 2030 e da suspensão nos próximos dois anos do previamente acordado aumento salarial de 5%. Fica assim afastado o encerramento das maiores fábricas do grupo na Alemanha, num acordo que permitirá aos acionistas cortarem 15 mil milhões de euros na despesa.
No grupo Stellantis, a receita do recém-demitido Carlos Tavares também passava por fazer cortes e paragens de produção para voltar a margens de lucro “de dois dígitos”. Nas semanas anteriores a ter sido demitido, decidiu parar a produção dos Fiat 500 elétricos em Turim, após ter anunciado o fecho da fábrica de Luton, que produzia a marca Vauxhall em Inglaterra, ameaçando mais de mil trabalhadores, tantos quantos os afetados pelos despedimentos do grupo na fábrica da Jeep no estado do Ohio, nos EUA. Fonte próxima da administração disse à imprensa que o conselho “tinha a sensação de que Carlos Tavares estava com pressa de salvar a sua reputação, arriscando-se a criar problemas em seguida”. John Elkann, maior acionista e neto do fundador da FIAT, convenceu os restantes administradores a porem fim à “política de curto prazo” que levaria à perda de confiança dos clientes, fornecedores e vendedores, bem como à tensão com vários governos. Em 2023, a Stellantis apresentou lucros de 18.600 milhões de euros, com uma margem de exploração de mais de 13%, inédita no setor. Mas este ano, a queda nas vendas nos EUA e o fim de boa parte dos subsídios dos países europeus à compra de carros elétricos, as vendas de carros foram as mais baixas desde a fusão das várias marcas neste grupo. E numa altura de crise de vendas dos fabricantes europeus, em que se fala também da possibilidade da Stellantis vir a absorver também a Renault, o grupo anunciou o regresso à Associação Europeia de Fabricantes de Automóveis, da qual tinha saído em 2022 por decisão do gestor português.
A transição ecológica e o papel dos sindicatos
A viragem à direita na Alemanha, que tem eleições antecipadas já em fevereiro de 2025, e os bons resultados atribuídos pelas sondagens à extrema-direita da AfD nas regiões fabris fazem antever mais ajudas para o setor, numa altura em que também os conservadores da CDU/CSU, os liberais do FDP e o partido de Sahra Wagenknecht (BSW) já põem em causa a meta de 2035 para o fim da venda de carros com motor de combustão.
Autoeuropa
Mariana Mortágua pede pensamento estratégico sobre a indústria para defender trabalhadores
Resolver a aparente contradição entre a defesa do ambiente e a proteção dos empregos tem sido o mote de iniciativas que juntam o movimento climático e sindical em vários países. Não faltam estudos a demonstrar que a transição climática no setor da mobilidade pode criar centenas de milhares de empregos, nomeadamente na indústria ferroviária, expansão dos caminhos de ferro e das redes de transportes públicos. Para os autores da Fundação Rosa Luxemburgo, que à mobilidade juntam as necessidades de mão de obra nos setores dos cuidados, saúde e educação, a esquerda deve refletir sobre a redução da semana de trabalho para os quatro dias ou as 28 horas, para alcançar bons empregos e boa qualidade de vida.

Para isso serão necessárias garantias legais de segurança no emprego e de formação, bem como subsídios à reconversão destes trabalhadores. E para responder ao excesso de capacidade de produção atual na Alemanha, propõem a reconversão da produção para os transportes públicos sustentáveis. “Em vez de dar à indústria automóvel milhares de milhões em subsídios, os lucros devem ser alocados para a transição da mobilidade”, com um fundo especial do governo federal de 200 mil milhões para investimento em infraestruturas e no desenvolvimento da produção de comboios e autocarros, o que implica revogar o travão constitucional à dívida pública.
Fazer dessa transição uma oportunidade de participação democrática é outra das prioridades deste plano, com a criação de conselhos regionais que juntem sindicalistas, políticos regionais e associações ambientalistas e de utentes. A criação de empresas públicas que preencham o vazio da indústria de mobilidade no que toca a comboios e autocarros, será outra forma de compensar as perdas de emprego noutras áreas, tal como o recurso aos artigos da lei alemã que preveem a socialização de empresas que tentem bloquear esta transição.