Fukushima: Realidade maior que qualquer ficção

06 de outubro 2011 - 17:25

Ao contrário das fanfarras e das afirmações optimistas que diziam que a reconstrução avança rápido, a realidade não é exactamente essa. Última parte do relato da viagem que o correspondente no Japão do Esquerda.net fez à região mais atingida pelo terremoto, pelo tsunami e pela crise nuclear de Fukushima.

porTomi Mori

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Disseram que a reconstrução avançaria rápido, mas o que vi não foi exactamente isso. O que existe é a devastação, que continua lá. Todas as fotos são de Tomi Mori

Se, antes do tsunami, eu inventasse uma história na qual contasse o que já escrevi até agora, alguém poderia dizer que tenho imaginação fértil. Mas o que observei no final da viagem fez-me crer que não só o Setembro 11, nos EUA, como o tsunami, no Japão, tornam difícil a existência de certo tipo de ficção literária. A ficção científica terá ainda espaço, mas uma que descreva tragédias terá dificuldade de ser tão poderosa.

Terminei a visita ao túmulo de Kenji, na parte da manhã, e atravessei as montanhas em direcção a Rikuzen Takada, já na província de Iwate. A nível pessoal, era um dos locais que mais ansiava revisitar. Desde a tragédia, a imagem das fotos que havia tirado antes nessa cidade iam e voltavam, insistentemente, na minha mente. As pessoas, as crianças que fotografara, onde estariam agora?

As casas e construções não existiam. Parte tinha-se transformado num pequeno pântano, onde agora viviam garças brancas e alguns patos perdidos. Digo perdidos porque os patos são aves migratórias, e aqueles estavam fora da estação normal. O local era irreconhecível.

O pinheiro da esperança

Além da tragédia ter atingido profundamente a área, em Rikuzen Takada ocorrera uma coisa especial, que se transformara numa espécie de bandeira da esperança, veiculada em todos os meios de comunicação.

Havia um único pinheiro que tinha sobrevivido à fúria e à força do tsunami, mantendo-se, imponente, no meio da devastação que o rodeava. Foi-lhe dedicada uma placa, que se encontrava a seus pés até hoje: “Pinheiro mais forte que o tsunami.” Também a seus pés foi colocado um “jizou”, uma pequena estátua budista de uma divindade protectora.

Tinha lido sobre esse pinheiro no jornal. O artigo dizia que foram colhidas sementes dessa árvore e que haviam germinado, havendo a foto dos seus “filhotes”. Era, sem dúvida, uma imagem da esperança. O famoso pinheiro não perdeu para o tsunami mas, quando o vi, ainda permanecia no mesmo local, mas agora já morto.

Fora derrotado pelo sal, que se infiltrara na terra e o matara, como ocorreu com milhares de árvores. Não ocorreu, ou não foi possível, naquelas circunstâncias, que alguém se dedicasse a trocar a terra em volta dessa magnifica árvore, o que a teria salvo.

Fui e voltei três vezes ao mesmo local. Procurava o Parque de Takada Matsubara, na praia do mesmo nome. Como não conseguia encontrá-lo, por fim, encontrei um senhor numa encosta, observando o mar lá do alto. Perguntei onde ficava Takada Matsubara e ele respondeu: “É aqui...” Não havia mais nada em volta. “E a praia?”, indaguei perplexo. O homem levantou a mão e indicou-me a direcção do mar: “Não existe mais...” Atónito, fiquei a saber que o tsunami engolira uma praia inteira. Vi apenas os destroços do muro de protecção “afogados” no mar.

Um barco numa zona residencial

Estava a percorrer as áreas mais devastadas pelo tsunami. Dirigi-me a Ofunato. Chega um momento que, depois de algumas centenas de quilómetros a ver pura destruição, tudo já parece igual. Quando entrei em Ofunato foi essa a sensação. As construções, muitas delas, ainda não tinham sido demolidas.

Mas, bem longe do porto, avistei um barco. Era uma área residencial. O tsunami arrastara-o e deixara-o ali, ocupando todo o jardim de uma casa, como se fosse um barco de brinquedo deixado por uma criança travessa.

Estava a fotografar quando surgiu um grupo de três pessoas. Uma japonesa de Tóquio e um casal de americanos de Nova York, que disseram estar ali como voluntários. Para ter uma ideia, caminhei de ponta a ponta do barco e, pelos meus cálculos, tinha em torno de trinta metros. Uma coisa impressionante. Imediatamente após o tsunami, vários foram encontrados dessa maneira, mas já tinham sido removidos, alguns, inclusive, nos tectos das casas e prédios, fotos que saíram nos jornais, mas esses não vi.

Já entrava no final da tarde quando avancei pela cidade de Kamaishi. Assim como Kesennuma, Kamaishi também tinha um aspecto de ser outro mundo, fantasmagórico, com os prédios abandonados ainda por demolir. Sempre indo à direita, para ficar perto da costa, avistei um enorme barco que pensei que estava ancorado no porto. Realmente estava, mas de forma inusitada. Com a força do tsunami o “Asia Simphony” tinha-se encravado no muro de protecção do porto, como se fosse uma faca num bolo. A força foi tão grande que, ao invés de arrebentar o muro, como seria normal, tinha-o cortado. Isso provocara um buraco no seu casco. Por esse motivo, o “Asia Simphony” continuava ali, atracado no porto, meio de lado. Não tenho ideia de como farão para removê-lo.

Já era inicio de noite quando entrei na cidade de Miyako. O nome saíra constantemente na imprensa e imaginava que encontraria o fim do mundo nessa cidade. Não foi o caso, havia traços de destruição, mas na parte central a devastação não fora tão grande como nas outras cidades costeiras. Pesquisadores haviam confirmado que, nessa cidade, em certas áreas, o tsunami atingira 38,9 metros, a maior altura registada No meu trajecto, não pude ver essas marcas.

Na manha seguinte, despertei e rumei em direcção a Tarou, um porto mais ao norte da cidade. Parei para abastecer. O funcionário disse-me que em Tarou o tsunami tinha feito estragos. Ele estava a trabalhar no posto no momento da tragédia. A água tinha subido pela estrada, em direcção às montanhas, e ficara cheio de entulhos. A estrada ficara interditada e, durante uma semana, não houve luz eléctrica.

Segui para Tarou e realmente era como me dissera, um pequeno porto totalmente devastado.

Conduzi mais um pouco, em direcção ao norte. Já viajara mais de mil quilómetros, testemunhara algo que nunca desejei na vida, chovia devido ao furacão que se aproximava, pensei não ser prudente continuar a viagem. Vira, nalguns dias, uma extensão de, pelo menos, mais de 500 quilómetros de destruição, devastação e, desculpem mais uma vez, de verdadeiro inferno.

O meu tempo também estava escasso. Dei meia volta. A viagem de ida terminara, agora havia uma longa volta. Ao contrário do que imaginara no início, decidi, na medida do possível, voltar pelo mesmo caminho. Aos meus olhos acostumados, apenas mais uma surpresa. Em Kesennuma, vi vários barcos arrastados a centenas de metros do porto, e não eram pequenos. Para terem chegado ali, obrigatoriamente tiveram de passar por cima dos prédios de três a quatro andares, no geral, sem se “enroscarem”. Era evidente que o tsunami atingira uma altura superior a quinze ou, talvez, vinte metros.

Reconstrução marca passo

Não fui à procura da moral da história. Vi uma tragédia natural. Vi também outra tragédia, essa, da responsabilidade dos seres humanos. Quem vai à guerra acredita que não será morto, somos assim. Ao contrário das fanfarras e afirmações optimistas que, por ser o Japão, a segunda potencia imperialista, a reconstrução avança rápido, o que vi não foi exactamente isso. O que existe é a devastação, que continua lá. A rota 45, a principal nessa área costeira, na qual percorri grande parte da viagem, está a ser usada em estado precário.

Pontes foram destruídas, partes de asfalto arrancados, algumas partes continuam interditadas e há rachas por todos os lados. As rachas existem em todas as estradas que passei nas províncias afectadas Não me atrevi a comprovar, mas alguns trechos, segundo me disseram, ficam intransitáveis quando a maré sobe. Não existem supermercados numa vasta área, assim como hospitais, escolas e postos de gasolina.

Para os sobreviventes, a vida está bastante difícil. Na maioria dos locais, passados seis meses, conseguiu-se demolir a maioria das construções. Formaram-se montanhas de lixo, provisórias. Agora é necessário separar o lixo, o que é metal, o que é betão, o que é madeira, plástico, enfim...

Próximo a Fukushima 1, esse lixo tem radioactividade. A maioria dos pequenos portos de pesca foram destruídos E ainda não há indícios da sua reconstrução. Nalgumas cidades, como Iwaki, Kesennuma, Ishinomaki e Kamaishi, há meses de trabalho pela frente, só de demolição.

Existem as casinhas provisórias, as quais evitei ver durante a minha viagem. Alguns vilarejos, provavelmente, irão desaparecer ou juntar-se a outros. Parte da população pereceu ou abandonou o local devido às actuais circunstâncias. A palavra “reconstrução” não é revestida de mistério. Mas, na realidade local, possui um sentido profundamente amplo e complexo.

Não me restou dúvida que Fukushima 1 era e continuará a ser uma grande ameaça para milhões de pessoas. A tragédia nuclear transformou-se em dupla tragédia para a população do nordeste. Nos próximos anos, os “aftershocks” continuarão, com a sua intensidade diminuída. Isso, de imediato, impõe muitas duvidas. Reconstruir o quê? Para quê? Como? Não existem respostas simples.

Leia a primeira parte deste relato: Fukushima: o que vi; a segunda parte: Fukushima: cenas de um inferno; a terceira parte: Fukushima: brotos de persistência a quarta parte: Fukushima: na rota da destruição

Sobre o/a autor(a)

Tomi Mori