Fukushima: Brotos da persistência

01 de outubro 2011 - 1:59

Terceira parte do relato da viagem que o correspondente no Japão do Esquerda.net fez à região mais atingida pelo terremoto, pelo tsunami e pela crise nuclear de Fukushima. Seis meses depois, no meio da paisagem de destruição e desolação, há quem persista em ressuscitar a vida.

porTomi Mori

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Ishinomaki: no meio da destruição, a esperança e a persistência. Todas as fotos são de Tomi Mori

Acordei antes das quatro da manhã, comprei algo para um rápido desjejum na loja de conveniência e entrei no carro para comer. Quando liguei o carro vi que o mesmo balançava. Terramoto? Só depois, quando voltei da viagem, é que fiquei a saber que fora um sismo de magnitude 6.3. Os terramotos são diários numa vasta área que vai de Chiba, vizinha a Tóquio, até Hokkaido, no extremo norte do arquipélago. Essa situação de forte e contínua actividade sísmica continua a manter toda a região sob a possibilidade de uma nova tragédia, ainda que a verdade seja minimizada pela escala japonesa que mede a densidade dos tremores e não a magnitude. Por causa disso, os japoneses não compreendem a verdadeira situação.

Dependendo da circunstância. um terramoto de magnitude superior a 6.0, como foi o caso, pode aparecer como sendo um de tremor 3, na escala nipónica. O que os torna, aparentemente, menos assustadores, mas não menos perigosos. Como são constantes, que um deles venha atingir em cheio Fukushima 1 não é uma possibilidade delirante. Não é necessário que atinja em cheio. Um terramoto que ocorra próximo, e cause um novo tsunami, pode deitar tudo a perder. E a TEPCO está longe de ter construido um mecanismo para impedir uma nova tragédia, já que nem mesmo conseguiu resolver a antiga.

Em Sendai terminava a rota 6 e agora seguiria pela rota nacional 45, que vai pela costa, em direção ao norte. O que era a rota 45 e o que é hoje são coisas bastante diferentes. Inúmeras pontes foram arrastadas, muitos trechos estão sem asfalto, cobertos com pedregulhos, as brechas causadas pelo terremoto são uma constante em todo o percurso e, inclusive, um trecho está fechado devido ao deslizamento de uma montanha no trajecto.

Matsushima escapou

Entrei na rota 45 em direção a Matsushima, amanhecia e parecia que seria espectacular. Apressei-me. Quando cheguei ao lado da montanha onde se avista a baía de Matsushima, parei o carro para tirar umas fotos. O céu começou a ficar vermelho. Lá em baixo, via as pequenas ilhotas na baía.

Foi, sem dúvida, um dos cenários mais bonitos que terei visto em vida, mas tudo não deixava de ter a sua tristeza. Tirei outras fotos também das proximidades.

Cheguei a Matsushima, por onde havia viajado anteriormente, esperando encontrar a cidade totalmente arrasada. Foi com surpresa que vi apenas algumas sequelas. O tsunami fora benevolente com Matsushima, considerada uma das três paisagens mais belas do arquipélago. A localização de Matsushima, que ficou escondida da fúria das águas, permitiu que sobrevivesse.

Saí mais aliviado, indo para outra parte da cidade que ainda não conhecia, Okumatsushima.

Uma tristeza sem fim

Imaginei que o que salvara Matsushima, em contrapartida, deveria ter causado forte estrago noutro local. O meu alívio acabou quando cheguei, pela primeira vez, a Okumastushima. O tsunami batera forte no local, que aparentava ter uma tristeza sem fim. As casas daquele tranquilo e escondido vilarejo haviam sido completamente destruídas e muitas continuavam ainda à espera da demolição.

Voltei pelo mesmo caminho até à rota 45 e virei em direção a Ishinomaki. Ler esse nome causou-me apreensão. Ishinomaki era um nome que lera muitas vezes no noticiário. Fui em direção ao porto. Antes de chegar começaram a surgir as cenas da tragédia. Nessa cidade, muitas casas ainda estão à espera da demolição.

O ambiente é asfixiante, com a água a cobrir muitos dos antigos terrenos. No meio dos entulhos, vi um pequeno boneco de pelúcia. Ensopado, o boneco, inexplicavelmente, por ser um brinquedo de criança, tinha uma expressão triste. Não é preciso dizer que lamentei muito ter encontrado esse boneco e tudo que ele poderia representar. Vacilei bastante até que, por fim, me decidi a tirar a sua foto que, confesso, não gosto de ver.

Ao longe, os guindastes do porto acrescentavam mais solidão e tristeza ao cenário. Em redor, os outrora verdejantes pinheiros estavam todos mortos. Anteriormente, estava em dúvida, mas agora estava cristalino. A salinidade da água marinha matara os pinheiros após o tsunami. Hoje, em toda a costa afectada, os pinheiros mortos são as testemunhas naturais da tragédia.

Tragédia natural e tragédia humana

Só nesse momento, também, me ficou claro o que poderia ser considerado tragédia natural e o que era tragédia humana, criada pelo homem.

A tragédia natural foi o terramoto, que causou deslizamentos e o tsunami. Por sua vez, o tsunami, agente involuntário do terramoto, matara um sem número de peixes, caranguejos e animais marinhos, que morreram quando as águas recuaram. As águas do tsunami mataram plantas, pequenos animais, insectos e milhares de árvores, acabando com muito da beleza natural. Isso é o que pode ser considerado tragédia natural.

Todo o resto foi tragédia humana. A opção de morar em locais perigosos, ou a incapacidade de não fazê-lo. Construir centrais nucleares em locais sujeitas a terramotos e tsunamis. Essas são, inequivocamente, decisões humanas. E não se podem culpar as divindades, demónios ou a mãe natureza, ainda que a maioria o possa fazer.

Tentando ressuscitar a vida

Continuava a explorar as ruas destruídas de Ishinomaki, com receio de atolar o carro num local deserto, quando passei por uma casa onde havia uma pequena plantação Naquele local onde não sobrara, praticamente, nada, alguém tentava ressuscitar a vida. Um senhor de cabelos brancos, alto, usando óculos, estava no quintal. Decidi parar o carro para tirar uma foto. Ele observou quando desci e não havia como não fazer-lhe uma saudação. Disse bom dia e perguntei-lhe se podia tirar uma foto. Respondeu que sim. Foi atencioso e explicou-me que anteriormente ali havia um muro de blocos. Disse também, apontando, que vários vizinhos tinham morrido. Apontou para o tecto mostrando até onde a água havia subido. Contou que, em Julho, plantara milho e já tinha colhido. E que, agora, no mesmo local, plantara espinafres que ainda não tinnham brotado. Vi um canteiro com brotos de alguma verdura, fotografei, mas não sei o que é. Havia também pequenos pés de beringela.

O senhor contou-me que, depois do tsunami, mostrando a desolação em volta, passou a morar na casa da sua filha, no centro de Ishinomaki. Ela tinha dito que não podia morar mais naquele local pois é perigoso. O velho mostrou-me parte do terreno, que havia limpado e no qual pretende reconstruir a sua casa para poder voltar. Disse que representava a décima quarta geração da sua família a viver no mesmo local e que, pelas suas contas, deveria ser um período de cerca de 300 anos. Por último, antes de me despedir comentou: “O local onde nascemos é o melhor local para, nós, velhos, vivermos.” Fiquei comovido com a sua determinação e coragem. Eu jamais teria as forças para ver todos os dias aquela paisagem destruição, desolação e solidão, acompanhado de um cheiro ágrio de decomposição.

Leia a primeira parte deste relato: Fukushima: o que vi; e a segunda parte: Fukushima: cenas de um inferno; a quarta parte: Fukushima: na rota da destruição; a quinta parte: Fukushima: Realidade maior que qualquer ficção.

Sobre o/a autor(a)

Tomi Mori