Seguindo pela rota 45 cheguei ao vilarejo de Onagawa. Todos os vilarejos da costa por onde passei tinham uma população de pescadores, agricultores e sectores de serviços como lojas e hospitais. Nalgumas cidades, Fukushima, Sendai, Iwaki, havia grande actividade industrial, mas eram excepções. O nordeste não é muito industrializado. O nome Onagawa apareceu no início da crise nuclear. Como nos lugares por onde passara, a cena era de destruição. A diferença, e essa não era pequena, foi que achei estranho as paredes de um certo prédio, que fora construída com cimento e pedras. Quando olhei melhor, verifiquei que o que pensava ser uma parede, na verdade, era o piso. O prédio havia tombado com a fúria do tsunami, como se fosse um pino de bowling.
Com um olhar mais atento, pude ver que um prédio de quatro andares estava semi-destruído. Pelas marcas, dava para ver que o tsunami atingira, em Onagawa, uma altura mais elevada que os locais por onde havia passado antes. Conversando com um trabalhador da construção, indicou-me o hospital que fica em cima de uma elevação, explicando que a água tinha chegado ao primeiro andar, ou seja, atingira quinze metros de altura.
Um autocarro no telhado
Entrei por uma estrada local e cheguei a outro povoado. O mapa que tinha em mãos apenas indicava as principais cidades. Em muitos casos, apenas sabia onde estava depois de olhar em redor. Com grande surpresa, vi um autocarro no telhado de um prédio. Já tinha visto a foto desse autocarro no jornal Yomiuri.
O artigo dizia que a população local discutia ainda o que fazer com ele. Enquanto alguns argumentavam que deveria ser mantido lá, como testemunho da tragédia, outros eram contrários a essa ideia. Argumentavam que aquele autocarro em cima do prédio os fazia lembrar da tragédia e, por isso, seria melhor retirá-lo. Várias pessoas tiravam fotos.
Um rapaz aproximou-se, com um caderno de notas na mão. Perguntei-lhe como se chamava o local onde estávamos, pois não vira nenhuma placa que me informasse. Respondeu que se tratava de Ogatsu. Conversámos um pouco e contou-me que era repórter do jornal Chunichi, o mais importante na área das províncias de Shizuoka e Aichi, e que viera da cidade de Nagoya, tendo percorrido os locais mais atingidos.
Minami Sanriku, onde ocorreram mais mortes
Tentei seguir pela rota 45, mas o caminho estava bloqueado por um deslizamento na montanha. Tive que retornar e dar uma volta. Não havia placas e acabei por me perder.
Fui parar em Kahoku, onde perguntei como fazer para seguir em frente. Tive de optar pela rodovia expressa, que evitava, por ser paga, e também pelo facto de não me permitir ver os locais, objectivo desta viagem. Saindo da rodovia expressa Sanriku, cruzei as montanhas em direcção à rota 45. Descendo a montanha, comecei a ver as antigas placas de boas-vindas ao vilarejo, mas em seguida surgiram indícios de destruição, pinheiros mortos, destroços, barcos, um cemitério de carros esmagados. Uma área devastada onde havia apenas os vestígios das casas e alguns prédios ainda não demolidos.
Depois de rodar algumas centenas de quilómetros estava em Minami Sanriku, local onde foi noticiado que ocorreram mais mortes. Dias depois do tsunami, a imprensa noticiava que havia mais de dez mil mortos e desaparecidos. Mas, segundo os últimos dados, na realidade, as mortes foram 542 e os desaparecidos 664. O que, de toda maneira, é um grande número numa população composta por pouco mais de 17 mil pessoas antes do desastre. Noutros locais onde a imprensa divulgou, no calor dos acontecimentos, um grande numero de mortes, no geral, o número real foi abaixo do divulgado, como pude constatar posteriormente. Em toda a área atingida, o tsunami demorou apenas de 10 a 30 minutos para atingir a costa. Um tempo muito curto para idosos correrem e, ainda pior, para lugares altos.
Em Minami Sanriku existe o Parque da Montanha, como indica o nome, fica numa montanha voltada para o mar. Caminhei até o parque para tirar algumas fotos. Infelizmente, apesar de ser um lugar seguro, os moradores não tiveram tempo suficiente para se refugiar nele.
Kesennuma: águas atingiram 20 metros de altura
Segui pela rota 45, em direcção à cidade de Kesennuma, que apareceu constantemente no noticiário. No percurso, subi uma encosta onde havia várias casas. Apesar de ser um local alto, fui surpreendido por algumas casas semi-destruídas. Parei para conferir. Como não tinha certeza de que aquilo fora resultado do tsunami, fui obrigado a perguntar. Havia um pequeno posto de gasolina, dos poucos que sobreviveram na costa, justamente pela sua localização elevada. Perguntei o motivo da casa vizinha estar semi-destruída e responderam que fora o tsunami. Disseram que ali o tsunami atingira 20 metros, o que era evidente, pois olhei minuciosamente para conferir.
Um carpinteiro que trabalhava no conserto de uma casa disse-me que ali, na costa de Oya, o tsunami havia vindo pelos dois lados e, por isso, destruíra várias casas, mesmo em cima da encosta.
Começou a chover um pouco e já ameaçava escurecer. Fui em direcção a Kesennuma. Uma placa indicava a região central e virei em diagonal, à direita, nessa direcção. Já tinha escurecido quando entrei na avenida principal. Observei prédios destruídos e não conseguia reconhecer o local onde estivera há três anos. O número de construções diminuía na avenida quando avistei uma loja de carros. Parei para perguntar se o local era realmente Kesennuma. O vendedor, solícito, explicou que, sim, era Kesennuma, mas o centro da cidade ainda ficava mais à frente. Segui, sempre à direita, que era a direcção da costa.
Um lugar fantasmagórico
Não havia luz nos postes, os prédios e casas continuavam ali, sem terem sido demolidos. Dos dois lados da rua havia água. Soube depois que isso ocorria no final da tarde, com a subida da maré. O lugar era fantasmagórico. Senti, e não seria honesto negar, que me encontrava no mundo dos mortos. A sensação era desagradável e conheço muitos “machos” que não teriam coragem de estar ali naquele momento. Temi que pudesse atolar o carro nalgum local de onde já não conseguisse sair. Tentei encontrar o caminho para continuar em frente. O que vi foram ruas alagadas e já não confiava que era prudente continuar. Não conseguia retornar a rota 45 como desejava.
Do meio do nada surgiu uma senhora que empurrava uma bicicleta. Usava um chapéu e uma máscara branca na boca. Admito que não era a mulher mais bonita que encontrara na minha vida, ainda mais naquelas circunstâncias. Se não fosse materialista, teria dúvidas de que se tratava de um ser humano. Fugir? Para onde, se estava perdido? Não me restou alternativa senão perguntar como fazer para sair dali. Obedeci às instruções e encontrei uma placa indicando a cidade de Ichinoseki, na direcção contrária para onde deveria ir.
Uma conversa com Kenji Miyazawa
Ainda que não fizesse parte do meu plano de viagem, quase inexistente, liguei para uma pensão na cidade de Hanamaki, na província de Iwate, para ver se conseguiria passar a noite lá. Quando liguei, a gerente, que de certa foram conhecera na viagem que fizera no ano novo deste ano, atendeu e, reconhecendo-me, disse que todos os quartos estavam ocupados. Mas, se não me importasse, poderia alojar-me no quarto nos fundos, mas alertando que não tinha televisão. Já estava no terceiro dia de uma cansativa viagem. Não tinha tomado banho desde então, e pensar que poderia lavar-me na banheira feita de Hinoki, uma das variedades de pinheiro japonês, parecia-me uma espécie de ida ao paraíso. Era completamente fora do meu roteiro, mas parecia ser coerente ganhar energia para continuar o resto da viagem.
Além disso, tinha uma velha conta a acertar, e esta já poderia tornar-se a terceira tentativa fracassada. Durante anos planeei uma visita ao túmulo do escritor Kenji Miyazawa, nascido em Hanamaki. Nas duas visitas anteriores que fizera à província de Iwate com este objectivo, fora impedido pela nevasca, que não me permitiu locomover-me. Decidi gastar algumas horas, desviando-me do objectivo da viagem, para ter uma conversa com Kenji, o que, finalmente, consegui fazer.
Leia a primeira parte deste relato: Fukushima: o que vi; a segunda parte: Fukushima: cenas de um inferno; a terceira parte: Fukushima: brotos de persistência; a quinta parte: Fukushima: Realidade maior que qualquer ficção.