Memória

A Frente Popular de 1936 em França

23 de junho 2024 - 20:38

Em 1936, face ao avanço da extrema-direita em França, apoiada pelos nazis alemães e fascistas italianos, os partidos de esquerda , os sindicatos e outros movimentos sociais constituem a Frente Popular, derrotando nas urnas o avanço do fascismo e deixando um legado histórico que continua a inspirar a esquerda de hoje.

porÁlvaro Arranja

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Frente Popular, manifestação.
Frente Popular, manifestação.

Atingida pela crise mundial iniciada em 1929, a França dos anos 30 não escapou à instabilidade económica e social generalizada. Para a oligarquia económica e financeira, a resposta aos movimentos sociais que contestavam o capitalismo em crise, já não era assegurada pelos políticos da 3ª República. Como na Itália de Mussolini ou na Alemanha de Hitler, sabem que o financiamento e o reforço dos movimentos de extrema-direita é uma arma decisiva para desviar os descontentes dos partidos de esquerda ou dos sindicatos.

Em 6 de fevereiro de 1934, Édouard Daladier do Partido Radical, apresentou o seu novo governo à Câmara dos Deputados. É o pretexto para uma violenta manifestação antiparlamentar que irá abalar a República. As ligas de extrema-direita convocaram manifestações no mesmo dia da posse de Daladier, em Paris (Place de la Concorde), em frente da Assembleia Nacional.

Entre os organizadores do evento estão as Croix-de-Feu, do Coronel Conde de La Roque, o maior grupo da manifestação. Também estão presentes as ligas monárquicas Action Française e os Camelots du Roi, as Jeunesses Patriotes, bem como o grupo Solidarité Française (que depois, serão a base do regime colaboracionista de Vichy, durante a ocupação da França pelas tropas de Hitler).

Le Populaire, jornal do Partido Socialista (SFIO), em 7 de fevereiro de 1936.

Le Populaire, jornal do Partido Socialista (SFIO), em 7 de fevereiro de 1936.

Na Place de la Concorde, a manifestação degenerou em violência. Milhares de manifestantes tentam marchar sobre a Assembleia Nacional (Palais-Bourbon). A Guarda Móvel dispara. Os confrontos continuam até de madrugada. Dezasseis manifestantes e um polícia foram mortos. Há mais de mil feridos... Mas o parlamento não é invadido e a repetição da marcha sobre Roma de Mussolini fracassa.

Perante o golpe de força da extrema-direita, a esquerda percebe que tem de reagir. Não podem repetir o que se passou na Alemanha, onde sociais-democratas e comunistas foram incapazes de se unir contra o nazismo.

Em 12 de fevereiro, a CGT convoca uma greve geral e manifestações em toda a França. É a maior greve geral, até então, seguida em toda a França, com 350 manifestações de norte a sul do país.

12 de fevereiro de 1934. Manifestação em Paris no primeiro dia da greve geral.

12 de fevereiro de 1934. Manifestação em Paris no primeiro dia da greve geral.

Em Paris, está prevista uma grande concentração na Place de la Nation. Mas socialistas e comunistas concentram-se em diferentes locais. Duas manifestações separadas partem para o mesmo local. Sabendo-se que a história dos dois partidos tinha sido marcada pela divergência, receava-se que pudessem ocorrer confrontos entre as duas partes.

Porém, quando as duas manifestações se juntam na Place de la Nation, dos dois lados uma só palavra de ordem se ouve:

«Unité! Unité!» (Unidade)

Marcel Cachin do PCF e Léon Blum da SFIO (Partido Socialista) falaram à multidão.

Le Populaire de 13 de fevereiro de 1934.

Le Populaire de 13 de fevereiro de 1934.

Diz Blum no fim do seu discurso na Place de la Nation:

«A reação não passará!

Viva a República dos trabalhadores!

Viva a liberdade!

Viva a unidade proletária, sem a qual nenhuma vitória é possível!

Viva o povo operário de Paris!»

Léon Blum na manifestação de 12 de fevereiro de 1934.

Léon Blum na manifestação de 12 de fevereiro de 1934.

Poucos meses depois, no verão de 1934, esta união popular antifascista traduziu-se numa união política, porque comunistas e socialistas, embora opostos desde a sua cisão em 1920, acabaram por chegar a acordo sobre a formação de um projeto, de um pacto de unidade de ação. E é com base neste pacto de unidade de ação, socialista e comunista, que a futura Frente Popular será construída.

Estabelecida esta aliança, com um programa um tanto vago mas unificador que pode ser resumido em três palavras: pão, paz, liberdade, os candidatos às eleições legislativas apresentaram-se sob a sua própria bandeira: Partido Radical, Partido Socialista ou Partido Comunista.

Em 1935, a Frente Popular obteve a sua primeira vitória nas eleições municipais e cantonais. Este sucesso foi confirmado pelos resultados das eleições legislativas de 26 de abril e 3 de maio de 1936. A Frente Popular obteve então 57% dos votos expressos na primeira volta. A coligação acabou por eleger 386 deputados – de 608 – para ocuparem assento como maioria na Câmara dos Deputados.

Vitória da Frente Popular. L`Humanité, jornal do PCF. 4 de maio de 1936.

Vitória da Frente Popular. L`Humanité, jornal do PCF. 4 de maio de 1936.

O novo governo foi formado em junho, liderado pelo socialista Léon Blum. O PCF prefere ficar fora do governo, dando apoio na Assembleia Nacional. O Partido Radical integra o governo.

Pela primeira vez, três mulheres são membros de um governo em França, (Suzanne Lacore para a Proteção da Criança, Irène Joliot-Curie para a Investigação Científica e Cécile Brunschwig para a Educação Nacional), embora ainda não tenham direito de voto.

Pela primeira vez em França, três mulheres no governo da Frente Popular. L`Ilustré de 14 junho de 1936.

Pela primeira vez em França, três mulheres no governo da Frente Popular. L`Ilustré de 14 junho de 1936.

A vitória da Frente Popular, ainda antes da tomada de posse do governo, provocou uma onda de reivindicações entre os trabalhadores. Movimentos grevistas, ocupações pacíficas de fábricas, mais de dois milhões de trabalhadores exigem melhores condições de trabalho. São as chamadas «grèves joyeuses» (greves alegres). Os trabalhadores já não temiam a repressão policial das greves e ocupações. Ficaram imagens de alegria.

Greve na empresa de charcutaria Olida em 1936.

Greve na empresa de charcutaria Olida em 1936.

A França paralisa e o patronato é obrigado a abrir negociações. As reivindicações são sobre o aumento de salários, a limitação do horário de trabalho a 40 horas semanais... e as férias pagas. Pela primeira vez um governo chama o patronato e os trabalhadores à sede da Presidência do Conselho de Ministros, o Hotel Matignon.

Léon Blum percebe a importância da exigência de “ser pago para não fazer nada” e do aproveitamento do tempo livre. Ele faz disso um dos assuntos colocados na mesa do que virão a ser os acordos de Matignon.

Na noite de 7 para 8 de junho de 1936, em Paris, os acordos foram oficialmente assinados entre o Presidente do Conselho, Léon Blum, a Confederação Patronal e a CGT. Esses acordos preveem a generalização dos acordos coletivos, a criação de delegados de pessoal e um aumento de 12% nos salários.

Cartaz da CGT sobre a semana de 40 horas de trabalho, em 1936.

Cartaz da CGT sobre a semana de 40 horas de trabalho, em 1936.

Porém, a memória dos franceses recordará sobretudo a semana de 40 horas e a concessão de duas semanas de férias pagas, que lhes permitirá sair de férias no verão de 1936.

Sabemos o resto com as imagens das primeiras partidas em massa (cerca de 600.000 em 1936, depois 1,8 milhões em 1937), o aumento dos acampamentos de verão, a invenção dos bilhetes SNCF de comboios com tarifas reduzidas, etc.

As primeiras férias pagas. Regards, 29 de julho de 1937.

As primeiras férias pagas. Regards, 29 de julho de 1937.

Como é óbvio, a forte oposição da direita política e da oligarquia económica, não se fizeram esperar. Os direitos sociais conquistados pelos trabalhadores no governo da Frente Popular, eram uma ameaça direta aos seus privilégios.

O franco é enfraquecido pela fuga de capitais (para a Suíça, em particular). O aumento dos salários, mas também a hostilidade dos patrões às reformas, levaram a um aumento acentuado dos preços. A extrema-direita acentua a violência, com os atentados e assassinatos da «Cagoule».

Léon Blum teve que abandonar os seus projetos de reforma em 1937: foi “a pausa”. Em junho de 1937, Léon Blum renuncia, após uma prolongada luta com o Senado, onde a direita estava em maioria.

Ainda com base na maioria da Câmara dos Deputados da Frente Popular, Camille Chautemps, do Partido Radical, forma novo governo. Embora apoiando a Frente Popular, o Partido Radical, representante da pequena burguesia, nunca esteve confortável com as políticas sociais do governo e o espírito da Frente Popular desaparece progressivamente.

*

A Frente Popular é um momento mítico da esquerda. É o momento da unidade! A esquerda esteve muito tempo dividida, nos séculos XIX e XX. Houve curtos momentos de unidade ligados a vitórias e a conquistas sociais. Para além das eleições e da política, é um movimento social sem precedentes!

Depois das eleições legislativas, há grandes greves, mais de dois milhões de grevistas. Estas greves, com ocupações de fábricas, conduziram muito rapidamente - desde a investidura de Léon Blum - aos acordos de Matignon. Isto é fundamental, porque pela primeira vez o Estado coloca à mesma mesa os representantes do patronato e os representantes dos trabalhadores. Léon Blum legisla sobre a semana de 40 horas, sobre os acordos coletivos, sobre os delegados dos trabalhadores, sobre as férias remuneradas... Pela primeira vez, a democracia política inclui aspetos de democracia social, económica e cultural. Por isso, a Frente Popular continua uma referência decisiva da esquerda francesa, ainda hoje.


Para saber mais:

- Jacques Delpierre de Bayac, Histoire du Front Populaire, Paris, Fayard, 1972.

- Michel Margairaz, Le Front Populaire, Paris, Larousse, 2009.

- Serge Wolikow, 1936 – Le Monde du Front Populaire, Paris, Cherche Midi, 2016.

Álvaro Arranja
Sobre o/a autor(a)

Álvaro Arranja

Professor e historiador.