Faleceu Ramiro Morgado, combatente anti-fascista

17 de abril 2023 - 22:40

Operacional da ARA, preso político torturado pela PIDE, foi dos últimos a ser julgado em tribunal plenário e dos primeiros a prontificar-se a defender a revolução de Abril em 11 de março de 1975. Morreu aos 83 anos.

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Ramiro Morgado em 2020. Foto de Mariana Carneiro.

Ramiro Rodrigues Morgado morreu aos 83 anos, vítima de uma pneumonia. Assumiu a luta contra o salazarismo, foi preso e torturado e militou à esquerda antes e depois do 25 de Abril de 1974.

Antes da revolução, a sua ligação ao PCP data de 1958. Anos depois, em 1962, participou na conspiração contra a ditadura que ficou conhecida como a Revolta de Beja, sem que tivesse tomado parte diretamente nas operações militares. Nos dois anos seguintes fez a tropa em Moçambique.

No início dos anos 1970, Ramiro Morgado trabalhava na Dialap como delapidador de diamantes, depois de ter sido operário na fábrica de armamento de Braço de Prata. Para além do trabalho de propaganda nos bairros operários da zona oriental de Lisboa e da intervenção reivindicativa na luta dos trabalhadores, passou a ser operacional da Acção Revolucionária Armada, o grupo clandestino de ação armada dirigido pelo PCP.

No âmbito desta organização participou, por exemplo, nas operações que levaram às explosões do navio Cunene, em 1970, e às que levaram à destruição de armamento destinado ao navio Muxima, em 1972, na sabotagem da Base Aérea de Tancos em março de 1971, no corte da rede elétrica em Santarém em junho de 1971 e em Alverca em agosto de 1972.

Pela sua participação na ARA foi preso a 27 de março de 1973. Foi torturado pela PIDE e foi um dos presos políticos libertado do Forte de Caxias logo após o 25 de Abril.

Em Caxias, barricámo-nos na cela e iniciámos uma greve de fome”

Ramiro Morgado contou ao Esquerda.net, há dois anos, no âmbito de uma série de testemunhos intitulada “confinamentos em tempo de ditadura”, sobre essa experiência. Explicou como, logo após a prisão, “até à madrugada de 3 para 4 de abril” esteve “em contínuo, de pé”: “nunca me deram uma cadeira”.

Dizia que “as torturas endureciam à noite, e estavam a cargo do chefe de brigada daquela altura, o Capela” e que a polícia política salazarista tentou aliciá-lo a incriminar Raimundo Narciso, prometendo em troca a libertação. Como recusou, “arraiaram-me até eu perder os sentidos. Estive cerca de 20 horas numa espécie de coma”. Os espancamentos que sofreu ao longo da sua detenção fizeram com que ficasse com uma paralisia parcial do seu lado direito. O que gerou uma mobilização para que fosse visto por um médico externo.

Do seu testemunho, destaca-se também a experiência de isolamento “cerca de três meses” numa “cela muito pequena com dois beliches e uma casa de banho que dava para as traseiras de Caxias”. Aí, “não podia comunicar com ninguém, não me deixavam ter nada para ler. Passava os dias e as noites a tentar perceber como é que tinha ido ali parar e o que é que os pides sabiam. Não me entretinha com nada, não me conseguia livrar daquela obsessão”.

Depois disso, passou para uma cela com mais “seis ou sete” presos políticos. Passados “seis ou sete meses preso, tivemos acesso a livros”. Era um dos responsáveis pelas comunicações com prisioneiros de outras celas.

Conta ainda como os seus colegas de trabalho “fizeram uma coleta todos os meses” para assegurar o seu salário. E como no Natal se juntaram para comprar um presente à sua filha.

A petição para que fosse visto por um médico levou-o para a Penitenciária como “castigo”. Recorda que esta “era pior do que Caxias”, mas só lá esteve onze dias num num espaço pequeno apenas com “uma fresta para respirar”, “não tinha direito a toalha, e a “sanita” era um balde sem tampa. Uma vez por dia, o guarda abria a porta e levava-me pelo corredor para eu poder despejar o balde num buraco que lá tinham”. E “duas vezes por semana, o guarda levava-me ainda a tomar banho com água gelada em pleno inverno. Não tinha roupa para mudar, sacudia o que tinha”.

Volta a seguir para Caxias. Aí, quando a PIDE leva um dos detidos para ser torturado e não o devolve à sua cela, decidem barricar-se e iniciar uma greve de fome que dura “sete ou oito dias” até que a polícia entrega o seu companheiro.

A 25 de abril de 1974, a revolução encontra-o em Caxias. Estava marcada para a manhã deste dia uma sessão do julgamento em “tribunal plenário” do seu caso na Boa Hora. O Diário de Notícias de 25 de Abril de 1999 dá conta que Fernando Morgado Florindo, o desembargador que presidia à sessão, contactou com a polícia política tendo em seguida escrito em despacho: “Tendo a Direcção-Geral de Segurança comunicado telefonicamente a impossibilidade de assegurar a condução dos réus a este tribunal, devido ao Movimento das Forças Armadas, adio "sine-die" o julgamento.”

Contudo, Ramiro Morgado foi “um dos que Spínola não queria deixar sair, por fazer parte da ARA”, afiança ainda na entrevista ao Esquerda.net. Mas “os presos revoltaram-se contra essa discriminação e avisaram que saíam todos ou não saía nenhum”. E saíram mesmo todos.

11 de março: “um trabalhador em armas na defesa do Ralis”

Para além disto, destaca-se a sua intervenção no 11 de março. Numa entrevista à RTP, em março de 2020, intitulada “um trabalhador em armas na defesa do Ralis” é contada também esta experiência. A sua organização tinha “planos defensivos para atuação na capital, assinalando a localização de quartéis, pontes, postos de electricidade, locais onde se poderia colocar barricadas”, explica a peça jornalística. Quando a 11 de março ouviu rajadas de metralhadora pesada e explosões saiu do trabalho e foi para o Ralis, que estava cercado pelos paraquedistas. Consegue furar o cerco, falando com um dos militares, e entrar nas instalações, sendo integrado numa das companhias.

A mesma reportagem traz outra história, a de um processo reivindicativo antes do 25 de Abril na Dialap que fez os trabalhadores encarar a possibilidade de entrarem em greve. Ramiro Morgado foi identificado como um dos instigadores e foi ameaçado de despedimento. Não cedeu. Resultado: no dia seguinte, um dos administradores voltou a chamá-lo e “falando sempre de costas voltadas” para si acabou por lhe comunicar que iriam ceder à maior parte das reivindicações.

A essa empresa voltou depois de sair da prisão. Continuou a militar no PCP até 1990, partido no qual era responsável pela ligação aos militares. Depois disso, foi militante do Bloco de Esquerda em Lisboa.

Sobre ele, escreveu Raimundo Narciso, dirigente da ARA, no seu livro de 2000 em que conta a história da organização: “Ramiro era um agitador nato e um líder operário da zona oriental de Lisboa. Conhecia bem o seu meio, os problemas e reivindicações daquela região operária e da sua empresa, onde era estimado e reconhecido”. E noutra parte: “Não tinha em grande conta as ortodoxias. Se lhe parecia justo e revolucionário, apoiava e participava, ao arrepio de regras conspirativas e das recomendações dos seus controleiros do PCP, em iniciativas antifascistas de grupos políticos dissidentes ou concorrentes”.

O Bloco de Esquerda e o Esquerda.net enviam sentidas condolências à família e amigos de Ramiro Morgado.

As cerimónias fúnebres incluem a presença do corpo a partir das 15 horas desta terça-feira na Igreja Nossa Senhora da Conceição (Olivais) e o funeral que será na quarta-feira, saindo da Igreja às 13.30, sendo a cremação às 14 horas no cemitério dos Olivais.

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