Está aqui

EUA e Alemanha leram mensagens encriptadas de dezenas de países ao longo de décadas

Uma reportagem do Washington Post e da ZDF revela que a empresa de suíça Crypto AG, que fornecia produtos para cifrar mensagens a Portugal e muitos outros países, era na verdade detida pelos serviços secretos da CIA e BND desde 1970.
Aparelho para encriptar mensagens de voz via rádio, usado pelos militares suíços e de outros países. Foto Kecko/Flickr

A vontade dos serviços de segurança dos Estados Unidos em ouvir as comunicações alheias ficou exposta com as revelações de Edward Snowden sobre as “portas de entrada” colocadas nos programas informáticos mais populares e outras formas de acesso por parte da NSA às comunicações globais. O que ainda não se sabia é que essa prática é muito mais antiga.

A empresa Crypto AG fornecia material de encriptação às tropas norte-americanas desde a II Guerra Mundial e tornou-se no pós-guerra a líder de mercado na venda das máquinas portáteis que permitiam escrever e decifrar mensagens secretas, acompanhando a evolução tecnológica das décadas seguintes. A lista de clientes inclui mais de 120 países, entre os quais Portugal, revela a reportagem do Washington Post e da alemã ZDF. Calcula-se que 40% dos telegramas diplomáticos decifrados pela agência norte-americana NSA tinham sido cifrados com máquinas desta empresa.

O que nenhum destes clientes desconfiava era que os aparelhos que usavam estavam adulterados de forma a permitir que os códigos usados fossem lidos pelos verdadeiros donos da empresa: os serviços secretos norte-americanos e alemães, que a adquiriram em segredo em 1970, e ainda lucraram muitos milhões com o negócio.

Foi assim que, ao longo de décadas, a CIA e o BND puderam ter conhecimento das comunicações trocadas pelos protagonistas de vários eventos que marcaram a história mundial, como conflitos como a Guerra das Malvinas, os assassinatos em massa das juntas militares sul-americanas, a crise dos reféns na embaixada norte-americana em Teerão em 1979, o atentado de 1986 contra militares dos EUA numa discoteca em Berlim, da autoria dos serviços secretos da Líbia.

Países como a União Soviética ou a China nunca adquiriram produtos da Crypto, talvez por suspeitarem das ligações da empresa às potências ocidentais. Mas a reportagem diz que os serviços secretos dos EUA conseguiram aceder a muita informação através das mensagens enviadas pelos clientes da Crypto AG para Moscovo e Pequim.

O receio de ver exposta a operação terá levado os serviços secretos alemães a abandonar a operação após a reunificação do país no início da década de 1990. A CIA adquiriu a parte alemã e continuou a manipular os produtos da Crypto até 2018, altura em que as tecnologias de encriptação online já tinham feito encolher o mercado da empresa com sede na Suíça. A empresa foi depois dividida em duas parte: a CyOne Security, que tem como cliente exclusivo o governo suíço e é liderada pelo mesmo gestor que esteve duas décadas à frente da Crypto AG, e a Crypto International, que ficou com a marca e o negócio internacional.

A reportagem tem como base documentos de ambas as agências de espionagem, bem como entrevistas de alguns dos responsáveis envolvidos na operação ao longo das décadas. O governo suíço — sobre o qual recaem suspeitas de saber desde sempre desta operação — anunciou uma investigação aos laços da empresa com os serviços secretos estrangeiros, após ter revogado no início do mês a licença de exportação à Crypto Internacional.

“Se eu tenho remorsos? Zero”, respondeu o diretor da NSA e vice diretor da CIA a partir do final dos anos 1970 ao Washington Post. “Este é era uma fonte de comunicações muito valiosa acerca de uma parte muito substancial do mundo com importância para os decisores políticos dos EUA”, sublinha o ex-responsável da espionagem norte-americana.

Termos relacionados Internacional
(...)