Entre esconderijos e zonas libertadas

22 de maio 2020 - 14:35

No pátio do Liceu Gil Vicente conseguíamos combinar reuniões clandestinas que iríamos ter com malta de outras escolas secundárias. Ou trocar informações urgentes sobre a vertigem do tempo que queríamos também acelerar. Por Jaime Pinho.

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Instituto Superior Técnico. Fonte: Ephemera - biblioteca e Arquivo de José Pacheco Pereira.

O esquerda.net tem publicado um testemunho por dia de resistentes antifascistas sobre o seu quotidiano na prisão e/ou na clandestinidade e as estratégias que encontraram para combater o isolamento.

Todos os testemunhos publicados até ao momento estão reunidos aqui:

Confinamento(s) em tempo de ditadura

Projeto organizado por Mariana Carneiro.


Entre esconderijos e zonas libertadas

No outono de 1972 migrei da Beira Alta para Lisboa para prosseguir a escolaridade que no meu concelho não existia. Durante uns meses vivi em casa de uns tios salazaristas. Fui estudar, no então 6º ano (atual 10º), para o Liceu Gil Vicente, à Graça. Nas deslocações a pé, vindo do Alto de S. João, atravessava um bairro de barracas, o que não era surpresa. Muitas pessoas da aldeia, até antigos colegas da escola primária, tinham vindo morar em bairros de lata de Lisboa, situados sobretudo à beira dos últimos apeadeiros da linha do comboio do norte antes de chegar a Santa Apolónia.

O Gil Vicente era exclusivamente de rapazes, como acontecia em Lisboa: escolas para rapazes e escolas para raparigas.

Quando as aulas começaram, em outubro, com 16 anos de idade, dei por mim numa turma que tinha um pequeno grupo de alunos, não mais que meia dúzia, com que instintivamente me identifiquei. Visto à distância de quase 50 anos, conjugava duas características aparentemente contraditórias: eram os mais corajosos e críticos da turma e simultaneamente os mais cuidadosos e precavidos. Rapidamente comecei a partilhar a camaradagem das conversas privadas no pátio da escola nos intervalos das aulas, em que conseguíamos combinar reuniões clandestinas que iríamos ter com malta de outras escolas secundárias. Ou trocar informações urgentes sobre a vertigem do tempo que queríamos também acelerar. Íamos para casa de um ou outro elemento do grupo, onde contávamos com a solidariedade discreta do seu pai ou da mãe e então, sem qualquer constrangimento, discutíamos o fascismo que estávamos também a minar, o colonialismo e outras formas de opressão. Nessas reuniões podíamos ouvir música dos Pink Floyd, da Janis Joplin, do Zeca Afonso, do Paco Ibañez. Por vezes contávamos com o reforço de uma camarada de outra escola, da nossa idade, que nos ajudava a rasgar horizontes.

Passados poucos dias um dos nossos, do nosso grupo, não apareceu nas aulas. Nessa altura não havia telemóveis. Quase imediatamente percebemos: tinha sido preso e levado para Caxias. Era o António Franco. Logo soubemos através das nossas redes clandestinas que não fora o único, que tudo tinha acontecido no contexto das revoltas estudantis contra o assassinato do estudante Ribeiro dos Santos. Perante a gravidade desta prisão, nós, os restantes elementos do nosso grupo, tivemos a intuição de que deveríamos reforçar os cuidados e segurança contra a PIDE e os bufos, que sabíamos existirem também na nossa escola, ainda que só tivéssemos a forte suspeita de um funcionário que parecia querer controlar as nossas conversas e as nossas pastas. Rapidamente retomámos o ritmo das nossas atividades de luta contra a ditadura, e intensificámo-las. Ainda hoje me pergunto por que não tínhamos medo! Passados uns dias, o nosso companheiro regressou à escola, cabeça rapada pelos fascistas policiais. Nada abalou a nossa ligação, a nossa luta comum imparável. Antes pelo contrário.

As sirenes da polícia já se ouviam, os transeuntes tentavam resguardar-se e nós debandávamos um para cada lado. Ao outro dia sabíamos que alguém ou um grupo tinha caído nas garras da polícia.

Volta e meia chegava-nos a informação de que no dia a seguir se ia fazer uma manifestação na Baixa da cidade. Passávamos a palavra clandestinamente pelos nossos contactos, sempre boca a boca, apenas o essencial: dia, hora, local exato. Lá chegados, por exemplo à Praça da Figueira, cruzávamo-nos nos passeios fazendo de conta que nos não conhecíamos, alunos e alunas de várias escola e faculdades que íamos conhecendo, alguns jovens empregados, que tinham igualmente as suas redes de contactos. Com uma palavra ou duas, sempre em andamento e sem nunca parar, passávamos a palavra: “As carrinhas da polícia de choque estão em tal sítio à nossa espera!” Com grande eficácia e rapidez comunicávamo-nos um sítio alternativo. Subitamente já estávamos noutra praça, noutra esquina e, de repente, ocupávamos a rua, desfraldávamos uma faixa secretamente transportada até ali: “Abaixo a guerra colonial!” Apedrejávamos as montras de bancos, símbolos do regime, enquanto gritávamos palavras de ordem. Eram manifestações-relâmpago que podiam durar menos de 5 minutos. As sirenes da polícia já se ouviam, os transeuntes tentavam resguardar-se e nós debandávamos um para cada lado. Ao outro dia sabíamos que alguém ou um grupo tinha caído nas garras da polícia. Por isso não podíamos parar. Nunca!

Outra vez, dirigíamo-nos para uma reunião do MAEESL (Movimento Associativo dos Estudantes do Ensino Secundário de Lisboa) que decorria nas instalações da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina, no edifício do Hospital de Santa Maria. Quando nos aproximávamos da Cidade Universitária, percebemos que a polícia tinha montado um cerco. Regressados a casa, procurávamos em ondas curtas as emissoras que nos poderiam informar a partir do estrangeiro em língua portuguesa: uma grande quantidade de colegas do secundário tinha sido cercada no hospital de Santa Maria. Os estudantes tinham sido levados para interrogatórios e para a prisão de Caxias.

A colaboração e apoio das associações de estudantes de várias faculdades aos estudantes do secundário era fundamental: na cedência clandestina de espaços para reunirmos, na tiragem de comunicados.

A cantina do Instituto Superior Técnico, na Alameda, gerida pela Associação de Estudantes antifascista, era uma das “zonas libertadas” que frequentávamos. Havia outras: Económicas, Ciências, Medicina. Companheiros do Superior arranjavam-nos uns cartões de estudantes universitários, que nos permitiam lá ir comer.

Descer aquelas escadas no interior daquela cantina num edifício próprio logo à entrada do Técnico, era brutal! Cartazes em papel de cenário pendentes na escadaria a letras garrafais informavam de tudo o que precisávamos saber: os nomes dos estudantes recentemente presos, as torturas que sofriam, as formas de resistência que adotavam, as ações de solidariedade a desenvolver. Notícias sobre a evolução da guerra colonial, os sucessos dos movimentos de libertação, as zonas libertadas sobretudo na Guiné, o rosto do Amílcar Cabral: o internacionalismo ao rubro. Concertos relâmpago de cantautores com a sua guitarra, música de resistência gravada, pequenas intervenções de informação e propaganda. Às vezes chegávamos lá e só então ficávamos a saber: o Instituto havia sido encerrado pela polícia e pela PIDE por tempo indeterminado, as prisões tinham sido inúmeras.

Um dia um outro companheiro nosso, empregado no Instituto Nacional de Estatística, decidiu encetar a fuga para França. Recusava participar na guerra colonial. Seguiu os trilhos dos emigrantes económicos e foi a salto. São e salvo em França dispunha de um passaporte, apesar de o não ter podido obter em Portugal: era o de um dos nossos, que lhe tinha oferecido no momento em que comunicou a sua decisão.

Um dia íamos para a escola, para o Gil Vicente: era primavera e quase de certeza as andorinhas já haviam chegado. Saímos do comboio na estação do Rossio. Iríamos encetar a subida das escadinhas que partem do Martim Moniz até à Graça. Tanques militares ocupavam o centro da cidade. Deixámo-nos ir no turbilhão. No Largo do Carmo vimos o Marcelo Caetano ser levado preso. Era o dia 25 de abril de 1974.

NOTA: Estes fragmentos de memórias trouxeram-me de volta as cumplicidades de: Ana Teresa, António, Felicidade, Fernando, Franco, Jorge, José, Rui.

Jaime Pinho
20 de maio de 2020