A enorme dimensão da crise económica argentina é óbvia e não é uma consequência da quarentena. É um efeito da pandemia que desencadeou uma chocante crise capitalista em todo o mundo. O vírus propagou-se dramaticamente sob um sistema social governado pela desigualdade, miséria e exploração.
Este diagnóstico contrasta com a apresentação da direita da crise como uma desgraça argentina, causada pelo "populismo" e pela "ditadura dos sanitaristas". Os porta-vozes anti-quarentena escondem o facto da economia estar a entrar em colapso em todo o planeta ao mesmo tempo que se regista um número dramático de mortes. As políticas negacionistas amplificam estas mortes e as estratégias de proteção contêm a tragédia.
Os direitistas não conseguem dar um único exemplo da sua solução mágica de menos vítimas e de uma economia em pleno funcionamento. Omitem que os seus modelos no Brasil, Chile ou Peru levaram a catástrofes sanitárias e a colapsos de produção.
Mas também é evidente que a prioridade aos cuidados de saúde na Argentina coexiste com uma terrível depressão económica. Já impera uma dramática rampa descendente nos níveis de atividade.
Após dois anos de recessão aguda, espera-se uma nova contração de 9,9% na produção e o perigo de encerramento maciço de empresas, com a consequente explosão do desemprego, está a crescer. A pobreza poderia atingir 50%, recriando um cenário muito semelhante ao de 2001. Os últimos números de Abril indicam uma queda de 26,4% do PIB, que é superior ao mínimo histórico de Março de 2002 (16,7%).
O primeiro quartel do ano acumula um declínio produtivo de 11% que coroa 30 meses consecutivos de retração. A taxa de crescimento necessária para compensar este colapso deveria exceder em muito as previsões de muitos analistas (3,9%-4,3% até 2021). O registo da gravidade deste contexto é o ponto de partida para a elaboração de um plano económico urgente. O pior ainda não passou e "o último esforço" da quarentena para conter as infeções será a estreia dos problemas muito graves que uma economia demolida enfrentará.
A reconstrução pode passar por dois modelos opostos. Um caminho é marcado pela desigualdade, num quadro de precarização do trabalho, primarização e atividades extrativas. O esquema alternativo implica a revitalização dos rendimentos populares, a recuperação do emprego e a reindustrialização. Esta conhecida disjunção entre ajustamento e redistribuição atravessa vários níveis.
Políticas económicas contrapostas
Há vários meses que a economia sobrevive da ajuda estatal. Este protagonismo da intervenção pública – que repete o que aconteceu em todas as crises anteriores – está a ser silenciado pelos neoliberais. Dissimulam a total inviabilidade das doutrinas de predomínio do mercado em situações de emergência.
A ação do Estado nacional assemelha-se às iniciativas que prevalecem em todo o mundo, mas com subsídios muito mais baixos do que as economias centrais. A continuidade do apoio estatal após a pandemia está fora de questão, mas a quantidade e distribuição de recursos públicos tem gerado grandes controvérsias.
A ala direita exige que sejam privilegiados os subsídios aos grupos no poder, a fim de induzir uma retoma com uma elevada concentração de capital. Patrocina a falência de empresas insolventes para facilitar a sua captura por grandes conglomerados. Favorece uma nova versão da "doutrina do choque" que é utilizada pelos setores dominantes na crise para impor abusos neoliberais.
Este modelo foi tornado explícito pela companhia aérea LATAM, que condicionou a sua permanência no país à diminuição dos salários e à destruição das normas laborais. O mesmo esquema está a ser promovido por empresas de serviços (Globo, Rappi) que reduziram os salários e por empresas que estão a espremer os empregados através do teletrabalho.
Para impor o seu ajustamento recessivo, os direitistas exigem um corte nas emissões monetárias, trazendo de novo à baila os receios inflacionistas suscitados pela expansão da oferta monetária. Mas não têm em conta o efeito inverso que gera a depressão no consumo e omitem a necessidade inevitável de liquidez para qualquer retoma.
Um controlo eficaz dos preços – em mercados de mercadorias altamente concentrados – permitiria contrariar o perigo de um recrudescimento da inflação. Com a lei de abastecimento e certas medidas de controlo de proximidade, seria possível contrariar o aumento da carestia de vida, que não é uma infelicidade inexorável para a Argentina.
As maiorias populares necessitam de uma reativação sólida do mercado interno com base na restauração do poder de compra. Este é o caminho oposto ao ajustamento desejado pelos neoliberais. A unificação dos planos de assistência em torno de um rendimento universal significativo e a recomposição do salário seriam dois pilares dessa recuperação.
É vital aumentar os salários no setor formal para travar a atual dinâmica perversa de redistribuição da pobreza. O ajuste dos assalariados do setor formal para suster a fraca assistência dos precários é uma tendência terrível.
Reforça a nivelação por baixo e o financiamento da sobrevivência dos mais necessitados com os recursos de outros trabalhadores. Esta regressão verifica-se no domínio das pensões e deve ser invertida imediatamente.
O relançamento das obras públicas com gestão significativa a partir de baixo é o segundo eixo de um plano económico progressista. Há muitas propostas de organizações sociais para gerar quatro milhões de empregos por ano, através de programas geridos de forma coordenada por movimentos, sindicatos e municípios.
O terceiro fundamento de um projeto redistributivo é a reconstrução da indústria nacional. A pandemia mostrou que é viável converter muitas atividades para as necessidades prioritárias do país. O exemplo do fabrico de ventiladores poderia ser alargado a outros produtos e ramos da indústria.
Estas iniciativas requerem um financiamento extensivo com taxas de juro baixas, o que pressupõe uma mudança radical no sistema financeiro. A abordagem progressista deve ser colocada nos antípodas do ajustamento e exige uma maior despesa pública com mais recursos.
Confrontado com estas duas grandes opções, o governo está a tomar o caminho do meio que inaugurou antes da pandemia, oscilando entre as melhorias e o torniquete. Atribuiu auxílio social (aumentos de subsídios universais e pensões mínimas, congelamento de tarifas, cartões de alimentação) mas também atropelou direitos tais como a suspensão da atualização das pensões.
Na emergência atual, persistiu na sua política de se dar bem com todos. Por um lado, tomou medidas para apoiar os mais desamparados, garantindo uma grande parte dos salários que ficaram bloqueados pela paralisia da produção. Estabeleceu uma terceira fase da Assistência ao Trabalho e Produção, que envolve enormes quantidades de dinheiro, e deu ajuda a quase nove milhões de pessoas através do Rendimento Familiar de Emergência. Também congelou rendas, hipotecas e execuções por falta de pagamento e anunciou créditos de taxa zero para consumo por trabalhadores autónomos.
Mas o governo também ajuda os poderosos e facilita os subsídios aos CEOs das grandes empresas. Este absurdo auxílio estatal aos executivos foi parcialmente corrigido quando se descobriu que era utilizado para comprar dólares. Os beneficiários do subsídio já não podem adquirir moeda estrangeira, distribuir lucros ou fazer despesas com outras empresas relacionadas.
O governo comprometeu-se formalmente a proibir os despedimentos, mas na realidade não impede a sua expansão. O Ministério do Trabalho evita a informação diária fornecida pelo seu congénere da saúde. Não esclarece qual é o verdadeiro mapa de despedimentos e lay-off. O caso que melhor revela isto foi o Techint. Depois de ter afirmado que não aceitaria os despedimentos, apoiou a sua realização.
Além disso, os cortes salariais tendem a ser generalizados com o apoio passivo das autoridades e os reformados sofreram outro ajustamento da atualização das pensões inferior ao que teria correspondido à inflação. O pagamento dos subsídios de férias e Natal em prestações já é um facto e estende-se a muitos setores. Em resumo: a política económica é a primeira área de disputa entre ajustamento e redistribuição, em oposição a um governo que escapa às definições.
O teste Vicentin
O contraste entre modelos pode ser verificado na intervenção do Estado face a grandes falências. É por isso que o incumprimento de pagamento salarial na Vincentin se tornou um caso exemplar para a política oficial.
A ala direita dá força a uma ação imprudente de apoio à firma que encabeçou o financiamento da campanha eleitoral de Macri. Desfralda bandeiras e mobiliza-se para reverter a decisão oficial de expropriação da empresa, com argumentos que parecem ter saído de um mundo de pernas para o ar. Apresentam a Vicentin como uma empresa que desenvolvia normalmente as suas atividades, até que um Estado obcecado em tomar conta da empresa chegou. Só se esquecem que a empresa faliu e deixou um rasto de contas por pagar. Os cúmplices dessa fraude apelam à "proteção da propriedade privada", omitindo que a empresa viola esse princípio ao ignorar os contratos com os seus fornecedores. Também não explicam o incumprimento de uma holding que exportou mais de metade da sua produção num ano com uma boa colheita, aproveitando a mega-avaliação e o financiamento estatal.
Os administradores procuram obter impunidade escondendo as provas do seu desfalque. O "stress financeiro" que referem não tem credibilidade e as justificações centradas na "má gestão" ou "alavancagem de operações comerciais" são inconsistentes. As provas para o esquema são esmagadoras.
Já há um julgamento em Nova Iorque para localizar os bens escondidos em paraísos fiscais e o dinheiro obtido com a venda surpresa da empresa principal do grupo (Renova) à Glencore está a ser investigado. Esta multinacional gere uma intrincada rede offshore que teria facilitado a expatriação do dinheiro negado aos credores. Existem sérias suspeitas de um esgotamento consumado de recursos através de transferências para as filiais de Vicentin no Paraguai e no Uruguai.
A fraude está também a ser coberta pelo sistema de justiça criminal, que está a elaborar um caso para proteger o antigo presidente do Banco Nación. González Fraga autorizou um empréstimo à empresa para montantes que excedem as normas da entidade, sem exigir garantias e forjando a notação de crédito.
O governo reagiu rapidamente ao risco de desmantelamento ou de estrangeirização da empresa. Percebeu que os grandes atores estrangeiros no negócio alimentar (Dreyfuss, Glencore, Cargill) estavam ansiosos por tomar conta da empresa. Foi por isso que inicialmente promoveu uma expropriação, procurando favorecer a criação de uma empresa de referência para o comércio externo. Como a Vicentin tem as suas próprias instalações de armazenamento e portos, a sua pertença ao setor público permitir-lhe-ia neutralizar as conhecidas manobras de evasão fiscal (retenção de moeda estrangeira e sub-faturação das exportações). Esta solução facilitaria também negociações diretas entre Estados com o parceiro estratégico chinês.
A fraude na Vincentin está a ser investigada por muitos organismos. Há uma comissão de investigação bicameral no Congresso e outra na província de Santa Fé, que estudam o grotesco esvaziamento de património, através de doações e de colocação de familiares na lista de credores. O que aconteceu noutra área da justiça penal – o desmantelamento da rede de espionagem ilegal criada pela Macri – ilustra como é possível agir de forma rápida e decisiva. O esclarecimento do que aconteceu na Vicentin deve seguir esse precedente.
É vital recuperar o dinheiro do esquema, incorporando todos os bens ocultos da empresa na gestão da falência. Existe um perigo sério de se repetir o que aconteceu com numerosas "argentinizações" que esvaziaram o erário público (Correo, Águas, Marsans-Aerolíneas, Repsol). As indemnizações e os processos judiciais por estas nacionalizações aumentaram a fortuna de muitos capitalistas. A Vicentin não deve acabar por se tornar outra socialização das perdas resolvida pelo povo argentino.
É possível vencer a direita e forjar uma empresa pública sob controlo social através da mobilização popular. Há grandes diferenças com o cenário da 125. Já não existe um bloco agrário homogéneo comandado pela Mesa de Enlace. Pelo contrário, há ramos do Sociedade Rural Argentina (Córdova) e um grande setor da Federação Agrária (Buzzi) que denunciam o desvio na Vicentin.
Mas o grande problema é a hesitação do governo. A iniciativa de expropriação foi substituída por uma intervenção que proporcionou um período de tempo alargado para encobrir o esquema e negociar a venda da empresa a credores estrangeiros. Uma vez que o juiz que simpatiza com a empresa interrompeu esta intervenção, os mesmos administradores continuam a ser responsáveis por uma empresa que não está a comprar grãos e a agravar a sua falência,
Não se sabe se o governo irá insistir no projeto de expropriação. A ala direita está a mostrar força perante a inação de um governo que aceitou o desafio do juiz da falência face à autoridade presidencial. Há muitas formas de vencer, mas a tibieza leva ao resultado oposto.
Outro sistema financeiro
A crise atual confirmou o obstáculo que a estrutura bancária representa para um relançamento da produção. A queixa das pequenas e médias empresas ilustra como as instituições obstruem a concessão de crédito: não cobrem os cheques rejeitados, validam a quebra na cadeia de pagamentos, negam empréstimos para pagar salários e mantêm taxas de juro elevadas.
Os bancos também não permitem operações a descoberto e recorrem a manobras intermináveis para evitar o refinanciamento de cartões de crédito. Utilizam o pretexto das classificações baixas das PMEs para impedir a redistribuição dos empréstimos estatais aos seus clientes. Vivem num mundo à parte, ignorando o tremendo cenário criado pela demolição do consumo.
Perante empresas em colapso e entidades que estão a atrasar o financiamento, o Banco Central responde tarde, mal e sem qualquer condenação. Apenas exorta os financiadores a modificar o seu comportamento e, quando muito, emite sugestões para um maior controlo que também não implementa. Esta reação oficial apenas aprofunda o cenário dramático de uma economia sem financiamento.
Os monumentais pacotes de ajuda estatal são canalizados através dos bancos que continuam a definir para quem vai o dinheiro. Uma vez que os financiadores não querem riscos, ou efeitos nos seus lucros, atrasam a implementação da ajuda. Mantêm o privilégio invulgar de não perder um cêntimo no meio do colapso generalizado do mercado doméstico.
Os bancos habituaram-se ao negócio parasitário de conceder empréstimos ao Estado. É por isso que eles oferecem tão pouco crédito ao setor produtivo. Sob o macrismo, aperfeiçoaram a prática de utilizar a maior parte dos depósitos na intermediação com as Letras de Liquidez. Fizeram fortunas sem qualquer expansão genuína do crédito e no ano passado duplicaram os seus lucros com a grande bicicleta dos títulos públicos.
O governo está a validar esta dinâmica perversa que está a acentuar o colapso da economia. No máximo, impediu a distribuição de lucros entre os banqueiros. Evita a imposição de créditos de taxa zero para as PMEs à beira do abismo, com mecanismos para financiar eventuais perdas com os lucros acumulados pelas entidades.
Existem muitos instrumentos para os bancos colaborarem com os seus próprios ativos na emergência atual. Mas seria necessário declarar a utilidade pública do sistema financeiro e restabelecer a regulamentação estatal da gestão dos depósitos que vigorou até aos anos 70. Um status quo de bancos públicos sobrecarregados e de entidades privadas fluorescentes é insustentável.
Temos de agir antes da direita desencadear a sua previsível campanha de terror sobre os pequenos aforradores. São especialistas em semear o pânico com presságios de saídas de depósitos, um aumento do fosso relativamente ao dólar paralelo e uma queda da bolsa de valores. Esse medo é uma possibilidade sempre presente no cenário económico dramático que se aproxima. Se o sistema financeiro continuar a funcionar sem qualquer controlo efetivo do Estado, as grandes convulsões no circuito bancário voltarão a rebentar.
Um imposto decisivo
Qualquer modelo económico enfrenta o cenário duro de cofres públicos esgotados. As receitas entraram em colapso e o défice orçamental primário é, em média, de cinco pontos do PIB. A cobertura com a emissão de um tal buraco fiscal é claramente limitada. É por isso que o imposto sobre grandes fortunas, que tem sido um imposto muito comum em situações de emergência, está a ser debatido.
A direita opõe-se, argumentando que "a carga fiscal é muito elevada". Mas os dados do Banco Mundial colocam a Argentina numa posição internacional intermédia, próxima dos Estados Unidos e muito abaixo da média europeia. A imagem de um país sobrecarregado por impostos é outro mito do neoliberalismo. Até o presidente da Alemanha recordou recentemente que os ricos da Argentina pagam muito pouco em impostos em comparação com os seus pares alemães.
Para bloquear o imposto sobre a riqueza, os poderosos estão a empreender uma campanha de desinformação. Alegam que o imposto será inconstitucional apesar da sua aprovação pelo Congresso e estão a preparar uma impugnação judicial para defender os seus privilégios com a cumplicidade dos seus parceiros nos tribunais.
Os direitistas também argumentam que o imposto "não se aplica em qualquer parte do mundo", ignorando as inúmeras formas internacionais de tributação da riqueza. Alegam que "as empresas não poderão efetuar tal pagamento na crise atual", omitindo que a riqueza será tributada e não os lucros atuais das empresas. Dizem que atingirá duramente a classe média, quando afeta apenas um punhado da população. Nenhum dos 15.000 bilionários atingidos pelo imposto integra os setores médios do país.
Os neoliberais exigem frequentemente a "redução dos salários dos políticos" para evitar o novo imposto. Mas salta a vista a desconexão entre as duas propostas. Com a redução destes salários, apenas uma porção insignificante daquele imposto seria cobrada. Espalharam esta ideia disparatada, porque na sua imaginação a administração pública deveria ser gerida por milionários que não precisariam de ser pagos. Com esta mesma conceção elitista, proclamam a substituição dos impostos sobre o património por doações voluntárias dos ricos.
A aplicação do imposto não tem grandes segredos. Há meses que vários projetos têm vindo a circular para tributar 1,5% das grandes fortunas pessoais, afetando o grupo central de milionários que são tributados nos escalões mais altos do imposto sobre bens pessoais.
Outras iniciativas propõem-se tomar como referência uma taxa de 2% para os montantes declarados no último branqueamento fiscal de 2017. Alguns municípios, tais como Castelli, já estabeleceram uma contribuição obrigatória para os residentes com património elevado. As receitas são utilizadas para reforçar as infraestruturas de saúde locais.
A aplicação imediata do imposto sobre as fortunas seria o primeiro grande aviso aos evasores fiscais. Não só os grandes capitalistas gozam de total impunidade por fugirem às suas obrigações. Exigem alívio na crise, esquecendo a sua prática habitual de evasão em alturas de prosperidade.
A nova gestão da Administração Federal de Receita Pública descobriu uma grande rede de cumplicidades que operava durante o governo macrista para encobrir por somas astronómicas contas ocultas ao fisco no exterior do país. Segundo esta investigação, parece que no último processo de branqueamento, apenas um terço dos 400 mil milhões de dólares localizados fora do país foi tornado transparente.
A auditoria desta evasão tornou-se mais fácil desde os acordos fiscais assinados com vários organismos (como a OCDE) e é possível começar a seguir os montantes depositados em paraísos fiscais. Não existem obstáculos técnicos ou legais intransponíveis, se houver vontade política para pôr fim à evasão fiscal dos capitalistas.
O principal indício desta decisão seria a sanção do imposto sobre as fortunas que se arrasta com um atraso inaceitável. Ninguém no governo explica porque é que esta iniciativa está a ser adiada. Provavelmente, a pressão de grandes lóbis como a União Industrial Argentina, que já se pronunciou contra o imposto, está a desempenhar um papel. Esta atitude confirma que o drama da pandemia não comove os poderosos.
O imposto não é apenas inevitável para lidar com a emergência atual. Permitiria começar a proporcionar rendimentos genuínos para um modelo de retoma baseado na redistribuição de rendimentos. Além disso, com este imposto, a Argentina poderia liderar uma reviravolta internacional em matéria fiscal. Diferentes projetos de "Covid rates" estão atualmente a ser avaliados em Espanha. Rússia, Itália, Suíça e Inglaterra, Alemanha, Brasil, Equador, Chile, Bolívia e Peru.
A taxa ajudaria a encorajar projetos de reforma fiscal internacional que são promovidos para introduzir impostos progressivos sobre serviços digitais e lucros empresariais elevados. Esta iniciativa procura eliminar os paraísos fiscais que absorvem os recursos que faltam para as despesas sociais dos Estados. Na aprovação do imposto sobre a riqueza, disputa-se quem irá ganhar o primeiro jogo na batalha entre modelos económicos neoliberais e progressistas.
Dívida no caminho errado
O financiamento da retoma depende também das despesas do sector público e da consequente gestão da dívida. Sabe-se que Macri deixou para trás uma responsabilidade impagável que precipitou o incumprimento. Esta dívida gigantesca condiciona toda a evolução da economia.
Inicialmente, o governo propôs uma troca drástica para adiar quaisquer pagamentos por três anos. Promoveu um desconto de 65% e uma redução nas taxas de juro para 2,3%. Calculou que a dívida externa privada de 66,238 mil milhões de dólares seria reduzida em 41,6 mil milhões de dólares e observou que esta redução estava de acordo com o preço de mercado das obrigações argentinas (30-35% do seu valor original). Sublinhou que a oferta era semelhante à solução enfrentada por Kirchner em 2005 para resolver o incumprimento herdado de 2001 e anunciou que se tratava da única proposta sustentável.
A direita fez imediatamente uma grande pressão para modificar a oferta, em estreita harmonia com os credores. Agiu como porta-voz dos fundos de investimento, que diferem substancialmente dos credores tradicionais argentinos. Fidelity, BlackRock ou Ashmore gerem grandes carteiras de investimento divorciadas dos regulamentos atuais do sistema bancário. Eles não gerem depósitos ou empréstimos. Apenas especulam com inúmeros títulos de países ou empresas e, por conseguinte, negociam de forma mais brutal do que os seus antecessores.
Rapidamente formaram vários comités com lobistas para exigir novas propostas de "boa fé" com "ofertas amigáveis". Os seus clones repetem repetidamente que a rejeição de tal submissão conduzirá ao precipício. Eles levantam o espectro do incumprimento, afirmando que "ninguém empresta dinheiro ao país após a pandemia. Mas omitem que estes empréstimos já hoje são negados. Macri deixou o país fora do mercado de crédito e a continuação do incumprimento reforça essa restrição.
Os próprios direitistas reconhecem que a persistência do incumprimento não tem grandes implicações a curto prazo. Além disso, não se sabe se o mecanismo de empréstimo externo será reaberto após uma troca. Também não são relevantes os processos judiciais estrangeiros que poderiam ser interpostos pelos credores para apreender bens do Estado. O montante desses bens é muito baixo em comparação com os pagamentos exigidos.
O baixo impacto financeiro do incumprimento estende-se à esfera comercial. É muito difícil para a China deixar de comprar soja ou carne devido ao incumprimento ou para o Brasil restringir a importação dos componentes necessários para a sua produção automóvel.
Em períodos mais longos, é impossível fazer previsões sérias. É evidente que a Argentina não será o único país com um problema de pagamento na atual crise tremenda.
Há uma necessidade urgente de utilizar todos os recursos disponíveis para a recuperação interna e nem um único dólar deve ser desviado dessa prioridade.
Alguns neoliberais afirmam que o incumprimento irá recriar os julgamentos com os fundos dos abutres que sob o macrismo forçaram ao desembolso de 15 mil milhões de dólares. Mas eles não explicam porque razão se deveria repetir esta delapidação. A direita está a avançar com as ameaças retóricas e com periódicas corridas ao câmbio.
Nestas manobras, os intermediários de câmbio participam intensamente e têm pressa em cobrar as suas comissões. Uma abordagem genuinamente progressista está no extremo oposto do espectro e envolve a suspensão imediata dos pagamentos dos juros. Os credores não podem ser dispensados dos esforços solicitados a toda a população durante a pandemia.
No cenário económico dramático que se aproxima, o incumprimento não é o fim do mundo e é preferível a um mau negócio. A direita é perita em campanhas de medo mas a experiência mostra como são terríveis as consequências de aceitar as suas exigências.
Antes da implementação de qualquer pagamento, a auditoria da dívida teria de ser concluída a fim de discriminar as despesas. Não é um simples desconhecimento da dívida que está em causa, mas a clarificação da sua legitimidade, distinguindo as componentes válidas e fraudulentas das responsabilidades.
Essa investigação foi parcialmente empreendida pelo Banco Central, que num relatório recente confirmou o que já era conhecido: toda a dívida legada pelo Macrismo esconde uma fuga monumental de capitais. Em quatro anos, esta saída envolveu 86,2 mil milhões de dólares, ou seja, a maior parte do passivo. O relatório não dá os nomes das pessoas envolvidas nesta operação mas aponta para uma concentração muito elevada de empresas e indivíduos. Qualquer troca de dívida sem o conhecimento desta auditoria iria validar a fraude. Irá transferir para toda a sociedade uma obrigação contraída por um punhado de milionários que fugiu com esse capital.
Nesta área crucial da dívida, o governo já flexibilizou a sua posição inicial e aceitou as exigências dos credores. Liquidou especialmente o aspeto mais interessante da primeira oferta que foi a suspensão de todos os pagamentos durante três anos. Esse período foi reduzido a dois e existem versões de pagamentos escalonados a partir de 2021. A respiração inadiável necessária à economia para iniciar um processo de retoma seria seriamente ameaçada por uma tal decisão.
Com a redução do calendário inicial de desembolsos, o atual fluxo de pagamentos será mantido. No auge da pandemia, foram feitos dois grandes desembolsos pouco conhecidos (250 milhões para os obrigacionistas privados e 320 milhões para o FMI). Bastava calcular quantos ventiladores e hospitais esse dinheiro pagaria para confirmar a sua total inadmissibilidade.
A mesma atitude de concessões oficiais estende-se à eliminação da dívida, que ficaria longe dos 65% inicialmente anunciados. Se for acordado um valor atual das obrigações de 50-55%, o valor final da oferta será ainda mais "generoso" do que o patrocinado pelo FMI. A redução efetiva do passivo seria também inferior à obtida na reestruturação de 2005.
Os termos contratuais de outro possível incumprimento estão também a ser negociados com os credores. A baixa confiança na viabilidade do acordo reflete-se nesta avaliação de uma nova paragem nos pagamentos. Todos aceitam a lei de Nova Iorque (que invariavelmente funciona contra o país) e tramitam o tipo de litígio (cláusulas de ação coletiva) que se aplicaria a uma troca resultante do fracasso da versão atual.
Mas a questão mais grave é o vínculo ao FMI que concordaria com um reescalonamento das suas cobranças para assegurar o seu estatuto de credor privilegiado e isento de quaisquer deduções. Esse compromisso para com o Fundo é um nó à volta do pescoço, mais perigoso do que as reivindicações do sector privado. As condições impostas pelo Fundo para forçar o cumprimento dos seus requisitos são bem conhecidas.
Esse organismo não se tornou benevolente. Tal como fez durante a crise de 2008, escondeu as suas intenções no meio do vendaval. Pressionou os fundos de investimento a aceitarem a troca e a limparem o terreno para a sua recolha de 45 mil milhões de dólares que nunca entraram efetivamente no país.
O fardo futuro das auditorias regulares do FMI é ocultado através de operações de branqueamento político. A agência é agora elogiada por muitos economistas anti-liberais que esquecem como o Fundo impôs uma dívida absurda para apoiar a reeleição falhada de Macri. Ao contrário da troca de 2005, a versão atual consagra a presença permanente do FMI que em breve será brutalmente restaurada ao seu aspeto habitual.
A negociação da troca tem sido errada, inoportuna e prejudicial. Não havia necessidade de a implementar no auge da crise pandémica. No mínimo, podia ser desfeita até que a situação ficasse clara. A operação carece da sustentabilidade anunciada, uma vez que apenas elimina a situação de 20% do total da dívida. As responsabilidades pendentes com organizações internacionais e os documentos emitidos ao abrigo da legislação nacional têm ainda de ser resolvidos.
Além disso, a grande oportunidade criada pelo "Great Global Confinement" para introduzir uma mudança drástica no peso do passivo suportado pelo país está a ser desperdiçada. A apresentação oficial da Argentina como vencedor desta troca disfarça as concessões feitas durante a negociação. Com esta operação, assumem-se compromissos não cumpridos e o conhecido trauma da nossa história é reciclado.
Sob o capitalismo nem todos ganhamos
A direita está a atuar frontalmente com argumentos delirantes, criticando a "info-ditadura" face a um governo que exibe um comportamento meramente defensivo. Os discursos progressistas da área governamental têm poucas traduções práticas no plano económico. Esta postura é muito perigosa num cenário de colapso produtivo, face a um inimigo que tentará aproveitar-se do desastre social para apoiar o seu projeto reacionário.
O governo continua a diagnosticar mal a situação. Em primeiro lugar, partiu do princípio de que uma liquidação da dívida seria suficiente para reativar a economia. Agora imagina um futuro semelhante, sem registar a magnitude da crise e a consequente necessidade de medidas radicais.
É por isso que atrasa o imposto sobre a riqueza, hesita na política económica e hesita na gestão de Vincentin. Ele apenas postula que o fim do coronavírus facilitará a retoma e que a única prioridade imediata é a saúde. Enquanto a direita exibe sem vergonha o seu plano regressivo, o governo navega num mar de indefinição. É por isso que urge uma viragem no sentido da redistribuição de rendimentos, com um programa alternativo baseado em impostos para o controlo das finanças e do comércio externo por parte dos ricos e do Estado.
Esta política exige a adoção de uma atitude crítica face ao capitalismo, para enfrentar todos os fantasmas que a ala direita exibe. Temos de responder de frente, salientando que este sistema causou a atual depressão e não oferece nenhuma solução para o empobrecimento contínuo.
O governo evita essa batalha porque partilha as ilusões no desenvolvimento de um capitalismo humanizado, inclusivo e produtivo. Alberto Fernandez repete esse imaginário nas suas reuniões com os grandes negócios e ratifica com avaliações em mudança a sua fé no sistema. Por vezes crítica os "miseráveis" capitalistas que despedem no meio da pandemia (Techint) e outras vezes elogia os "homens de negócios que sofrem com o país". Ele insere nesse grupo um campeão das tropelias que defendeu o macrismo (Mindlin).
O presidente pensa que "com o capitalismo todos ganhamos" desconhecendo a impossibilidade desse resultado. O sistema atual gera exatamente o oposto: uma minoria beneficia sempre dos esforços de outros. A redistribuição dos rendimentos é o ponto de partida para a erradicação deste regime de miséria e opressão.
Claudio Katz é economista, investigador do CONICET (Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas da Argentina), professor da UBA (Universidade de Buenos Aires) e membro dos EDI (Economistas de Izquierda).
Texto publicado originalmente na página do autor. Traduzido por Raquel Azevedo para o Esquerda.net.