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Decreto autoritário de Macron é viragem na luta

No dia em que o parlamento francês vota a moção de censura a Macron, alinhamos primeiras lições e cenários imediatos para a mobilização contra a reforma da Previdência. A luta continua. A vitória é possível. Por Fred Borras.
Deputados da NUPES protestam contra a passagem da reformadas pensões sem votação no parlamento. Foto de CHRISTOPHE PETIT TESSON/EPA/Lusa.
Deputados da NUPES protestam contra a passagem da reformadas pensões sem votação no parlamento. Foto de CHRISTOPHE PETIT TESSON/EPA/Lusa.

1/ Ao usar o artigo 49.3 da Constituição Francesa, que permite ao presidente da República impor uma lei ultrapassando o parlamento e submeter-se a uma moção de censura, Macron escolheu o caminho da brutalidade. Se o fez, foi porque não estava certo de vencer pelo simples voto da lei. Este revés é produto da poderosa mobilização social em curso , sem quebras substanciais, desde há semanas. Ao recorrer ao artigo 49.3, Macron aponta "uma pistola à cabeça" dos deputados recalcitrantes da direita tradicional (“Os Republicanos”, LR) e do partido presidencial (“A República em Marcha”, LREM): se aprovarem a moção de censura ao governo, terão de enfrentar novamente o sufrágio universal, consequência da dissolução da Assembleia Nacional. Em essência, Macron diz-lhes: “se se armarem em espertos, eu dissolvo e salve-se quem puder! Ainda estarei no Eliseu mais três 3 anos”.

Os deputados da França Insubmissa (LFI) e da coligação Nova União Popular Ecologista e Social (NUPES, que inclui a LFI, o PC e o PS) tiveram razão em associar-se à moção de censura lançada pelo grupo de deputados LIOT (Liberdades, Independentes, Ultramar e Territórios). A aprovação de tal moção não é o cenário mais provável, mas não é impossível. Se for adotada, instala-se a crise política no país. Se for chumbada, a raiva e o ressentimento podem produzir desenvolvimentos imprevisíveis. Porque não haverá esquecimento, nem perdão, Macron está em xeque, falta encontrar a via para um xeque-mate.

2/ O recurso ao artigo 49.3 teve como efeito aumentar o descontentamento e a raiva, como mostram as concentrações noturnas de quinta-feira passada em todo o país. O movimento continua. Até agora, a intersindical nacional permanece unida e firme na exigência da retirada definitiva do projeto de lei. Sem isso e sem o movimento que se desenrolou, a reforma da previdência teria sido silenciosamente adotada. Ou seja, se há “jogo” no Parlamento, é graças à força do movimento, que reforça também a excelente atuação dos eleitos da LFI e da NUPES.

Pode-se censurar tal ou tal escolha de data de mobilização ou forma de mobilização; até agora, nada na atitude dos sindicatos impediu que isso fosse combinado com as grandes jornadas de greve e manifestação, processos de greves renováveis, bloqueios, ocupações. A 7 de março, a intersindical, incluindo a CFDT, apelou a "paralisar a França". Abrandou, mas não paralisou completamente. Ações para endurecer a luta (ocupações, bloqueios, greves renováveis, etc.) “existiram e existem, mas devem ser generalizadas para assegurar a retirada da lei. Seria simplista culpar as lideranças sindicais pelas dificuldades. A dificuldade em “fazer face às despesas”, aliada à dúvida de que seja possível uma vitória (o peso do passado, das derrotas acumuladas), pesaram negativamente até agora . O facto é que os próximos episódios não estão escritos e que a vitória continua a ser possível porque, paradoxalmente, o golpe de Macron pode ser lido como fraqueza e encorajamento à ação.

3/ A próxima jornada de mobilização nacional será na quinta-feira, 23 de março. Pode ser tardio, mas não devemos esperar por ele: as ações multiplicam-se durante a votação da moção de censura nesta segunda-feira e depois, em toda a França, de várias formas.

4/ A primeira fase do movimento ocorreu quase sem violência policial. Desde quinta-feira à noite, a situação mudou. Os cassetetes e o gás lacrimogéneo estão de volta sem atingir por enquanto o nível de repressão das mobilizações contra as leis laborais ou os “coletes amarelos”. O presidente da Câmara de Toulouse, por exemplo, cão de fila de Macron, aproveitou para tentar desacreditar a “extrema esquerda” (entenda-se: a esquerda), atribuindo-lhe os estragos na fachada do Capitólio. Mas é o governo que semeia a raiva e é o único responsável pelo que possa acontecer. Os líderes da França Insubmissa apelam a que a raiva seja expressa pacificamente, com calma e determinação.

4/ Para procurar a máxima eficácia contra o golpe autoritário de Macron e Borne, é preciso articular a ação na rua e no âmbito institucional. Um não se opõe ao outro. Melhor: um não funciona sem o outro. A nível institucional, haverá hoje a votação da moção de censura. É importante colocá-la sob pressão da rua. É um passo importante na luta. Se a moção de censura for aprovada, o projeto está morto e não se vê como Macron poderia fazer outra coisa senão dissolver a Assembleia Nacional. No prazo máximo de quarenta dias, realizar-se-iam novas eleições legislativas.

Se a moção de censura for rejeitada, Macron não escapará facilmente. Vários cenários são possíveis:

O Conselho Constitucional deve validar a lei e isso não está garantido. No prazo de quinze dias após a aprovação final de uma lei, o Conselho Constitucional pode ser convocado por pelo menos 60 parlamentares. A NUPES vai aproveitar essa possibilidade. Segundo Dominique Rousseau, professor de direito constitucional, há “fortes riscos de inconstitucionalidade desta lei, não tanto no mérito como na forma, porque não houve realmente um debate claro e sincero; no entanto, é uma exigência constitucional". A pressão exercida pelo Governo sobre o Parlamento, mediante o recurso aos artigos 47.1, 44.2, 44.3 e ao famoso 49.3, colocam em causa “a clareza e sinceridade do debate parlamentar”, que é uma exigência constitucional.

A Constituição também prevê a possibilidade de recurso ao Referendo de Iniciativa Partilhada (RIP), que é um projeto de lei para a organização de uma consulta popular. Na sexta-feira, os deputados da NUPES e senadores dos vários grupos de esquerda deram entrada a um pedido de RIP para que a idade legal de aposentação não possa ser aumentada para mais de 62 anos. Se este pedido for validado pelo Conselho Constitucional, a lei das pensões será suspensa e haverá nove meses para reunir o apoio de 10% dos eleitores (cerca de 4,7 milhões de pessoas). Se assim for, ou o governo devolve o processo ao Parlamento, ou o Presidente terá que aceitar o referendo.

Por último, a mobilização também pode continuar após a aprovação da lei e impor a sua retirada porque o que o Parlamento faz também pode desfazer. Foi isto que ocorreu em 2006, quando a lei precarizadora conhecida por "Contrato de Primeiro Emprego", do governo de Chirac, foi adotada e depois revogada.

5/ De qualquer forma, o macronismo saiu enfraquecido das eleições presidenciais e legislativas de 2022. Agora está poderosamente desacreditado. Ele cede. A direita clássica, a dos Republicanos, está enfraquecida e assolada por mortíferas lutas internas. O perigo é a União Nacional (RN, de extrema-direita), que não se mobiliza mas pode acabar a colher os frutos da raiva e do ressentimento. É cada vez mais imperativo criar uma alternativa credível. A NUPES continua a ser o nosso melhor trunfo. É frágil, mas por enquanto está a aguentar. Deve ser consolidado, desenvolvido em todos os lugares, tanto quanto possível, porque o seu desmembramento abriria a Le Pen. Um bloco social e político, que defende uma política de esquerda, aposentação aos 60 anos, bifurcação ecológica, tributação da riqueza, congelamento de preços, aumento de salários, direitos das mulheres e de todos os oprimidos, deve consolidar-se, expandir-se e fortalecer-se. A França Insubmissa deve ser a ponta de lança.

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