Declaração de voto apresentada pelo Bloco de Esquerda à Comissão Parlamentar de Inquérito à Tutela Política da Gestão da TAP:
O relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito à Tutela Política da Gestão da TAP (CPI TAP) é um documento frustrante para quem esperava que compilasse os factos apurados, expusesse as responsabilidades políticas verificadas e indicasse as ilegalidades identificadas. O PS, com a sua maioria absoluta à mão, impôs um relatório parcial, incompleto e partidário. O Bloco de Esquerda votou contra o relatório em nome da ética republicana de quem considera que a verdade é um pilar indispensável da democracia, doa a quem doer.
O PS impediu que a CPI TAP demonstrasse a incapacidade de João Galamba permanecer no Governo, expusesse o recurso indevido ao SIS e a sua atuação ilegal, forçasse o Sr. Primeiro-Ministro a tirar consequências políticas.
Não nos resignamos à maioria absoluta, não ficamos refém do seu rolo compressor e do seu viés partidário. A democracia exige que não se cale a verdade, foram centenas de horas de audições que não podem ser amputadas. Por isso apresentamos esta declaração de voto, compilando as ideias chave que saem da CPI TAP e fornecendo um quadro de leitura do espólio da comissão que possibilite desenvolvimentos no trabalho de entidades judiciais e a informação pública indispensável.
1. Autoritarismo
Esta é a comissão parlamentar de inquérito em que o PS revela todo o seu autoritarismo. Impôs pela maioria absoluta que uma parte das audições fossem completamente eliminadas do relatório da comissão parlamentar de inquérito. É incompreensível para quem assistiu a esta comissão de inquérito e nenhuma das explicações que dada responde à questão essencial: o PS viabilizou, o PS participou, PS animou, PS inquiriu, o PS esteve em todas as audições que agora não estão no relatório da comissão parlamentar de inquérito – Porquê? É um insulto aos trabalhos parlamentares, é um insulto ao país que assistiu aos trabalhos da CPI TAP.
A procura pela desvalorização da CPI TAP e dos seus trabalhos começou logo no início dos trabalhos da comissão. Primeiro, anunciaram que já não havia consequências políticas a retirar porque os responsáveis políticos já se teriam demitido. Depois, procuraram lançar lama sobre a comissão.
A suspeição sobre a conduta de deputados, assessores e serviços técnicos da Comissão foi levantada, por exemplo, em sessão plenária da Assembleia da República. No dia 6 de maio de 2023, o Sr. Deputado Eurico Brilhante Dias, líder parlamentar do PS, afirmou: “Aquilo que aconteceu na semana passada foi um mau serviço deste Hemiciclo à verdade que queremos apurar na CPI. Foi um mau serviço desta instituição, porque, evidentemente, o que aconteceu, volto a sublinhá-lo, foi uma fuga segmentada, fragmentada, de documentos classificados que chegaram a esta instituição.” Perante a insistência para a apresentação de provas que dessem cobertura a tal afirmação, o Sr. Deputado Eurico Brilhante Dias não as apresentou, nem à comissão, nem aos serviços parlamentares, nem à comunicação social. Pelo contrário, a investigação levada a cabo pela Sra. Deputada Alexandra Leitão, a quem o Presidente da República pediu que fiscaliza-se eventuais fugas de informação ou quebras às obrigações de sigilo, conclui que não houve quaisquer fugas de informação na Assembleia da República.
Na fase final dos trabalhos da comissão, na véspera da apresentação das propostas de alteração ao relatório preliminar, foi um membro do Governo que avançou com críticas abjetas aos trabalhos da comissão. O propósito era, claramente, desviar a atenção do essencial e, mais uma vez, procurar descredibilizar a CPI TAP para limitar as consequências políticas no Governo e no PS.
2. Promiscuidade
Foram vários os episódios em que se apurou a fragilidade das fronteiras entre o Governo, o PS e o Estado. O Ministério das Infraestruturas, nas diversas tutelas, demonstrou ter responsáveis com muita dificuldade em separar estas águas e a assumir condutas democraticamente questionáveis.
O ex-Secretário de Estado Hugo Santos sentiu-se confortável para pressionar a CEO da TAP para mudar um voo do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Para agradar ao P. R. a quem não queria causar dissabores que o pudessem voltar contra o Governo, achou-se no direito de falar diretamente com a TAP para mudar voos. A mudança acabou por não ocorrer, mas a tentativa mostra bem como os interesses partidários se sobrepuseram ao interesse público.
O mesmo governante assumiu ter estado presente na reunião que a administração da TAP convocou para responder a um pedido do Ministério sobre a polémica e ilegal indemnização paga a Alexandra Reis. Pediu esclarecimentos e foi ajudar na resposta, teatralizando a governação e condicionando a resposta da empresa tutelada.
Já o Ministro das Infraestruturas João Galamba achou por bem promover uma reunião entre o Grupo Parlamentar do PS e a CEO da TAP na véspera de uma audição parlamentar para fiscalizar a ação do Governo e da administração da empresa. Foi no dia 17 de janeiro de 2023 que se realizou uma reunião entre a CEO da TAP, membros do gabinete do Sr. Ministro das Infraestruturas e deputados do Grupo Parlamentar do Partido Socialista. Na nota de agenda, a reunião foi identificada com o título “Reunião preparatória com o GPPS sobre a audição à Sr.ª PCE da TAP”. Quando questionada sobre quem marcou a reunião, Christine Ourmières-Widener referiu: “se bem me lembro, foi uma recomendação, uma recomendação do Ministro das Infraestruturas”.
Em conferência de imprensa pública, realizada no dia 29 de abril de 2023, o Ministro das Infraestruturas, João Galamba, referiu ter dito à CEO a 16 de janeiro: “Disse-lhe então que tinha um pedido do GP do PS para uma reunião preparatória, que me tinha chegado julgo que no dia 13, três dias antes de 16, e disse-lhe que não faz sentido eu ir porque não sou eu que vou falar mas a senhora”.
A reunião realizou-se tendo contado, do lado do Grupo Parlamentar do Partido Socialista, pelo menos com a participação do deputado Carlos Pereira. O mesmo deputado integrou posteriormente a inquirição à CEO da TAP, Christine Ourmières-Widener, durante o seu depoimento da Comissão Parlamentar de Inquérito.
O relato da existência de uma reunião entre a CEO de uma empresa pública e um Grupo Parlamentar, mediada pelo Governo e para preparação de audições na Assembleia da República, mostra uma prática inaceitável. Confundindo o interesse geral com o interesse partidário, constitui uma forma de promiscuidade na gestão da coisa pública. A magnitude deste ato terá sido percecionado pelos participantes. Terá sido a gravidade desta reunião e a sua singularidade na história das empresas públicas que justificou a recorrente omissão da sua existência em declarações de membros do Governo ou responsáveis do PS, incluindo no Grupo Parlamentar. E é na decorrência da tensão crescente que, depois, têm lugar os acontecimentos de dia 26 de abril no Ministério das Infraestruturas.
3. Pressão
Foram vários membros do governo, dirigentes do PS, responsáveis do Grupo Parlamentar a pressionar a CPI TAP. De fora para dentro, a mensagem foi sempre de desvalorização dos seus trabalhos, condicionamento do acesso a documentação, fragilização da respeitabilidade da comissão e dos seus deputados.
Os episódios acima relatados ilustram a cultura que o PS procurou criar. Mas acresce a permanente ideia da comissão se estar a desviar do seu objeto, levantada várias vezes e com especial violência quando se antecipava uma maior consequência para o Governo ou o PS. Curiosamente, depois das violentas declarações, o PS viabilizava as audições ou os pedidos de documentos.
O mesmo se pode dizer da pressão sobre a forma de inquirição ou de organização dos trabalhos. O PS tem maioria absoluta, nenhuma organização dos trabalhos acontece sem a sua aceitação e participação. No entanto, esse simples facto não impediu a existência de violentas críticas que, mais uma vez, procuraram criar um clima de pressão sobre a CPI TAP.
Um último exemplo decorreu na análise à reunião de dia 17 de janeiro de 2023, no Ministério das Infraestruturas entre a CEO da TAP e o Grupo Parlamentar do PS. Várias vozes do PS, atuais e antigos responsáveis, diziam que não havia nada de criticável, que era uma prática corrente. Nada mais falso, como se comprovou. Vários dos depoentes da CPI TAP foram confrontados com esta situação e sempre disseram que não conheciam outros exemplos.
4. Segredo
A classificação de documentos é uma prática pouco usada em geral na Administração Pública. No entanto, basta haver a vontade de fiscalização de algum assunto pela Assembleia da República (AR) e há logo uma corrida à classificação de documentos para dificultar a ação do Parlamento.
Uma parte relevante dos documentos enviados pelo Ministério das Infraestruturas à CPI TAP só foram classificados depois de serem pedidos pela comissão. Estavam partilhados em vários computadores, não havia rastreio de quem os detinha mas, mal houve o pedido da CPI TAP, foram classificados. Há documentos que chegaram primeiro aos jornais ou televisões do que à comissão. Há documentos que não chegaram, apesar de ser obrigação das entidades públicas em cooperar ou responder perante a AR.
Infelizmente, a desculpa é batida: há sempre um segredo comercial qualquer que é invocado para impedir a fiscalização do Parlamento. No entanto, há escritórios de advogados com a acesso a toda a informação, há entidades privadas com informação. É a desvalorização dos órgãos de soberania e a instituição do segredo como forma de esconder as verdades inconvenientes.
5. Outsourcing
Nos momentos chave: a privatização de 2015, a nacionalização de 2020, a indemnização a David Neeleman, o pagamento a Alexandra Reis. Em todos estes processos houve escritórios de advogados que agiram em nome do Estado, negociaram em nome do Estado e validaram acordos e propostas em nome do Estado. Os governantes delegam nestes escritórios de advogados as suas responsabilidades e refugiam-se nos seus pareceres para justificar as decisões políticas.
A governação em outsourcing foi exposta como prática corrente dos Governos. “Eu não sou advogado” foi uma das frases mais repetidas na CPI TAP. Ao mesmo tempo que se ouvia “tinha um parecer que dizia isto”. O parecer era a chave para a decisão política, elaborado pelo escritório de advogados que estava com a mão na massa daquele processo. Hoje do lado do Estado, amanhã potencialmente do lado dos privados, a reverência aos escritórios de advogados é mais do que apenas negócio, é uma forma de desresponsabilização, a externalização da decisão que serve para aliviar consciências e apresentar desculpas.
Quem fiscaliza o escritório de advogados? Quem valida a qualidade dos seus pareceres? Que interesses são defendidos nos seus pareceres? Estas são as perguntas óbvias, mas para as quais a resposta é um enorme vazio. No entanto, os governantes não parecem perder tempo com isso.
6. Ilegalidade
Os escritórios de advogados fazem lei nos seus pareceres, mesmo que por vezes desconheçam a lei. A indemnização paga a Alexandra Reis, declarada ilegal pela Inspeção Geral de Finanças (IGF), foi validade por dois escritórios de advogados diferentes. Quais as consequências desta ilegalidade para estes escritórios e advogados? Nenhumas.
A indemnização de 55 milhões de euros paga a David Neeleman em 2020 foi colocada em cima da mesa como a alternativa menos má depois de diabolizada uma eventual nacionalização. O escritório de advogados nunca questionou a legalidade do pagamento da indemnização, apesar de na CPI TAP vários depoentes terem colocado em causa a sua necessidade.
A privatização em 2015 aconteceu com a TAP a ser paga com dinheiro da própria TAP, parte pela devolução de um contrato assinado com a Airbus, parte pelo pagamento de um desconto de quantidade ao investidor privado. No entanto, este processo mereceu parecer positivo dos escritórios de advogados, parecer que serve de desculpa ao decisor público. Hoje, essa privatização está a ser investigada pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Contas, por suspeitas fundadas de ilegalidade.
Os pagamentos aos administradores da TAP, alguns feitos à margem da lei e para fugir a obrigações tributárias ou junto da segurança social, nunca tiveram nota negativa dos consultores jurídicos.
Mas mesmo a responsabilidade da tutela, quer o Ministério das Finanças, quer o Ministério das Infraestruturas, levaram a ilegalidades. Além dos casos anteriores, o incumprimento do Estatuto do Gestor Público, em particular na obrigação da realização de Contratos de Gestão, mostra que há a ideia de que a lei não se aplica a todos por igual.
Apesar de pagamentos avultados por consultadorias jurídicas ou similares, a lei não foi sempre cumprida na TAP. A CPI TAP permitiu alcançar informação e contradições que agora seguem para instâncias que poderão aprofundar estes dados e dar-lhe consequências legais.
7. Privilégio
A administração da TAP é um espaço de privilégio. Imunes à situação da empresa, se dá lucro ou não, se está capitalizada ou não, se cumpre objetivos organizacionais ou não, os administradores vivem acima das possibilidades da empresa.
Salários chorudos, pagamentos acessórios generosos, prémios fáceis, desvalorização de critérios para definição de objetivos, ausência de contratos de gestão: a administração sempre foi um paraíso. Mesmo quando o inferno se instalou na empresa, com despedimentos de centenas de trabalhadores, cortes salariais e redução de direitos, a administração era um sítio seguro para quem lá estava.
Assim se explica o pagamento de prémios aos administradores imposto por David Neeleman quando a empresa estava descapitalizada e com prejuízos. O mesmo acontece com a tentativa, felizmente gorada, de renovação da frota automóvel da administração quando a empresa entrava num draconiano plano de reestruturação. E, não menos relevante, no pagamento de indemnizações principescas a administradores na sua saída.
O caso de Fernando Pinto é apenas mais um para juntar ao rol que culminou em Alexandra Reis. Fernando Pinto saiu da TAP e, depois, continuou a receber salário por serviços que ninguém consegue provar que existiram. Reformas douradas numa empresa de cofres vazios e endividada.
8. Reestruturação
A reestruturação da TAP foi apresentada como uma inevitabilidade imposta por Bruxelas. É um argumento batido, mas sempre eficaz: Bruxelas impõe isto ou aquilo. Mas, vai-se a ver, a empresa chegou a 2020 descapitalizada porque os privados a compraram em 2015 com o dinheiro da própria empresa e aumentaram brutalmente o endividamento; o Estado tinha posição estratégica desde 2017, mas isso era só no papel porque sempre seguiu a vontade dos privados; a reestruturação é a antecâmara da privatização porque o PS mudou de opinião e já não acha a TAP estratégica.
A reestruturação cortou mais na TAP do que era necessário para cumprir rácios aceitáveis e sobrecapitalizou a TAP com dinheiros públicos. Hoje fazem falta os trabalhadores despedidos e tornariam a TAP mais forte algumas das rotas que foram alienadas. A TAP está a dar lucro e mais perto de começar a devolver o dinheiro ao Estado, mas poderia estar muito melhor se não tivesse sido alvo de tamanhos sacrifícios. O Governo aceitou entregar a Bruxelas um plano exagerado para ir além do necessário, mesmo que isso fosse pior para o país.
A reestruturação não teve a discussão pública necessária nem a fiscalização obrigatória da AR. O segredo comercial foi decretado para impedir essa fiscalização, mas ficou pior a TAP e o país.
9. Privatização
Este era o plano secreto da reestruturação. Em 2015, o PS declarava a TAP estratégica, argumento com o número de trabalhadores, o retorno para as contas públicas e para a economia. Desde essa altura, nada mudou exceto a opinião do PS. A reestruturação é a arma apontada à TAP que decorre da mudança de opinião.
A reestruturação teve como objetivo deixar a empresa rentável para entregar a um privado. Cortar direitos, cortar salários, reduzir a força de trabalho, capitalizar com dinheiros públicos: exatamente a mesma receita que já vimos, por exemplo, com o Novo Banco. No final, um qualquer privado irá ficar com a empresa a dar lucro e deixar para o Estado os prejuízos.
Acresce à vontade privatizadora, a tentação do Governo se liberta dos problemas que criou ao lidar com a TAP. É o país que perde, que fica mais pobre quando o PS repete a mesma receita que a direita já fez no passado.