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Declaração de Jerusalém: Uma refutação contra a utilização do anti-semitismo como arma

Organizações sionistas e a direita mundial têm usado o argumento do anti-semitismo para silenciar o discurso a favor da Palestina. A nova declaração de Jerusalém sobre o tema pode ser uma ferramenta para contrariar esta ofensiva. Por John Clarke.
Homem judeu com uma bandeira palestiniana numa manifestação. Foto de Alisdare Hickson/Flickr.
Homem judeu com uma bandeira palestiniana numa manifestação. Foto de Alisdare Hickson/Flickr.

Publicada o mês passado, a Declaração de Jerusalém sobre o Anti-semitismo (DJA) nasce de um esforço colaborativo de “académicos nos campos da história do Holocausto, estudos judaicos e estudos do Médio Oriente”. Foi desenvolvida como “uma ferramenta para identificar, confrontar e consciencializar acerca do anti-semitismo tal como este se manifesta atualmente em países de todo o mundo”. Também responde deliberadamente à “definição IHRA”, o documento que foi adotado pela Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA) em 2016.

Os autores da DJA sugerem que “porque a definição IHRA é pouco clara em aspetos-chave e amplamente aberta a interpretações diferentes, tem causado confusão e gerado controvérsia, enfraquecendo assim a luta contra o anti-semitismo”. Portanto, “propõe-se a nossa declaração não vinculativa legalmente como uma alternativa à definição IHRA”.

Pode ser útil olhar brevemente para alguns dos estragos que têm sido feitos pela definição IHRA antes de avaliar a contribuição que pode ser dada pela DJA.

A definição IHRA

A definição principal de anti-semitismo que foi adotada pela IHRA em 2016 não é particularmente problemática em si nem por si, mesmo que tenha vindo a ser criticada por ser algo imprecisa. A dificuldade está no foco da maioria dos onze “exemplos” de anti-semitismo que estão ligados a esta. Sete deles relacionam-se na totalidade com o Estado de Israel e, assim, têm sido utilizados para apresentar desacordos políticos com o projeto sionista como expressões de ódio anti-judaico. Na verdade, têm vindo a ser utilizados para caracterizar o anti-sionismo e até críticas contidas de Israel como uma das formas mais difundidas e perigosas de anti-semitismo.

Kenneth Stern, que desempenhou um papel de liderança no desenvolvimento da definição IHRA, tem-se pronunciado contra o seu uso indevido como arma contra a liberdade de expressão sobre a Palestina. Tem apontado que a intenção era criar uma ferramenta de recolha de dados e não um meio de definir ou policiar discurso de ódio. Contudo, nas mãos dos defensores de direita de Israel, tem sido utilizada para atacar a liberdade de expressão, asfixiar a solidariedade para com a Palestina e para atingir indivíduos e organizações que apoiam a sua luta.

O papel disruptivo da definição IHRA tem sido considerável e extenso. Desempenhou um papel importante na sabotagem da liderança de Corbyn à frente do Partido Trabalhista. Desde a enormemente infeliz decisão do Labour de adotar a definição, em 2018, as coisas foram de mal a pior em termos da asfixia da liberdade de expressão sobre a Palestina.

Muitos exemplos poderiam ser dados mas o facto de o Conselho de Tower Hamlets ter recusado receber o Grande Passeio pela Palestina em 2019, por medo que esse evento de solidariedade pudesse violar a definição IHRA, revela perfeitamente o seu efeito dissuasor. Em resposta aos esforços do ministro da Educação, Gavin Williamson, de impor esta definição às universidades, o Conselho Académico do Colégio Universitário de Londres declarou em fevereiro que esta “não cabe nos propósitos de uma universidade e não há base legal para a impor”. Para além disso, o Conselho considerou que “a definição de trabalho da IHRA arrisca minar a liberdade académica”.

Aqui no Canadá, um esforço concertado está a ser desenvolvido para que municípios adotem a definição, o que já acontece tanto ao nível federal quanto ao nível do governo de Ontário. Sheryl Nestel, das Vozes Judaicas Independentes, escreveu um estudo revelador sobre a Auditoria Anual de Incidentes Anti-semíticos lançada pelo B’nai Brith Canada. Nos EUA, a Liga Anti-Difamação (ADL) conduziu um estudo comparável e, em 2019, encontrou provas de 2.107 incidentes. No mesmo ano, o B’nai Brith reportou a existência de 2.207 incidentes anti-semitas no Canadá.

Este é um resultado verdadeiramente surpreendente, uma vez que “os EUA têm uma população nove vezes maior do que a do Canadá e tem 17 vezes mais judeus”. A discrepância é fácil de compreender quando se comparam as metodologias dos dois estudos. O estudo do ADL é cuidadoso para não confundir críticas gerais de Israel ou ativismo anti-Israel com anti-semitismo.

O B’nai Brith, por sua vez, declara abertamente que “para delinear os parâmetros de anti-semitismo e identificar as suas causas [se] usa a Definição de Trabalho da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto”. Desta forma, é criado um retrato totalmente distorcido do anti-semitismo, que apresenta expressões de solidariedade com a luta palestiniana como provas de um anti-semitismo furioso ao mesmo tempo que desvia a atenção da verdadeira e crescente ameaça de ódio anti-semita por parte da extrema-direita.

O papel da DJA

Como indiquei inicialmente, a intenção dos autores e signatários da DJA é a de estabelecer uma alternativa à utilização destrutiva indevida da definição IHRA, procurando providenciar: “(a) uma definição central mais clara e (b) um conjunto coerente de diretrizes”. É um esforço colaborativo de pessoas com visões muito diferentes sobre Israel/Palestina. Sobre essa “questão controversa” deixam claro que “não procuram promovem uma agenda política comprometida”. O seu objetivo é mostrar o que pode ser considerado opinião legítima e o que constitui na verdade anti-semitismo.

A DJA providencia uma definição clara e nítida que sugere que “o anti-semitismo é discriminação, preconceito, hostilidade ou violência contra os judeus enquanto judeus (ou instituições judaicas enquanto judaicas)”. Apresenta depois 15 diretrizes, das quais as primeiras cinco lidam com características gerais de expressão ou comportamento anti-semita.

As restantes dez diretrizes lidam especificamente com o anti-semitismo no contexto Israel/Palestina. Estas estão, por sua vez, divididas entre as que mostram quando a crítica de Israel ou da ideologia sionista pode ser motivada por sentimentos anti-semitas e as outras que mostram situações nas quais tais pontos de vista ou apoio à causa palestiniana não devem ser vistos como inerentemente anti-semitas. Estas incluem criticar ou opor-se ao sionismo como uma forma de nacionalismo e defender “acordos que deem igualdade plena a todos os habitantes “entre o rio e o mar” quer sejam dois Estados, um estado bi-nacional, um estado unitário democrático, um estado federal seja de que forma for”. O documento também sugere que os apelos para o Boicote, Desinvestimento e Sanções com o Estado israelita “não são em si por si próprios anti-semitas”.

O Comité Nacional dos movimentos Boicote, Desinvestimento e Sanções lançou uma “crítica da sociedade civil palestiniana” da DJA que a apoia mas, contudo, faz um conjunto de importantes críticas. A crítica sugere que “o DJA pode ser utilizado na luta contra o McCarthysmo e repressão anti-Palestiniana que os proponentes da definição IHRA, com os seus “exemplos”, têm promovido e induzido” e oferece um conjunto de argumentos claros sobre porque assim é.

Contudo, o Comité levanta objeções ao facto de que “a DJA exclui perspetivas de representantes palestinanos” e torna claro que “os palestinianos não podem permitir que qualquer definição de anti-semitismo seja utilizada para policiar ou censurar a defesa dos nossos direitos inalienáveis ou a narrativa das nossas experiências vividas e a história provada factualmente da luta contra o colonialismo dos colonatos e o apartheid.

Barry Trachtenberg clarifica que a sua decisão de assinar o DJA não foi tomada sem alguma ambivalência. Enquanto “académico de história judaica” já tinha previamente argumentado contra a noção de trabalhar numa definição distinta de anti-semitismo separada das outras formas de racismo. Contudo, defende a ideia decisiva de que a necessidade da DJA foi criada pelo papel pernicioso da definição IHRA. Como ele o coloca: “Participei no esforço para produzir o DJA para conter o ímpeto crescente por parte do Estado de Israel e muitos de seus apoiante em utilizar a definição do IHRA para restringir críticas válidas” e, mais adiante, declara que “a ampla adoção e abuso da falha definição IHRA convenceu-me que é preciso uma substituição completa desta”.

Do meu ponto de vista, o mais convincente argumento acerca da importância da DJA é avançado por Rob Ferguson num artigo para a Voz Judaica do Labour. A força do seu argumento reside no facto de ele distinguir a necessidade de solidariedade ativa para com a Palestina, que ele defende, da questão da defesa do direito à liberdade de expressão e da defesa desta da crítica de anti-semitismo.

Ele concorda que os palestinianos não deveriam ter de “justificar a sua luta pela libertação face às acusações de anti-semitismo”. Apesar disto, nota que “contudo, a dificuldade é que estamos a enfrentar um ataque repressivo, quase-legal, lançado com sucesso significativo ao suprimir a liberdade de expressão sobre a Palestina. Isto torna a refutação sistemática do IHRA feita pela DJA, combinada com a sua autoridade diversa e lista de signatários, uma ferramenta única para construir uma oposição a este ataque”.

Ferguson defende que a defesa da “liberdade de expressão sobre Israel e a Palestina” é uma questão distinta e que o DJA pode ser usado como uma arma contra o papel nocivo da definição IHRA. Desta forma, sugere, pode ser aberto um caminho para o apoio mais robusto à luta de libertação dos palestinianos. Com esta perspetiva, contribui de forma muito importante para esta discussão.

A DJA não é certamente um documento perfeito. Presta atenção insuficiente à vaga crescente de anti-semitismo à direita, como assinalou o Comité Nacional BDS. Também sugeriria que, quaisquer que tenham sido as intenções daqueles que o lançaram, o uso do noma da cidade que, mais do que qualquer outra, está associada com a despossessão colonial dos palestinianos foi uma escolha enormemente infeliz.

Contudo, à medida que a campanha internacional para difamar a luta palestiniana e quem a apoie com a falsa acusação de anti-semitismo se torna cada vez mais ousada e nociva, a definição IHRA é agora a arma eleita. Nestas situações, uma voz da razão mainstream , com autoridade e clareza que enfrente essa definição falha é uma grande ajuda. A DJA existe para ser usada como uma ferramenta que ajuda abrir caminho para a construção de um movimento internacional de solidariedade com a luta por uma Palestina livre.


John Clarke é organizador comunitário e ativista da Coligação Contra a Pobreza de Ontário.

Artigo publicado originalmente no Counterfire. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.

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