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Daniel Bensaïd, um companheiro distante, por Alain Badiou

Há doze anos, no dia seguinte à morte de Bensaïd, figura do maio de 68 e dirigente político trotskista, num seminário dedicado a Platão, Alain Badiou prestava-lhe homenagem explicando porque é que o sentia como um “companheiro distante”.
Daniel Bensaïd.
Daniel Bensaïd. Foto publicada na página das Edições Combate

Gostaria de começar este seminário falando-vos da morte de Daniel Bensaïd. É algo que me atinge vivamente e que é uma grande perda para mim. Uma grande perda que se pode dizer, em certo sentido, paradoxal, porque, por razões que vou explicar, Daniel Bensaïd não era aquilo a que habitualmente se chama um companheiro próximo.

É verdade que os companheiros próximos, já se sabe… Um dos grandes títulos de glória de Lin Piao na China, durante a Revolução Cultural, era ser “o companheiro de armas mais próximo de Mao ZeDong”; isso levou-o a morte em poucos anos. Daí que possamos desconfiar dos “companheiros de armas próximos” ou desse título de glória. Daniel Bensaïd não era um companheiro de armas próximo mas era, porém, alguém que eu convivia absolutamente como um companheiro. Era, por razões que vou explicar, o que chamarei um companheiro distante.

Não renegar, continuar

Era um companheiro distante por três razões essenciais que, em conjunto, produzia uma espécie de raridade. Antes de mais ao nível das escolhas fundamentais, diria mesmo de uma escolha fundamental, feita por alguém que, aliás, foi obviamente um grande intelectual, um pensador, um filósofo. Esta escolha foi a de não renegar, de não entrar, em nome de circunstâncias aparentes, na lógica da renegação. Isto quer dizer: manter um elemento inflexível na subjetividade política. Trata-se a bem dizer de algo de muito mais geral. Quando se recusa a reversão, a renegação, a negação, quando se recusa navegar nas circunstâncias sucessivas como um cão morto, isto envolve obviamente outra coisa para além de apenas determinações políticas particulares. É esta vontade, este imperativo que na Ética, ensaio sobre a consciência do mal eu disse ser o único imperativo ético verdadeiro nas circunstâncias difíceis, o imperativo que se diz: “continuar”.

Daniel Bensaïd era um homem que, tranquilamente aliás, estava convicto que as circunstâncias poderiam variar, as forças contra-revolucionárias tornar-se muito mais vigorosas, mas que tudo isto não era razão para não continuar.

O segundo ponto é que o lugar do exercício privilegiado desta escolha era, para ele como para mim, a fronteira entre a filosofia e a política, a articulação das duas: a filosofia como disciplina do pensamento, na qual estávamos envolvidos há muito, e a política como figura prática, organizada e militante. O acordo entre estas duas coisas não é óbvio, sabemo-lo bem. Este é um debate que tivemos acerca de Platão e que se pode ter a propósito de toda a história da filosofia. Qual é a relação exata entre a filosofia e a política? É uma questão interna às duas, trabalhada dos dois lados. Tínhamos em comum esta escolha de trabalhar efetivamente dos dois lados, o que quer dizer também encontrar operadores filosóficos que legitimem e impulsionem a figura da continuação.

O terceiro ponto era a subjetividade. A subjetividade aparente, tal como se via, a qual se compunha, a meu ver, de três coisas. Em primeiro lugar de uma extrema firmeza, ligada naturalmente aos outros dois pontos. Sabíamos muito bem, quando encontrávamos Daniel Bensaïd, quando falávamos com ele, quando o líamos, que não seria fácil deslocá-lo da sua posição. Em seguida a calma, ou seja algo nos antípodas de um certo modo esquerdista de histeria política, a qual por vezes traz dividendos mas que tem também os seus aspetos irritantes. Ele era extremamente calmo, na sua própria firmeza. E a última coisa é um grande humor. Esta firmeza, esta calma, este humor, é algo que eu reconhecia verdadeiramente, algo a que me sentia fraternalmente ligado, e tudo isso compunha o companheiro.

Havia os maoistas e os trotskistas e isso continua!”

Agora, porquê “distante”? De forma anedótica poder-se-ia dizer: havia os maoistas e os trotskistas e isso continua! Continua numa velha história, uma velha história do maio de 68. Se descodificarmos um pouco esta história, diria que o litígio, o diferendo, a contradição entre nós, que obviamente existia e que foi escrita, nomeada, dizia respeito a duas coisas. A primeira era que, uma vez que estávamos de acordo em não renegar nada, de acordo para continuar, a questão de saber o que isso queria dizer exatamente. No fundo havia um desacordo neste ponto. Isto dizia respeito também à análise do passado político, a propósito do qual naturalmente se colocava a questão da continuação e a triagem que se fazia dele. O que se deveria guardar? O que é que não se poderia guardar? O que realmente apoiava a continuação só que, porém, se devia mudar? Dito de outra forma, era a questão da relação entre a continuidade e a descontinuidade no próprio interior da continuação; isto quer dizer que concordamos em continuar mas isso abre imediatamente, na própria continuação, um ponto que está na realidade no plano de fundo de quase todos os debates no espaço da política revolucionária de hoje. De acordo, não vamos ceder, não nos juntaremos ao consenso, mas a continuação é ela própria trabalhada por uma dialética imanente da continuação e da não-continuação. Penso que este era o primeiro ponto da divergência: não tínhamos a mesma dialética da continuidade e da descontinuidade no interior da continuidade. É um primeiro ponto, muito complexo aliás, que se virmos de perto, está cheio de surpresas e paradoxos.

O segundo ponto, que é filosófico, ao passo que o primeiro era histórico e político, enunciá-lo-ei de forma bastante simples: eram divergências sobre em que consiste hoje o materialismo. O que é o materialismo em filosofia? Estava subentendido que um revolucionário atualmente é forçosamente materialista mas o que quer isso dizer precisamente? Ora, não tínhamos sem dúvida a mesma conceção do materialismo. Daniel Bensaïd acusou-me, mais do que uma vez, de ser um religioso camuflado, o que queria dizer, aos seus olhos, que eu não era muito materialista. Pela minha parte, tê-lo-ei eventualmente acusado de ser um determinista arcaico! Então, entre o determinista quase mecanicista de um lado e o religioso do outro, havia uma tensão alegórica, muito importante, cujo centro de gravidade era no fundo: o que é o materialismo contemporâneo? Em conformidade com uma intuição de Althusser, dizia respeito em última instância ao lugar do aleatório, portanto à função do acaso (no meu caso sob o nome de acontecimento) no interior do reconhecimento do caráter materialista do campo, da ação ou da existência. Na realidade, o Daniel reconhecia a necessidade de atribuir o seu lugar ao aleatório, há textos explícitos sobre isso, mas achava que eu lhe dava um pouco de espaço a mais, que não estava suficientemente inclinado para uma análise detalhada e materialista da situação ou da conjuntura. Por todas estas razões, Daniel Bensaïd foi para mim um companheiro distante.

O apoio amigável, sem segundas intenções, de um companheiro distante”

No entanto, gostaria de dizer que quando se manifesta o apoio amigável de um companheiro distante, é uma coisa muito forte, muito comovente. No fundo, o apoio de um companheiro próximo é quase um dado adquirido, há, claro, algumas aventuras nesses casos mas fazem parte da própria natureza da proximidade. O apoio amigável, sem segundas intenções, de um companheiro distante, é algo bastante raro. Lembro-me sempre que, quando começou a campanha contra mim baseada no tema de que eu seria anti-semita, campanha subjetivamente muito desagradável, ele foi verdadeiramente um dos primeiros a entrar em liça publicamente para me defender, de forma extremamente argumentada, com o seu talento, ao mesmo tempo de forma documentada e absolutamente firme, calmo e cheio de humor vingativo. E, aí, era verdadeiramente o companheiro distante que se manifestava da forma mais imediata e mais amigável.

Evidentemente, o avesso da emoção que sentimos quando o companheiro distante nos apoia é que o seu desaparecimento é terrível. Não vou dizer, isso seria absurdo, que o desaparecimento do companheiro distante seja mais difícil de suportar do que o do companheiro próximo, mas há algo que nos atinge particularmente porque, por ser um companheiro distante, não acompanhámos, de forma subjetiva, próxima e quotidiana, a longa sequência do seu desaparecimento. Ele chega de um momento para o outro. E esse desaparecimento do companheiro distante, sinto-o esta noite, até à vossa frente, é um sofrimento.

Penso que uma das razões é que o distante é uma medida do nosso próprio lugar, uma medida particular. Num certo sentido, a proximidade é o próprio lugar. O companheiro próximo é aquele que vos acompanha e que ocupa o próprio lugar em que pensais e agis. Mas o companheiro distante não está no próprio lugar e, como é companheiro fora de lugar, é também medida do lugar. Todo o lugar tem, num certo sentido, necessidade do seu distante para se consolidar, para existir. É, em política, a questão muito complicada ou muito importante das alianças com pessoas que são distantes. E a aliança indubitável que existia em todas as espécies de pontos com o Daniel faz com que o seu desaparecimento seja também algo que afeta o lugar da própria medida, o que lhe era dado pelo seu distante.

Tínhamos falado do lugar da última vez e queria aproveitar a ocasião para dizer sobre isso mais umas palavras. Sabem que se pode chamar “lugar” à materialidade localizada de um procedimento político. E esta materialidade tem uma consistência tal que objeta à ideia muito espalhada de que se pode substituir à reunião dos corpos a conexão imaterial, pela Internet por exemplo. Não digo de todo que esta nova operação seja inútil mas que ela não substitui a construção coletiva do lugar como presença conjunta dos corpos. Nada substituirá, estejam seguros, especialmente no procedimento político, este efeito coletivo da coexistência dos corpos. A partir do momento em que os corpos se ausentem, em que a imaterialidade se instale, a comunicação ou a conexão pode ser rápida e indubitável mas a decisão é precária.

A reunião é o núcleo ativo da política”

Dou-vos um exemplo que alguns dos que aqui estão já conhecem. Durante as últimas férias, algumas delegações internacionais tinham decidido encontrar-se em Gaza, simbolicamente, para testemunhar um apoio internacional à população, vítima de uma espécie de cerco, de uma política que é, e que a termo se quer, diga-se o que se disser, uma política de aniquilação. Ora uma diferença fundamental entre as delegações estrangeiras e a delegação francesa era que esta já tinha praticado a reunião física, enquanto que por exemplo os americanos se tinham juntado pela Internet e se tinham depois conhecido no Cairo, no Egito. Chegaram portanto ao Cairo em ordem dispersa. E no Cairo souberam que não havia a menor possibilidade de irem para Gaza. De repente, viram-se completamente atomizados. Ao invés, os franceses que tinham decidido ir a Gaza, tinham-se reunido previamente, e tinham decidido o que, num certo sentido, só uma verdadeira reunião permitiria, nomeadamente que, acontecesse o que acontecesse no Cairo, permaneceriam juntos em qualquer caso, até o final do período previsto para esta expedição. Isto teve como consequência que eles construiram um lugar. Chegaram em grupo ao Cairo e ocuparam uma grande avenida da cidade. Claro que a polícia egípcia começou a mostrar os dentes, houve negociações – poupo-vos todas as peripécias – mas finalmente ocuparam, durante cinco dias, um passeio do Cairo, com bandeirolas e obtiveram uma grande apoio da parte da população.

Isto mostra bem que continua a ser absolutamente verdadeiro que a reunião é o núcleo ativo da política porque é a instância do seu lugar. É algo que toca no que poderíamos chamar a democracia real. Poderíamos chamar “democracia real” ao conjunto de procedimentos através dos quais se torna possível a construção de um lugar político novo. Penso mesmo que é a definição mais precisa que poderíamos dar dela atualmente. E aí se vê muito bem que, contrariamente ao que se diz, a reunião dos corpos continua a ser uma condição sine qua non da decisão política e que, deste ponto de vista, não é verdade que a Internet possa aceder como tal à democracia real. Pode ser um operador desta mas não é constitutiva dela.

Um grande perda para todo o mundo

Volto agora ao Daniel. Até ontem, antes de ontem, tínhamos a presença de Daniel Bensaïd, a presença do seu corpo macilento, desde há muito tempo, do seu corpo agudo com a sua voz meridional, o sotaque de Toulouse – o que era mais uma forma de fraternidade com ele, já que vínhamos da mesma cidade. Neste sentido, concluo, este corpo do Daniel, com o seu sotaque de Toulouse, fazia lugar por si próprio. Um pequeno lugar, em que a filosofia e a política estavam conectadas num corpo e numa voz. E aí verdadeiramente, quando o via, com este corpo singular e a acuidade do seu humor e da sua voz, a proximidade e a distância confundiam-se nele.

E é por isso que vos queria dizer a todos que o desaparecimento de Daniel Bensaïd, que tinha 63 anos, é uma grande perda para todo o mundo. E, nas condições atuais, é um desaparecimento prematuro! Precisávamos de pelo menos de mais vinte anos de Daniel Bensaïd, é o que é.

Mas, de qualquer forma, é certamente uma razão suplementar que prova que ele era um companheiro. E, afinal, isso era a única coisa que ele nos poderia pedir e que nos pediu.


Texto pronunciado por Alain Badiou no quadro do seu seminário sobre Platão a 13 de janeiro de 2010 e publicado com o título Pour aujourd’hui: Platon! 2007-2010, éd. Fayard, 2019. Reproduzido pelo Les Inrockuptibles com autorização do autor.

Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.

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