Como os dogmas neoliberais estão a dificultar a resolução da pandemia

13 de fevereiro 2021 - 18:09

A propriedade intelectual, garantida pelos Estados e pelas leis do comércio internacional é que cria uma escassez 'artificial' de vacinas, o que gera lucros astronómicos à custa de não ter vacinas suficientes para aliviar as graves consequências da pandemia e prevenir a morte de milhões de seres humanos.

porVicenç Navarro

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Vacina. Foto de Jernej Furman/Flickr.
Vacina. Foto de Jernej Furman/Flickr.

Estamos imersos numa das maiores crises sociais e económicas que o mundo já conheceu. A evidência científica que apoia tal observação da realidade é esmagadora. De indicador a indicador (da mortalidade da população ao emprego), mostra-se a enorme dor e sofrimento que a pandemia está a provocar. E as pessoas sabem disso.

Os níveis de cansaço, frustração e indignação que a maioria da população está a viver em grande parte dos países dos dois lados do Atlântico Norte preocupa em grande medida os maiores centros de reflexão dos establishments económicos e financeiros, bem como os fóruns políticos e mediáticos em cada país.

Do que não se fala nos debates sobre a pandemia

E, consequentemente, está a acontecer um grande debate sobre como responder a esta pandemia. Mas neste debate começam a ser abordados temas que eram intocáveis até agora. Vou-me explicar. Há um facto que não é tratado nesses fóruns políticos e mediáticos e que, no entanto, é de grande importância. Já sabemos controlar, conter e, portanto, superar a pandemia. Temos o conhecimento científico e os recursos para resolver alguns dos maiores problemas que existem e prevenir tantas mortes.

Além do mais, sabemos como a pandemia pode ser controlada para recuperar um certo grau de normalidade. O leitor deveria conhecer essa realidade. A ciência sabe hoje como isso poderia ser resolvido. E não me refiro apenas às ciências virológicas e epidemiológicas e outras ciências básicas da saúde pública, mas também às aplicadas, como as ciências sociais e económicas. Sei do que falo.

Também sou professor da Johns Hopkins University, que inclui a Escola de Saúde Pública, onde são realizados os bem conhecidos estudos sobre a pandemia, conhecidos e citados internacionalmente. E posso garantir que sim, se sabe como controlar a pandemia. Sabemos, por exemplo, que não é possível haver recuperação económica sem primeiro conter a pandemia. Ignorar o segundo para corrigir o primeiro, como fez a administração Trump, levou a um desastre económico, social e de saúde. Nenhum país o conseguiu.

Novamente, existem milhares de dados que mostram o grande erro de ignorar essa realidade. Agora, o leitor perguntará: se sabemos controlar a pandemia e temos recursos para isso, por que isto não é feito? E outra pergunta que deriva da anterior é: por que os meios de comunicação não estão noticiando e os governos não estão agindo?

O silêncio ensurdecedor sobre a razão pela qual não se resolve o que é solucionável

A resposta à última pergunta é fácil de conhecer e tem a ver com a ideologia e a cultura dominantes nesses países, o que torna difícil ir além do que aquilo que o pensamento hegemónico permite considerar. Um desses obstáculos é, por exemplo, o sacrossanto “dogma da propriedade privada”, considerado fundamental para a sobrevivência da ordem social, esta última marcada por outro dogma, o das também sacrossantas “leis do mercado” como o melhor sistema de alocação de recursos. Esses dogmas regem o comportamento dos meios político-mediáticos da maioria dos grandes países dos dois lados do Atlântico Norte e desempenham um papel essencial para dificultar o controle da pandemia.

Um claro exemplo disso. O motivo da falta de vacina

Como indiquei num artigo recente (Por que não existem vacinas anti-coronavírus suficientes para todos? Publico.es, 30-12-20), o maior problema que existe no controlo da pandemia no mundo, hoje, é a falta de vacinas contra o coronavírus, carência que ocorre até em países considerados ricos dos dois lados do Atlântico Norte, o que é um absurdo, já que são países ricos (e, aliás, um grande número de países pobres possui os recursos para produzir as vacinas).

Na verdade, o desenvolvimento da parte mais essencial na produção das vacinas de maior sucesso (Pfizer e Moderna) ocorreu com fundos públicos, em instituições públicas, em países ricos (e, muito especialmente, nos Estados Unidos e Alemanha). É o que reconhece nada menos que o presidente da Federação Internacional de Indústrias Farmacêuticas, Sr. Thomas Cueni, num artigo publicado no New York Times, há algumas semanas: The Risk in Suspending Vaccine Patent Rules, 10-12-20.

Nele sinaliza que "é verdade que sem fundos públicos de agências [instituições públicas do governo federal dos Estados Unidos] como a U.S. Biomedical Advanced Research and Development Authority e o Ministério Federal da Educação e Investigação, na Alemanha, as empresas farmacêuticas globais não teriam sido capazes de desenvolver vacinas covid-19 e de modo tão rápido”. O Sr. Cueni poderia ter acrescentado que isso também ocorre com a maioria das grandes vacinas que vêm sendo produzidas há muitos anos.

A parte fundamental no desenvolvimento de qualquer vacina é o conhecimento básico, que costuma ser investigado em centros públicos ou com fundos públicos para pesquisa em saúde. A indústria farmacêutica, que sem esse conhecimento básico não poderia desenvolver vacinas, utiliza-o para avançar na sua dimensão aplicada, ou seja, a produção de vacinas.

Mas o que o presidente dessa federação internacional se esquece de mencionar é que, além de utilizar o conhecimento básico que os Estados financiam, esses mesmos Estados oferecem às empresas farmacêuticas um grande presente, garantindo-lhes um monopólio na venda do produto por muitos anos, que podem chegar até vinte, o que lhes garante lucros astronómicos (os mais altos do setor empresarial de qualquer país).

Aí está a origem da falta de vacinas. Simples assim. A propriedade intelectual, garantida pelos Estados e pelas leis do comércio internacional e os seus agentes, é o que cria uma escassez "artificial" de vacinas, o que gera lucros astronómicos à custa de não ter vacinas suficientes para aliviar as graves consequências da pandemia e prevenir a morte de milhões de seres humanos.

O que poderia ser feito?

O mais lógico seria que, como propõe Dean Baker (o economista que analisou a indústria farmacêutica internacional com maior detalhe, rigor e sentido crítico), os Estados que já financiaram o conhecimento básico ampliassem a sua intervenção para incluir, além do conhecimento básico, o aplicado, produzindo eles próprios as vacinas, que ficariam muito mais baratas (já que não teriam que incluir nos custos de produção os enormes lucros empresariais).

E o leitor questionará: por que não se faz o que parece lógico? Bem, a resposta também é fácil. Devido ao enorme poder político e mediático da indústria farmacêutica a nível nacional e internacional. Dean Baker documenta muito bem a natureza dessas conexões.

Na realidade, entre um grande número de especialistas em saúde pública nos Estados Unidos, há uma posição generalizada de que o objetivo legítimo do mundo empresarial privado de colocar como meta principal a otimização dos seus benefícios económicos deveria ser limitado ou até mesmo rejeitado nas políticas públicas que têm como objetivo otimizar a saúde e minimizar a mortalidade.

Essa perceção decorre do facto de que mesmo os Estados Unidos mostram claramente que a privatização da saúde, administrada por empresas com fins lucrativos (que é a situação mais comum naquele país), provocou um enorme conflito entre os objetivos empresariais e a qualidade e segurança dos serviços.

Os Estados Unidos são o país que mais gasta com saúde (a maior parte privada) e onde há mais pessoas insatisfeitas com o atendimento recebido, com 32% da população em estado terminal preocupada sobre como os seus familiares irão pagar o seu atendimento médico. A otimização da taxa de lucro é um princípio insuficiente e enormemente perigoso para a saúde da população (a escassez de vacinas é um exemplo disso).

Estamos ou não estamos numa situação de guerra, como dizem?

A linguagem que as autoridades, que estão constantemente a impor enormes sacrifícios à população, usam é uma linguagem bélica. Estamos a travar, dizem, "uma guerra contra o vírus" (que a extrema-direita classifica como "chinês", tentando recuperar a Guerra Fria, substituindo a URSS pela China). Na realidade, nos Estados Unidos, o número de mortes por Covid-19 é maior do que o número de mortes causadas pela Segunda Guerra Mundial.

O que acontece é que aqueles que falam assim, não acreditam no que dizem. É um recurso que utilizam para forçar o controlo dos movimentos da população (o que me parece lógico e razoável), mas, por outro lado, continuam a preservar meticulosamente os dogmas liberais da propriedade privada e as leis do mercado, dogmas deixados de lado no passado em situações reais de guerra.

Como é possível justificar que os governantes das instituições da União Europeia (a maioria sendo conservadores e liberais) respeitem os direitos de autor das empresas farmacêuticas que produzem a vacina contra o coronavírus? Durante a Segunda Guerra Mundial, toda a produção industrial foi orientada para a fabricação do material de guerra necessário. Por que não fazer o mesmo agora? Caso se forçasse a fabricação em massa dessas vacinas por parte das empresas farmacêuticas em todos os países ou em grupos de países, seria possível vacinar rapidamente a população, não apenas dos países ricos, mas de todo o mundo.

Como era previsível, a União Europeia, do seu Parlamento à Comissão Europeia e os seus outros órgãos dirigentes (a maioria governada por partidos conservadores e liberais), opôs-se a isso, pois está presa aos seus dogmas, que já demonstraram estar falidos durante o período neoliberal e que, apesar de seu grande fracasso, continuam a dominar os meios político-mediáticos dos dois lados do Atlântico Norte.

Ao menos nos Estados Unidos, a nova administração federal do governo Biden, sob pressão da comunidade científica (e das forças progressistas lideradas por Bernie Sanders), está a apelar à Lei de Produção de Defesa do país (aprovada pelo presidente Harry Truman), que obriga toda a indústria a colocar-se ao serviço da defesa do país para produzir o material necessário para prevenir e controlar a pandemia. A justificação para apelar a tal lei é que o bem comum deve estar acima de todos os interesses privados, exigindo que a indústria farmacêutica anteponha o bem comum a seus interesses particulares. O mesmo se aplica a diversos produtos, como seringas especiais e outros. Vamos ver se isso acontece.

Seria bom se o mesmo acontecesse na Europa. Nem preciso dizer que as direitas de sempre – de Trump às direitas da Espanha (incluindo a Catalunha) – acusam aqueles que querem forçar tal produção de "sócio-comunistas". Acontece em todo o mundo. Portanto, os cidadãos deveriam mobilizar-se para questionar os dogmas que provocam tantos danos à população. Encorajo os leitores a organizar e enviar textos e cartas de protesto a tais instituições, pois se isso pode ser feito, que assim seja. O que acontece é que o dogmatismo e as crenças os impedem de ver.


Artigo publicado no publico.es. Traduzido para português pelo Cepat e publicado pelo Instituto Humanitas da Unisinos. Adaptado pelo Esquerda.net para português de Portugal.

Sobre o/a autor(a)

Vicenç Navarro

Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, Universidade Pompeu Fabra (Barcelona, Espanha).