Mundial 2030

Como a FIFA põe o dinheiro à frente dos direitos humanos

30 de dezembro 2024 - 10:15

Escolha da Arábia Saudita para organizar o Mundial de Futebol de 2034 não foi surpresa, tal como não surpreende a disponibilidade da FIFA para lavar a imagem de regimes que atentam contra os direitos humanos. Outro exemplo é Marrocos, com quem Portugal co-organiza o Mundial de 2030.

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Yasser Al Misehal (presidente da federação saudita de futebol)  Príncipe Abdulaziz bin Turki Al Faisal (ministro do desporto) e  Gianni Infantino, presidente da FIFA, num encontro em Paris durante os Jogos Olímpicos de 2024.
Yasser Al Misehal (presidente da federação saudita de futebol) Príncipe Abdulaziz bin Turki Al Faisal (ministro do desporto) e Gianni Infantino, presidente da FIFA, num encontro em Paris durante os Jogos Olímpicos de 2024. Foto FIFA.

A contestação sem precedentes à realização do Mundial no Catar, com denúncias de abusos sobre os trabalhadores que construíram estádio se outras infraestruturas e do sistema de escravatura legalizado do trabalho doméstico não serviu de lição aos organizadores da competição. Marcada por um longo historial de corrupção, a FIFA optou desta vez por mudar as regras do jogo de forma a evitar ao máximo a discussão que pusesse em causa a escolha há muito decidida de entregar a organização da competição à Arábia Saudita.

Quando o processo de candidatura foi aberto em outubro de 2023, foi uma surpresa para muitos. E o prazo de apenas 25 dias para os interessados se candidatarem deixou perceber que a decisão estava tomada à partida. Mesmo a Austrália, que já tinha declarado interesse, afastou-se da corrida. Outra manobra da FIFA foi a de atribuir jogos do Mundial de 2030 a países de três confederações: além de Portugal, Espanha (ambos da UEFA) e Marrocos (CONCACAF), também três países da COMNEBOL (Argentina, Paraguai e Uruguai) vão receber jogos, o que afasta a América do Sul de receber o Mundial seguinte.

O investimento da Arábia Saudita no futebol para lavar a sua imagem de atentados aos direitos humanos e de grande produtor de combustíveis fósseis tem sido notório nos últimos anos, com a organização de um campeonato recheado de estrelas pagas com salários que nenhum clube do resto do mundo pode oferecer. Em abril, a petrolífera estatal saudita Aramco assinou um contrato de parceria com a FIFA que renderá cerca de 100 milhões de euros por ano até 2027.

Além de até agora se ter recusado reunir com ONG, sindicatos e grupos de ativistas exilado, a FIFA conseguiu “fintar” os seus próprios critérios de seleção de organizadores, que incluíam pela primeira vez padrões de direitos humanos. Segundo as organizações reunidas na Sport & Rights Alliance citadas pelo Expresso, a avaliação de risco apresentada pelos sauditas foi de “risco médio” quanto aos direitos humanos e “não há qualquer indício de que organizações da sociedade civil tenham sido consultas para a análise de risco, não sendo nenhum relatório público sobre direitos humanos mencionado na análise”. A dita avaliação foi elaborada por uma firma de advogados AS&H Clifford Chance, sediada em Riade e é descrita por Michael Page, da Human Rights Watch, como “comicamente desonesta”.

Além da perseguição política, das execuções em massa, da tortura e desaparecimentos, dos ataques aos direitos das mulheres e LGBT+, os abusos sobre trabalhadores migrantes são ainda maiores do que no Catar, a começar pela dimensão do país. Com muitos projetos a serem construídos no meio do deserto com um calor abrasador, desde 2016 já morreram 21 mil trabalhadores do Nepal, Bangladesh e Índia em projetos ao abrigo do programa “Visão 2030”, revelou um documentário da ITV.

Mundial 2030: Presença de Marrocos também é contestada

A candidatura conjunta de Portugal, Espanha e Marrocos foi contestada desde o início por causa da presença do regime que viola sistematicamente os direitos humanos e as liberdades democráticas, além de ocupar ilegalmente o Sahara Ocidental.

Na apresentação da candidatura dos três países, a Coordenadora Estatal das Associações Solidárias com o Sahara Ocidental (CEAS) - Espanha e a Associação de Amizade Portugal-Sahara Ocidental (AAPSO) sublinharam que “no desporto não pode haver lugar para países cujos regimes violam sistematicamente os Direitos Humanos e se servem dele para lavar a sua imagem”. E lembraram as “execuções extra-judiciais, os raptos e desaparecimentos forçados, as prisões arbitrárias e julgamentos ilegais, os cercos prolongados a casas de famílias, a intimidação e a violência”, que “são o dia a dia dos saharauis na sua terra ocupada, e também dos marroquinos que não desistem do seu país”.

Antes disso, já um grupo de eurodeputados - entre os quais os portugueses do Bloco e PCP - tinham escrito ao presidente da FIFA para contestar a inclusão no Mundial 2030 de um estádio que Marrocos está a construir em Dakhla, localidade do Sahara Ocidental. A celebração de jogos do Mundial de Futebol no Sahara Ocidental “contribuiria para continuar a normalizar a adesão ilegal de facto de um território por parte de uma potência ocupante”, tornando-se assim a FIFA “cúmplice desta situação”, acrescentaram os eurodeputados.

A organização de competições desportivas com alcance mediático global para operações de lavagem da imagem dos países que violam os direitos humanos não são uma novidade, como o demonstrou recentemente o Mundial do Catar. E tal como o Catar, também o regime marroquino ficou sob suspeita no caso conhecido como o “Catargate”, sobre o pagamento de subornos a eurodeputados para servirem os interesses de Marrocos. O antigo eurodeputado e líder camponês José Bové denunciou uma tentativa de suborno que lhe foi feita em 2012, quando era o relator do acordo comercial entre a UE e Marrocos. Disse que o então ministro da Agricultura marroquino Aziz Akhannouch “propôs levar-me um presente a Montpellier num café que fosse discreto entre o Natal e o Ano Novo”. Bové diz que lhe deu uma morada e recebeu horas depois um telefonema do ministro a dizer que não encontrava nenhum café nessa rua. “Eu respondi-lhe que era a morada do meu advogado. E acabou aí”, recorda o antigo eurodeputado, sublinhando que o governante “tinha o apoio desse clube privado que é a associação de amizade que junta eurodeputados de vários grupos políticos”. Aziz Akhannouch é o atual primeiro-ministro de Marrocos.