A contestação sem precedentes à realização do Mundial no Catar, com denúncias de abusos sobre os trabalhadores que construíram estádio se outras infraestruturas e do sistema de escravatura legalizado do trabalho doméstico não serviu de lição aos organizadores da competição. Marcada por um longo historial de corrupção, a FIFA optou desta vez por mudar as regras do jogo de forma a evitar ao máximo a discussão que pusesse em causa a escolha há muito decidida de entregar a organização da competição à Arábia Saudita.
Quando o processo de candidatura foi aberto em outubro de 2023, foi uma surpresa para muitos. E o prazo de apenas 25 dias para os interessados se candidatarem deixou perceber que a decisão estava tomada à partida. Mesmo a Austrália, que já tinha declarado interesse, afastou-se da corrida. Outra manobra da FIFA foi a de atribuir jogos do Mundial de 2030 a países de três confederações: além de Portugal, Espanha (ambos da UEFA) e Marrocos (CONCACAF), também três países da COMNEBOL (Argentina, Paraguai e Uruguai) vão receber jogos, o que afasta a América do Sul de receber o Mundial seguinte.
O investimento da Arábia Saudita no futebol para lavar a sua imagem de atentados aos direitos humanos e de grande produtor de combustíveis fósseis tem sido notório nos últimos anos, com a organização de um campeonato recheado de estrelas pagas com salários que nenhum clube do resto do mundo pode oferecer. Em abril, a petrolífera estatal saudita Aramco assinou um contrato de parceria com a FIFA que renderá cerca de 100 milhões de euros por ano até 2027.
Além de até agora se ter recusado reunir com ONG, sindicatos e grupos de ativistas exilado, a FIFA conseguiu “fintar” os seus próprios critérios de seleção de organizadores, que incluíam pela primeira vez padrões de direitos humanos. Segundo as organizações reunidas na Sport & Rights Alliance citadas pelo Expresso, a avaliação de risco apresentada pelos sauditas foi de “risco médio” quanto aos direitos humanos e “não há qualquer indício de que organizações da sociedade civil tenham sido consultas para a análise de risco, não sendo nenhum relatório público sobre direitos humanos mencionado na análise”. A dita avaliação foi elaborada por uma firma de advogados AS&H Clifford Chance, sediada em Riade e é descrita por Michael Page, da Human Rights Watch, como “comicamente desonesta”.
Além da perseguição política, das execuções em massa, da tortura e desaparecimentos, dos ataques aos direitos das mulheres e LGBT+, os abusos sobre trabalhadores migrantes são ainda maiores do que no Catar, a começar pela dimensão do país. Com muitos projetos a serem construídos no meio do deserto com um calor abrasador, desde 2016 já morreram 21 mil trabalhadores do Nepal, Bangladesh e Índia em projetos ao abrigo do programa “Visão 2030”, revelou um documentário da ITV.
Mundial 2030: Presença de Marrocos também é contestada
A candidatura conjunta de Portugal, Espanha e Marrocos foi contestada desde o início por causa da presença do regime que viola sistematicamente os direitos humanos e as liberdades democráticas, além de ocupar ilegalmente o Sahara Ocidental.
Na apresentação da candidatura dos três países, a Coordenadora Estatal das Associações Solidárias com o Sahara Ocidental (CEAS) - Espanha e a Associação de Amizade Portugal-Sahara Ocidental (AAPSO) sublinharam que “no desporto não pode haver lugar para países cujos regimes violam sistematicamente os Direitos Humanos e se servem dele para lavar a sua imagem”. E lembraram as “execuções extra-judiciais, os raptos e desaparecimentos forçados, as prisões arbitrárias e julgamentos ilegais, os cercos prolongados a casas de famílias, a intimidação e a violência”, que “são o dia a dia dos saharauis na sua terra ocupada, e também dos marroquinos que não desistem do seu país”.
Antes disso, já um grupo de eurodeputados - entre os quais os portugueses do Bloco e PCP - tinham escrito ao presidente da FIFA para contestar a inclusão no Mundial 2030 de um estádio que Marrocos está a construir em Dakhla, localidade do Sahara Ocidental. A celebração de jogos do Mundial de Futebol no Sahara Ocidental “contribuiria para continuar a normalizar a adesão ilegal de facto de um território por parte de uma potência ocupante”, tornando-se assim a FIFA “cúmplice desta situação”, acrescentaram os eurodeputados.
A organização de competições desportivas com alcance mediático global para operações de lavagem da imagem dos países que violam os direitos humanos não são uma novidade, como o demonstrou recentemente o Mundial do Catar. E tal como o Catar, também o regime marroquino ficou sob suspeita no caso conhecido como o “Catargate”, sobre o pagamento de subornos a eurodeputados para servirem os interesses de Marrocos. O antigo eurodeputado e líder camponês José Bové denunciou uma tentativa de suborno que lhe foi feita em 2012, quando era o relator do acordo comercial entre a UE e Marrocos. Disse que o então ministro da Agricultura marroquino Aziz Akhannouch “propôs levar-me um presente a Montpellier num café que fosse discreto entre o Natal e o Ano Novo”. Bové diz que lhe deu uma morada e recebeu horas depois um telefonema do ministro a dizer que não encontrava nenhum café nessa rua. “Eu respondi-lhe que era a morada do meu advogado. E acabou aí”, recorda o antigo eurodeputado, sublinhando que o governante “tinha o apoio desse clube privado que é a associação de amizade que junta eurodeputados de vários grupos políticos”. Aziz Akhannouch é o atual primeiro-ministro de Marrocos.