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A clandestinidade era uma arte!

Dez anos consecutivos de clandestinidade sem prisão aconteceu muito raramente. Houve também quem não resistisse ao “confinamento”, alguns foram transferidos para o estrangeiro para tratamento psiquiátrico ou emigraram. Por Raimundo Narciso.
Raimundo Narciso com a filha.
Raimundo Narciso com a filha.

 

O esquerda.net tem publicado um testemunho por dia de resistentes antifascistas sobre o seu quotidiano na prisão e/ou na clandestinidade e as estratégias que encontraram para combater o isolamento.

Todos os testemunhos publicados até ao momento estão reunidos aqui:

Confinamento(s) em tempo de ditadura

Projeto organizado por Mariana Carneiro.


A clandestinidade era uma arte!

Dada a perigosidade do “vírus” da PIDE, vi-me obrigado a confinamento de especial natureza, a clandestinidade. Decidi passar a esse estado – corria o ano de 1964 - não porque o “vírus” pidesco andasse no meu encalço mas porque o convite era para a criação de uma organização para a luta armada, que veio a ser a ARA e, defendendo eu esse caminho, achava pouco canónico reservá-lo apenas para os outros.

O vírus da PIDE era terrível. Militante antifascista apanhado pela virulenta polícia política do salazarismo era submetido a interrogatório e se recusava trair a luta pela liberdade era submetido a torturas inauditas, até à beira da loucura, até às vascas da morte. Espancamentos, tortura da estátua, tortura do sono, dias e noites sem dormir até à perda da consciência. Manuel G. contou-me que na tortura ouvia uma criança a gritar terrivelmente e diziam-lhe que era o seu filho de 3 anos, preso com a mãe.

Fui ao encontro com o Rogério, meu “controleiro” para seguir – julgava eu - para uma casa de camaradas legais que me abrigassem e vai ele tira umas notas da carteira e diz-me

- Toma lá e aluga um quarto. Encontramo-nos daqui a uma semana.

- Então a clandestinidade é isto?

- Ainda não és procurado pela polícia e estás farto de alugar quartos desde que vieste para Lisboa estudar.

Fui ao Diário de Notícias escolhi um dos 90 anúncios de quartos e aluguei um na Rua da Indústria, em Lisboa.

O quarto além da porta para o resto da casa tinha uma indispensável porta para a escada da rua - e o fecho de correr, por dentro, para garantir o “confinamento”.

O quarto revelou-se excelente pois em casa só estava eu quase todo o dia o que evitava estar em silêncio no quarto simulando estar fora.

A dona Gertrudes trabalhava a dias, deixava-me o almoço pronto e só regressava a casa perto do jantar. O Sr. Antunes saía às 6 da manhã e regressava perto da uma da madrugada. Operário, complementava a magra jorna, como projectista no cinema Lis. O domingo passava-o a dormir, quase o dia todo.

Eu saía à rua mas, de olhar longo, sempre atento a tudo, 50 metros em redor. Não para descobrir pides que não conhecia mas para identificar amigos antes que me vissem porque tendo-lhes dito que emigrava para a Alemanha logo se aperceberiam da minha realidade e, de confidência em confidência, o segredo chegaria à António Maria Cardoso. Foi assim que descobri ao longe o meu amigo e ex-colega do IST, o Simão e depois, com olho nele, à distância, descobri que morava três prédios abaixo do meu.

Ficha da PIDE de Raimundo Narciso.

Mudei-me então para a Rua do Cabo, em Campo de Ourique. Quarto independente, é claro, fechava-me por dentro, simulava saídas e ali trancado preparava os meus encontros e reuniões com a organização. Contrariando o confinamento lia, lia, lia e escrevia! Foi assim que ao longo de 10 anos convivi com Marx e Eça, Engels e Camilo, Lenine e Pessoa, Fernão Lopes e Camus, Fernão Mendes Pinto e Alves Redol, Graciliano Ramos e Antero e outros mais…

Saía batendo com a porta da escada, reentrava de seguida, sub-repticiamente.

Dois meses depois, o meu amigo Rogério:

- Tens de mudar de sítio, rapidamente! Aí perto foi preso, num quarto alugado, um camarada clandestino, o DD. O senhorio desconfiou da vida dele…

Na região de Lisboa uma brutal vaga de prisões levou dezenas de operários, estudantes, intelectuais e, denunciado, também o Rogério, o que me obrigou a uma clandestinidade sem ligação à direcção do PCP durante um ano.

Aluguei então um quarto independente no Bairro das colónias. Informei que era tradutor e que parte do tempo trabalhava em casa. Este quarto aguentou-se mais de um ano.

O jantar com a Srª Chica, o marido e a filha era o momento para “desconfinar”. Adiantava-me sempre à natural curiosidade dizendo que sou dali perto de Santarém, os meus pais fazem isto e aquilo, fui com uns amigos ver aquele filme que vai no Tivoli e por aí fora. Mentir, mentir para… lutar pela Verdade.

Tal como nos anteriores quartos ia conhecendo de forma directa a vida difícil do povo trabalhador.

Após porfiadas diligências consegui restabelecer a ligação à direcção do PCP. Propuseram-me a frequência de um curso em Moscovo.

Nesse curso conheci a Maria Machado, com 17 anos, um exemplar radioso do “marxismo-leninismo”, também clandestina e decidimos juntar os trapinhos ao regressarmos a Portugal. E assim em 1968 alugámos um apartamento no Bairro da Beneficência. Soubemos depois que estávamos na rua ao lado da casa de um dos mais odiados esbirros da PIDE. Mas não nos conhecíamos…

Agora com companheira, a clandestinidade era mais segura e mais suportável, em especial quando surgiram os filhos. Mas tinha de continuar a simular que saía para o trabalho e que regressava dele. Fazia ruido a sair e reentrava pé ante pé. Ao fim do dia saía sub-repticiamente e mostrava-me a “regressar do trabalho”. Conversava com os vizinhos o estritamente necessário para dar um ar natural deixando cair informações a respeito do meu trabalho, da família ou de acontecimentos do dia a dia, como se os tivesse a presenciado.

Nenhum dos camaradas que comigo actuavam sabiam o meu nome. E assim fui Carlos, Manuel, José e outros mais. Em casa, estudava minuciosamente a planta de Lisboa, todos os percursos que tinha de fazer - ruas pouco movimentadas - deixei de ver por dez anos o Rossio, o Chiado ou as grandes avenidas. No regresso a casa ou entre reuniões sucessivas, fazia um “corte”, para que quem me seguisse me perdesse. Descer umas escadinhas rapidamente, entre um táxi e outro, era um truque se estivesse a ser seguido por alguém de carro.

O “confinamento” tornou-se bastante mais radical quando a PIDE soube da minha situação e colocou a minha fotografia na TV e nos jornais.

Passei a sair para a minha actividade só à noite, deixei crescer a barba e passei a usar óculos sem graduação. No oculista disse que era para teatro.

Dez anos consecutivos de clandestinidade sem prisão aconteceu muito raramente. Houve também quem não resistisse ao “confinamento”, alguns foram transferidos para o estrangeiro para tratamento psiquiátrico ou emigraram.

Raimundo Narciso         

2020-05-05

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