A China faz o mesmo que o Banco Mundial, o FMI e os Estados Unidos?

09 de março 2024 - 14:21

A China não é pior que os outros credores, mas no fundamental também não se distingue deles, defende Eric Toussaint na terceira parte desta série de artigos sobre a China enquanto potência credora.

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Linha ferroviária queniana financiada pela China | Foto : Antony Trivet, CC, Pexels
Linha ferroviária queniana financiada pela China | Foto : Antony Trivet, CC, Pexels

Nos últimos três anos, os créditos da China e do FMI reduziram a escala e o número de incumprimentos do pagamento das dívidas? Trouxeram soluções?

Desde 2020, com a sucessão de choques externos (pandemia de coronavírus e os efeitos da guerra da Ucrânia, nomeadamente sobre o preço dos cereais, dos fertilizantes químicos e dos combustíveis), o número de países em dificuldades financeiras aumentou bastante. Isto só não produziu uma crise generalizada de pagamentos da dívida, porque o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a China multiplicaram os créditos de urgência ou reescalonaram os reembolsos. O FMI e a China não foram os únicos a fazê-lo mas são eles os principais intervenientes, dado o seu peso financeiro.

Isto permitiu oferecer soluções a curto prazo aos credores que, até à data, evitaram uma crise generalizada de pagamentos, mas não proporcionou quaisquer soluções estruturais. Pior ainda: no caso do FMI, este aproveitou para impor o aprofundamento de políticas neoliberais aplicadas há 40 anos: redução das despesas sociais, supressão de subsídios a produtos de primeira necessidade, aumento do IVA, mais privatizações, menos proteção aos produtores/as locais face aos produtos importados, etc. Tudo isto contribuiu para o agravamento das condições de vida de centenas de milhões de pessoas.

No caso da China, que não impõe este tipo de condicionalismos, o que é positivo, o adiamento dos prazos de pagamento não constitui uma solução de fundo, uma vez que o stock da dívida dos países «beneficiários» destes adiamentos continua a aumentar. Em certos casos a China obteve o controlo direto das infraestruturas – foi o caso de uma linha de caminho de ferro no Quénia e outra no Sri Lanka, e de uma concessão de exploração por 99 anos do porto de Hambantota [1].

A China inspirou-se no que os EUA fizeram nos anos 1980-1990 com os países da América Latina confrontados com uma grave crise da dívida?

Em muitos aspectos, a China recorreu às receitas utilizadas pelos Estados Unidos face à crise da dívida latino-americana a partir do início da década de 1980. A fim de proteger os interesses dos credores norte-americanos, em particular os bancos americanos, que eram os principais credores da América Latina, os EUA intervieram ativamente na reestruturação das dívidas, concedendo empréstimos de urgência aos países afetados, de modo que eles pudessem manter ou retomar os reembolsos aos bancos.

O Tesouro americano interveio com dinheiro público para salvar os credores privados norte-americanos, ou seja, os grandes bancos privados [2]. No caso da China, verificamos que o Banco Popular da China (o banco central Banco central chinês) concede cada vez mais empréstimos de urgência, para evitar o mais possível o descalabro dos credores públicos chineses em caso de incumprimento.

Contudo, há uma grande diferença entre a China e os EUA: no caso da China, a esmagadora maioria dos credores chineses é pública; no caso dos EUA e da crise dos anos 1980, os credores eram quase exclusivamente privados.

A quanto ascendem os empréstimos chineses em África?

Segundo Eugène Berg, ex-embaixador francês na Namíbia e no Botsuana, «Entre 2000 e 2018, cinquenta dos 54 países africanos receberam da China um total de 132 mil milhões de dólares, dos quais 80% provenientes do Ex-Im Bank of China e do China Development Bank (CDB), sob diversas formas. Em 2018, a China detinha quase 21% da dívida pública externa pendente do continente, com uma grande proporção desses empréstimos a financiar infraestruturas de relevância questionável» (fonte: Eugène Berg, «La percée chinoise en Afrique a des effets délétères», 31 de dezembro de 2021).

A agência chinesa Xinhua fornece números diferentes, inferiores, no que diz respeito ao volume dos empréstimos chineses: «Um relatório publicado em julho passado pela ONG britânica Debt Justice mostra que 12% da dívida externa dos países africanos é detida por credores chineses, contra 35% de credores ocidentais privados, enquanto a taxa de juro média desses credores privados é de 5%, contra 2,7% dos credores públicos e privados chineses» (fonte: Xinhua, «Des faits clés sur la dette africaine que les Etats-Unis ignorent délibérément», 7/02/2023).

O peso da China como credor dos países africanos é relativizado em um relatório da Debt Justice

Um relatório da Debt Justice com data de julho de 2022 [3], apoiado na base de dados do Banco Mundial, relativiza o lugar da China e a sua diabolização como credor dos países africanos.

A China tem um peso muito menor que os credores privados no endividamento do continente africano. Em 2022, estes detinham 35% da dívida externa dos países africanos, contra «apenas» 12% para a China (este número inclui os credores públicos e privados chineses). Por seu lado, os credores multilaterais (principalmente o Banco Mundial e o FMI) representavam 39% da dívida externa pública desses países. Por outro lado, segundo a Debt Justice, a China pratica, em média, uma taxa de juro de 2,7% sobre os empréstimos aos países africanos, contra 5% no caso dos credores privados. Veremos mais adiante que neste aspeto o relatório da Debt Justice se engana, pois uma parte dos créditos chineses tem taxas mais elevadas.

Da mesma forma, mais de um terço do serviço da dívida externa dos países africanos no período 2022-2028 é devida aos credores privados, contra 19% para os credores chineses, que no entanto se fazem reembolsar, durante esse período, a totalidade do stock da dívida externa que lhes era devida em finais de 2020. Também neste caso é preciso notar que os montantes que deveriam ser reembolsados à China até 2028 são mais elevados do que previam o Banco Mundial e a Debt Justice. De facto, uma grande parte dos créditos chineses tem taxas de juro variáveis, geralmente indexadas ao Libor, e, com a subida brutal das taxas de juro desde 2022 (provocada pela decisão unilateral da Reserva Federal dos EUA, pelo BCE e pelo Banco de Inglaterra), as taxas a que os países africanos têm de reembolsar a China aumentaram muito (ver mais adiante).

Para apurar a sua análise, Debt Justice debruçou-se sobre os 15 países que gastam mais de 15% dos seus rendimentos no reembolso da sua dívida externa, os que estão mais endividados. Entre esses países, a quota da China nos reembolsos é mais uma vez bastante inferior à parte correspondente aos credores privados no período 2022-2028.

No entanto, o autor faz notar que mais de um terço do serviço da dívida externa de Angola, Camarões, República Democrática do Congo, Djibuti, Etiópia e Zâmbia, durante esse período, é devido a credores chineses. Por exemplo, entre 2022 e 2028, 59% do serviço da dívida externa de Angola e 45% do serviço da dívida externa da Etiópia são devidos à China.

Em suma, segundo este relatório, é preciso relativizar o lugar da China como credora em África. Os credores maioritários da dívida externa pública africana são ocidentais. Neste aspeto, a Debt Justice tem toda a razão.

Quais são as consequências de a China emprestar a taxas variáveis?

Uma parte significativa dos créditos concedidos pela China tem taxas de juro variáveis, correspondente ao Libor, a que acrescem 2 a 3% suplementares. Isto dá hoje em dia entre 7 e 9% de taxa de juro

De facto, ao longo dos últimos anos, cada vez mais empréstimos são concedidos a taxas variáveis. Os contratos chineses a taxas variáveis adotam o índice chamado Libor (London Interbank Offered Rate) que foi posto em prática pelos grandes bancos privados nos anos 1970. assinale-se que, durante a crise da dívida do Terceiro Mundo na década de 1980, uma das causas da crise foi a decisão da Reserva Federal dos EUA de aumentar radicalmente as taxas, o que se repercutiu num aumento radical do Libor, que servia de índice aos créditos bancários a taxas variáveis concedidos pelos bancos privados do Norte aos países ditos do Terceiro Mundo.

De certa maneira, assistimos agora ao mesmo fenómeno. Os créditos a taxas variáveis concedidos pela China desde o lançamento do projeto Nova Rota da Seda (BRI em inglês) foram acordados quando o Libor estava próximo de zero, pois correspondia às taxas praticadas pelo banco central dos EUA, pelo Banco Central da Europa e pelo Banco de Inglaterra entre 2012 e 2022. Depois da decisão unilateral desses três grandes bancos centrais de subirem as suas taxas, indo até aos 5,5% no caso da Reserva Federal dos EUA e Banco de Inglaterra, o Libor passou de 0 a mais de 5%. Ver gráfico abaixo.

Gráfico 9: Evolução do Libor entre 1999 e 2024

Fonte: https://www.global-rates.com/fr/taux-de-interets/libor/

Parte significativa dos empréstimos concedidos pela China indica que a taxa de juro variável corresponde ao Libor, ao qual acrescem 2 a 4% suplementares. É o caso, por exemplo, de um crédito do China Ex-Im Bank nos Camarões, concedido em 2014. O contrato prevê que a taxa de juro segue o Libor, acrescida de 3 a 4%. Significa isto, hoje em dia, se esta cláusula do contrato for aplicada, uma taxa de 8 a 9%, visto que o Libor está a mais de 5%.

Outro crédito concedido aos Camarões, neste caso pelo China Development Bank, prevê que a taxa variável corresponda ao Libor, acrescida de 2 a 3%. Um terceiro crédito aos Camarões, proveniente do banco público chinês ICBC, prevê uma taxa correspondente ao Libor mais 1 a 4%.

A China não é a única a adotar taxas variáveis e o Libor como referência. É o caso, por exemplo, do Export Credit Bank da Turquia, que também concedeu um crédito aos Camarões com uma taxa de juro indexada ao Libor, mais 4%. É também o caso do crédito concedido pela International Islamic Trade Finance Corporation, que prevê a taxa Libor mais 3%. situação similar em um crédito cedido aos Camarões pelo banco privado CommerzBank AG Paris que prevê que a taxa seja a do Libor, mais 1,6%.

Outros credores indexam as taxas de juro ao índice chamado Euribor. No caso dos Camarões, foi o que aconteceu com a Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD), que prevê que a taxa seja a do Euribor mais uma margem que não foi tornada pública. Note-se que no caso deste crédito a AFD impôs aos Camarões uma cláusula equivalente à que explicámos mais acima no caso da China, ou seja, a criação de uma conta na qual é depositada uma parte das receitas geradas pelo projecto e da qual a AFD pode sacar em caso de suspensão do pagamento.

Voltando ao índice Euribor, no caso dos Camarões, ele é utilizado pelo Banco Africano de Desenvolvimento (BAD), que prevê o Euribor mais 0,6%, pelo Banco Mundial (BIRD), que prevê o Euribor mais 1,3%, e pelo banco privado Deutsche Bank, que prevê o Euribor mais 3,05%. O recurso ao Euribor como índice tem as mesmas consequências da utilização do Libor, como se vê no gráfico abaixo.

Gráfico 10: Evolução do Euribor entre 1999 e 2024

Fonte: https://www.euribor-rates.eu/fr/graphiques-euribor/

Estes dois gráficos mostram claramente que durante o período do chamado de quantitative easing, as taxas Libor e Euribor rondavam os 0% e que a partir de 2022 o aumento é forte e súbito.

A China não é responsável pelo aumento brutal das taxas. A responsabilidade cabe unicamente aos bancos centrais dos EUA, da Zona Euro e da Inglaterra

Sublinhe-se que a China não é responsável pelo aumento brutal das taxas. A responsabilidade cabe unicamente aos bancos centrais dos EUA, da Zona Euro e da Inglaterra. Mas não podemos deixar de lastimar e criticar que a China tenha decidido adoptar o Libor e o princípio das taxas variáveis, quando já se sabia as consequências, desde a precedente crise de 1980; além disso o Libor foi alvo de manipulações aquando da crise financeira de 2008-2010, donde resultou a multa aplicada a diversos bancos que congeminaram entre eles essa taxa.

É fundamental saber se a China, face aos efeitos catastróficos do aumento do Libor, irá rever a aplicação dos contratos, a fim de atenuar radicalmente o impacto dessa subida. Até à data, não surgiu nenhum anúncio oficial de a China deixar de exigir o aumento das taxas.

O FMI e o Banco Mundial apelam à China para que desempenhe um papel mais ativo na reestruturação da dívida. Que se passa?

A crescente importância da China como credor de primeira ordem modificou radicalmente a relação de forças entre credores. Até aos anos 2010, no que diz respeito aos países pobres, em caso de acordo entre o FMI, o Banco Mundial e o Clube de Paris, era difícil um país pobre encontrar uma fonte financeira alternativa, e não havia nenhum governo do Sul, à exceção do de Cuba, que tivesse a coragem de suspender unilateralmente os pagamentos. É certo que o governo do Equador suspendeu o pagamento de uma parte da sua dívida e impôs aos credores uma grande redução da mesma [4], mas aí estavam em causa dívidas detidas por credores privados e não as do Banco Mundial, do FMI ou do Clube de Paris.

A partir dos anos 2010, o crescimento vertiginoso dos créditos chineses modificou as relações entre credores. A China foi ocupando um lugar cada vez mais importante em um número significativo de países e em certos casos suplantou os credores tradicionais, como as antigas potências coloniais (França, Grã-Bretanha, Bélgica, Japão, Espanha, etc.), e outras grandes potências imperialistas, como os EUA e a Alemanha, ou o Banco Mundial e o FMI.

Os EUA dispõem de 16,5% dos direitos de voto no FMI e de 15,51% no Banco Mundial, ao passo que a China apenas dispõe de 6,08% dos direitos de voto no FMI e de 5,92% no Banco Mundial

A China não faz parte do Clube de Paris. E embora seja membro do FMI e do Banco Mundial, os EUA e seus aliados impedem-na de satisfazer o seu legítimo direito de obter um aumento do direito de voto proporcional ao peso da sua economia. Recordemos que os EUA dispõem de 16,5% dos direitos de voto no FMI e de 15,51% dos direitos de voto no Banco Mundial, ao passo que a China apenas dispõe de 6,08% dos direitos de voto no FMI e de 5,92% no Banco Mundial [5]. Por consequência, a China, como é compreensível, não concorda em vergar-se aos acordos realizados entre o Clube de Paris e as duas instituições de Bretton Woods, sendo os três dominados pelos EUA e as potências europeias ocidentais. Prefere negociar de maneira bilateral e separadamente com cada um dos países endividados. As críticas que os/as dirigentes do Banco Mundial e do FMI endereçam à China, acusando-a de egoísmo, têm fraca credibilidade, já que estas duas instituições recusam sistematicamente que, no caso de acordo para a anulação de dívidas, esse acordo se aplique aos créditos que detêm sobre os países em causa. De facto, o Banco Mundial e o FMI não anulam dívidas. Criam um fundo específico financiado por um certo número de países, geralmente os mais ricos, ao qual vão buscar dinheiro para se reembolsar [6]. Do lado do Cube de Paris, as críticas em relação à China não são mais fundamentadas que as do FMI e do Banco Mundial, dado que negoceia com cada país endividado separadamente, à semelhança da China.

Apesar de ter criticado a má-fé dos dirigentes do FMI, do Banco Mundial e do Clube de Paris em relação à China, no seu comportamento, convém notar que, no fundamental, a China não se distingue dos outros credores. A China mostrou ser um credor capaz de fixar as condições que lhe convêm. Com isso mudou a relação de forças entre os credores. Mas não alterou a relação de forças entre o credores e os países endividados. Situa-se no mesmo campo dos outros credores e pretende ver os seus interesses tão respeitados como os EUA e outras grandes potências. Poderia tomar partido pelos povos do Sul Global e dar o exemplo, concedendo anulações de dívida, praticando uma política transparente nos seus contratos, e recusando a disciplina ou as políticas nefastas impostas pelo Banco Mundial e pelo FMI. Ora, com toda a regularidade, a China exige que os países que lhe são devedores respeitem os condicionalismos e as políticas impostas pelo FMI e pelo Banco Mundial. Não os impões ela própria, mas dá-lhes apoio.

Em suma, a China não é pior que os outros credores, mas no fundamental também não se distingue deles.


O autor agradece a Gilbert Achcar, Maxime Perriot e Claude Quémar pela pesquisa de documentos e revisão.

Traduzido Rui Viana Pereira. Publicado originalmente no CADTM.

Notas

[1] Pierre-François Grenson, «RDC, Burundi, Angola, Sri Lanka: Quatre exemples pour comprendre la présence chinoise en Afrique et en Asie», CADTM, 21 juin 2023, 21718.

[2] Ver Éric Toussaint, «O Banco Mundial e o FMI: As agências financeiras dos credores», 14/08/2020, 17555, ou o cap. 15 do livro História Crítica do Banco Mundial, Ed. Movimento, Brasil, 2022.

[3] Debt Justice, «The growing debt crisis in lower income countries and cuts in public spending», julho/2022.

[4] Ver Éric Toussaint, «En 2007-2008, l’Équateur a osé dire “non” aux créanciers et a remporté une victoire», 15/03/2015, 11383. Ver também os vídeos: «Équateur: Historique de l’audit de la dette réalisée en 2007-2008. Pourquoi est-ce une victoire ? (vidéo de 14 minutes)», 8/11/2016, 14179 e «Vidéo: L’audit de la dette en Équateur résumé en 7 minutes», 27/11/2015, 12626.

[5] Mais informações em CADTM, «ABC do Fundo Monetário Internacional (FMI)», 31/10/2023, 18431 e CADTM, «ABC do Banco Mundial», 28/10/2022, 18085.

[6] Ouvir: «A propos de la prétendue annulation de dettes, Éric Toussaint interviewé par la BBC dénonce les effets d’annonce de Macron et du FMI», publicado em 16/04/2020, 18403