Perguntas e respostas sobre a China como potência credora de primeira ordem (parte 2)

03 de março 2024 - 16:33

Nesta segunda parte, Eric Toussaint explica que entidades chinesas concedem empréstimos internacionais, para que tipo de projetos, se são mais vantajosos do que outros ou se são um veiculo para estender a sua influência, entre outras questões.

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Construção chinesa em África. Em Nerok, Quénia. Junho de 2018. Foto de Kandukuru Nagarjun/Wikimedia Commons.
Construção chinesa em África. Em Nerok, Quénia. Junho de 2018. Foto de Kandukuru Nagarjun/Wikimedia Commons.

Quais são as principais entidades chinesas que concedem empréstimos?

A China empresta através de várias instituições públicas [1]: os seus bancos públicos estratégicos (China Development Bank e China Eximbank) e também utiliza cada vez mais os recursos do banco central (People’s Bank of China) e os bancos comerciais estatais (como o Industrial and Commercial Bank of China, o Bank of China e o China Construction Bank). Isto é complementado por empréstimos conjuntos. Nos empréstimos conjuntos, os bancos estatais chineses emprestam em conjunto com bancos ocidentais privados, como o banco francês BNP-Paribas ou o banco britânico Standard Chartered Bank, e/ou com a Corporação Financeira Internacional (IFC), que faz parte do Banco Mundial, ou com o Banco Europeu para Reconstrução e Desenvolvimento (BERD)… [2].

Deve-se observar também que as entidades públicas chinesas estão a comprar dívidas dos países do Sul no mercado secundário através de fundos de investimento como o BlackRock, Pimco, AllianceBernstein, Fidelity Investments e Amundi Asset Management [3].

Para quais tipos de projetos os empréstimos são concedidos?

Inicialmente, a maioria dos empréstimos chineses foi destinada a projetos de infraestrutura: estradas e autoestradas, pontes, aeroportos, ferrovias, portos marítimos, represas hidráulicas e centrais de energia, centrais a carvão etc.

De acordo com uma notícia da agência de notícias oficial chinesa Xinhua, publicada em 7 de fevereiro de 2023: «Desde a criação do Fórum de Cooperação China-África (FOCAC), há 23 anos, as empresas chinesas construíram ou modernizaram mais de 10.000 km de ferrovias, quase 100.000 km de estradas, cerca de 1.000 pontes e 100 portos, além de vários hospitais e escolas na África.» Fonte: Xinhua, « Des faits clés sur la dette africaine que les États-Unis ignorent délibérément », 7/02/2023.

O objetivo é claramente fortalecer a capacidade dos países africanos que recebem créditos chineses de explorar os seus recursos naturais e exportá-los com pouco ou nenhum processamento.

É impressionante notar que, neste artigo da agência chinesa, o foco está na infraestrutura ligada ao modelo de exportação extrativista. O artigo menciona, por exemplo, «1.000 pontes e 100 portos», enquanto acrescenta «vários hospitais e escolas». A desproporção é óbvia. Fica muito claro onde estão as prioridades.

No mesmo artigo e na mesma linha, encontramos esta passagem: «Quando altos funcionários americanos pisam [depois dos seus aviões pousarem, nota de Eric T.] uma manga de desembarque em África provavelmente estão a ir para um terminal construído por uma empresa chinesa. E os seus carros também estão a andar numa estrada ou ponte construída por um fabricante chinês… É possível encontrar infraestrutura moderna construída pela China em quase todo o continente». A agência chinesa não considerou interessante destacar laboratórios farmacêuticos, hospitais, universidades ou fábricas de produtos manufaturados de alto valor agregado construídos pela China. Isso não se deve ao facto de os créditos chineses excluírem totalmente este tipo de investimento – seria um exagero dizer isso –, mas sim ao facto de não ser uma prioridade. Este tipo de projeto é muito minoritário.

O que se aplica a África também se aplica aos países da América Latina e da Ásia. A África Subsariana é vista pelos decisores políticos chineses como um território do qual as matérias-primas são extraídas e enviadas sem processamento para a China ou para outros países consumidores. Isto perpetua o papel atribuído à África na economia mundial pelas potências imperialistas tradicionais: uma fonte de matérias-primas baratas produzidas por mão-de-obra muito mal paga. A China está a reproduzir o tipo de política que as potências capitalistas ocidentais e instituições como o Banco Mundial e o FMI têm vindo a adotar na África.

Os empréstimos chineses são concedidos em condições financeiras mais vantajosas do que os empréstimos concedidos por outros credores?

Depende. Em todo o caso, ao contrário do que afirmam vários autores, as taxas cobradas pela China não são o dobro das taxas dos empréstimos concedidos pelo FMI e pelo Banco Mundial. As taxas de empréstimo do FMI variam de um mínimo de 4% a frequentemente até 8% devido às sobretaxas do FMI [4]. As taxas cobradas pelo Banco Mundial, com exceção do seu braço de empréstimos concessionais, a AID, ficam em torno de 6% a 8%. As taxas chinesas são da mesma ordem de grandeza, embora algumas sejam concedidas a uma taxa concessional de pouco menos de 3%. Em comparação com as taxas cobradas pelos credores privados nos mercados financeiros durante os cerca de dez anos de flexibilização quantitativa, de 2012 a 2022, as taxas chinesas eram iguais ou ligeiramente mais altas. De 2022 em diante, quando o Fed, o BCE e o Banco da Inglaterra abandonaram esta política em favor do aperto quantitativo, as taxas subiram acentuadamente. A proporção de empréstimos chineses concedidos a uma taxa fixa está, portanto, numa taxa mais baixa do que a taxa de mercado. Entretanto, uma proporção significativa dos empréstimos chineses é concedida a taxas variáveis e, neste caso, segue a tendência das taxas ditadas pelos bancos centrais ocidentais (ver abaixo).

Há três fatores principais que tornam os empréstimos chineses atraentes:

1. Eles não estão vinculados às condicionalidades geralmente impostas pelo FMI e pelo Banco Mundial e apoiados pela maioria dos credores bilaterais agrupados no Clube de Paris.

2. Eles são uma fonte complementar de financiamento para outros credores, permitindo que eles concorram entre si.

3. Os empréstimos chineses vêm com períodos de carência que variam de cinco a sete anos, permitindo que o país inicie os pagamentos somente após este período. Isto é muito prático para um governo em exercício no caso de uma alternância de governo no poder, pois os pagamentos só começam no final da legislatura ou no início da legislatura da força política alternada.

Se as taxas cobradas pela China não são tão diferentes das de outros credores, há algum fator adicional na decisão de recorrer aos empréstimos chineses?

O prazo de execução dos projetos financiados a crédito pela China é muito menor do que o dos projetos financiados pelo Banco Mundial ou pelos credores do Clube de Paris. Em termos concretos, uma estrada, uma ponte ou um aeroporto financiados a crédito pelos chineses serão concluídos num tempo muito menor do que o mesmo tipo de projeto financiado por outros.

A China estabelece outras condições além daquelas impostas pelo FMI e pelo Banco Mundial? Os empréstimos chineses são um meio de exercer soft power, aumentando sua influência?

Está claro que a China, em contrapartida dos créditos que concede, espera que um governo adote uma política nas relações internacionais que seja favorável à China ou, pelo menos, não hostil à China. Graças aos seus créditos, a China convenceu vários países a deixarem de reconhecer Taiwan como um estado independente e fecharem a embaixada taiwanesa em seu território. Em África, apenas Eswatini ainda reconhece Taiwan. De acordo com a AidData, quanto mais dinheiro um país recebe da China, maior a probabilidade de ele votar com a China na Assembleia Geral das Nações Unidas (consulte o relatório da AidData citado acima, p. 29, e o gráfico 1.16, p. 31 ). A China está claramente a exercer soft power através da sua política de empréstimos.

Em quais moedas os empréstimos chineses são concedidos?

Durante um período, a China reciclou as suas enormes reservas de dólares usando-as na forma de empréstimos externos e também as usou para adquirir empresas no exterior. Desde 2013/2014, a China reduziu os seus empréstimos bilaterais de longo prazo denominados em dólares para mutuários soberanos e aumentou os seus empréstimos de curto e médio prazo denominados em Renminbi (RMB)/Yuan. Isto é mostrado no gráfico 7.

Gráfico 7: Composição da carteira de empréstimos da China por moeda. Percentagem dos compromissos de empréstimos do setor público da China (em dólares constantes de 2021) para países de rendimento baixo e médio

AidData, “Belt and Road Reboot: Beijing’s Bid to De-Risk Its Global Infrastructure Initiative”, Novembro de 2023, capítulo 2.

Tradução do gráfico:

Early BRI : Primeiro período das Novas Rotas da Seda

Late BRI : Segundo período das Novas Rotas da Seda

RMB : Renminbi

USD : Dolares US

Other : Outras (incluindo o euro, a libra esterlina e as moedas locais dos países de renda baixa ou intermediária)

Como a China financia os empréstimos que concede?

Ao contrário do Banco Mundial, a China não financia os seus empréstimos tomando empréstimos nos mercados internacionais. Conforme mencionado acima, ela utiliza parte das suas colossais reservas de dólares para conceder empréstimos. A China também é credora dos Estados Unidos, detendo oficialmente pouco menos de 1.000 bilhões de dólares na forma de títulos do Tesouro dos EUA.

E quando, como acontece na maioria das vezes, a China empresta na sua própria moeda, ela não tem dificuldade em fazê-lo – basta imprimir dinheiro ou abrir uma linha de crédito.

Além dos empréstimos para projetos de infraestrutura etc., é verdade que a China concede empréstimos de emergência?

Sim, a China concede uma quantidade significativa de empréstimos de emergência para ajudar os países endividados a continuar a pagar à China e também ao FMI (ver abaixo sobre o FMI). Isto é mostrado no gráfico 8.

Gráfico 8: Comparação da carteira de empréstimos da China por instrumentos financeiros Percentagem dos empréstimos do setor público da China para países de renda baixa e média

Gráfico proveniente do capítulo 2 do relatório do AidData de novembro de 2023.

Tradução do gráfico: 

Emergency lending: Empréstimos de emergência

Infrastructure projet lending: Empréstimos para financiamento de projetos de infraestrutura

Early BRI: Primeiro período das Novas Rotas da Seda

Late BRI: Segundo período das Novas Rotas da Seda

Other: Outros

Em 2013, um ano antes do primeiro ano de implementação total da Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI), os empréstimos de assistência de emergência representavam apenas 5% dos empréstimos da China no exterior para países de baixo e médio rendimento. Até 2021, os empréstimos de assistência de emergência representam 58% dos empréstimos da China para essa categoria de países. Isto é mostrado no gráfico 8. O Banco Popular da China (PBOC) – o banco central da China – é, de longe, o maior financiador das operações internacionais de empréstimo de ajuda emergência, o que explica porque ele se tornou gradualmente uma parte dominante do portfólio de empréstimos de Pequim. Em março de 2023, uma equipa de investigadores da AidData, do Banco Mundial, da Harvard Kennedy School e do Kiel Institute for the World Economy publicou um estudo que explica por que Pequim realizou operações de empréstimo de assistência no valor de quase 250 bilhões de dólares em 22 países (Fonte: Horn, Sebastian, Bradley C. Parks, Carmen M. Reinhart e Christoph Trebesch. 2023a. China as an International Lender of Last Resort. Documento de trabalho do NBER nº 31105. Cambridge, MA: NBER).

Eles constatam que a maioria destas operações ocorreu em países participantes da iniciativa do BIS e com altos níveis de dívida pendente (projetos de infraestrutura) com bancos e empresas chinesas. Eles também constatam que os resgates de Pequim são direcionados a tomadores de empréstimos governamentais em dificuldades, em momentos em que as suas reservas cambiais estão baixas e as suas classificações de crédito são más [5].

De acordo com o relatório da AidData publicado em novembro de 2023, a China está a desempenhar um papel desconhecido e desconfortável para ela: o de maior cobrador oficial de dívidas do mundo. 55% dos seus empréstimos a países de baixo e médio rendimento já entraram no período de reembolso do principal, e este número aumentará para 75% até 2030. O total da dívida pendente – incluindo o principal, mas excluindo os juros – por parte dos países em desenvolvimento mutuários é de pelo menos 1.100 bilhões de dólares e, possivelmente, de até 1.500 bilhões de dólares (em dólares nominais). Pequim está a encontrar o seu lugar como organismo internacional de cobrança de dívidas num momento em que muitos dos seus maiores tomadores de empréstimos estão a a enfrentar graves problemas de liquidez ou estão insolventes. A AidData estima que 80% da carteira de empréstimos da China aos países em desenvolvimento corresponde a países com dificuldades financeiras. Os atrasos nos pagamentos de empréstimos à China estão a aumentar – tanto em termos absolutos quanto em proporção ao total de pagamentos de empréstimos em atraso aos credores oficiais (ou seja, bilaterais e multilaterais).

Entre os créditos de emergência, como caracterizar as linhas de crédito de swap?

Trata-se para a China de oferecer a possibilidade de ter acesso a uma linha de crédito em caso de necessidade. A Argentina é um exemplo disso. A Argentina, que deve mais de 40 bilhões de dólares ao FMI e está cruelmente com poucas reservas em dólares, usa a linha de crédito com a China para tomar emprestada uma grande quantidade de renminbi (RMB), para conseguir pagar ao Fundo Monetário Internacional dentro do prazo. Isto é possível porque a moeda chinesa é uma das cinco moedas em que o FMI aceita o pagamento (dólares, euros, libras esterlinas, ienes japoneses e renminbi). Recorde-se que durante a crise bancária e financeira de 2007-2008, quando esta se espalhou dos Estados Unidos para os principais bancos privados da Europa, o Federal Reserve (FED) dos EUA permitiu que o Banco Central Europeu usasse esse tipo de swap para obter dólares e fornecê-los aos bancos privados da Europa, que, de outra forma, corriam o risco de falência. Isto, por sua vez, teria levado a outras falências de grandes bancos nos Estados Unidos.

Pelo menos 17 países usaram os swaps oferecidos pelos chineses. Isto é significativo, mas cuidado: os empréstimos de emergênca concedidos pelo FMI são de maiores volumes do que os concedidos pela China.

Os contratos assinados com a China e as suas instituições de empréstimo são transparentes?

A China está a comportar-se como a maioria dos credores, impondo cláusulas de confidencialidade aos governos e entidades que recorrem aos seus créditos. Enquanto há cerca de vinte anos certos contratos eram públicos, a China agora está claramente a exigir sigilo sobre as condições sob as quais os seus empréstimos são concedidos. Embora deva ser possível exercer o direito à informação para que os cidadãos possam formar uma opinião tanto sobre os termos do contrato quanto sobre a relevância e a qualidade dos projetos e políticas apoiados pelos empréstimos chineses, o sigilo imposto pelos credores chineses é um obstáculo que os movimentos sociais e os representantes eleitos devem tentar superar. Esta política de sigilo aplicada pela China não é excecional, pois outros credores praticam-na há muito tempo. No entanto, isso não deve, de forma alguma, justificar os obstáculos colocados no caminho do direito a uma auditoria.

É verdade que a China pode recorrer a uma conta de depósito de garantia para se reembolsar em caso de não cumprimento de um prazo de pagamento?

Sim. Nos últimos 10 anos, a China tem exigido que as autoridades públicas dos países que recebem créditos abram uma conta específica na qual devem depositar o equivalente a uma ou mais parcelas de reembolso. Em alguns casos, essa conta é alimentada por parte da receita gerada pelo projeto financiado pela China. Em caso de atraso no pagamento, a China tem o direito de sacar unilateralmente essa conta para se reembolsar.

Outros credores impõem as mesmas condições, mas parece que a China usa esse procedimento com muito mais frequência.


Texto originalmente publicado pelo CADTM. Traduzido por Alain Geffrouais. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.


Notas:

[1] É possível que, nos últimos três ou quatro anos, algumas empresas privadas chinesas que investiram no exterior tenham concedido créditos, mas isso é, de facto, marginal.

[2] De acordo com o relatório da AidData publicado em novembro de 2023, a maior parte do volume de empréstimos não urgentes da China nos países com rendimento baixo ou intermediário é concedida através de acordos de empréstimos sindicalizados – e mais de 80% destes acordos envolvem bancos comerciais ocidentais e instituições multilaterais. Fonte: Ponto 3 do Resumo Executivo: Quelles mesures Pékin a-t-il prises pour réduire son exposition aux dettes en difficulté dans les pays en développement?)

[3] Ver AidData, novembro de 2023, capítulo 2, quadro sobre SAFE: «o SAFE abriu um escritório na Quinta Avenida em Nova Iorque em 2013 e, pouco tempo depois, tornou-se um segredo de Polichinelo entre os maiores gestores de ativos do mundo – como PIMCO e BlackRock – que o SAFE era um dos seus clientes confidenciais mais importantes”.

[4] Maxime Perriot, «Surcharges ou surtaxes du FMI : Comment le Fonds monétaire international s’enrichit sur le dos des pays les plus en difficultés dans l’opacité la plus totale», CADTM, 19 de dezembro de 2023.

[5] Em 2013, um ano antes do primeiro ano completo de implementação da BRI, os empréstimos de resgate de emergência representavam apenas 5% dos empréstimos da China no exterior para LICs e MICs. Em 2021, 58% dos empréstimos da China no exterior para LICs e MICs consistiam em empréstimos de resgate de emergência. O Banco Popular da China (PBOC) – o banco central da China – é, de longe, o financiador mais importante das operações internacionais de empréstimos de resgate de emergência, o que explica o facto de ter assumido um papel dominante na carteira de empréstimos de Pequim para PBRs e PMIs em 2020. Em março de 2023, uma equipa de investigadores do AidData, do Banco Mundial, da Harvard Kennedy School e do Kiel Institute for the World Economy publicou um estudo que explica porque Pequim realizou operações de empréstimo de resgate no valor de quase 250 bilhões de dólares em 22 países (Horn et al. 2023a). Eles constatam que a maioria destas operações ocorreu em países participantes da BRI com altos níveis de dívida pendente (projetos de infraestrutura) com bancos e empresas chinesas. Eles também constatam que os resgates de Pequim são direcionados a tomadores de empréstimos governamentais em dificuldades nos momentos em que os seus níveis de reservas cambiais são baixos e as suas classificações de crédito são fracas. Fonte: Horn, Sebastian, Bradley C. Parks, Carmen M. Reinhart e Christoph Trebesch. 2023a. China as an International Lender of Last Resort. Documento de trabalho do NBER nº 31105. Cambridge, MA:NBER.

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