Israel

Chefe da Mossad perseguiu e ameaçou procuradora do TPI

28 de maio 2024 - 15:31

Yossi Cohen, aliado de Netanyahu e por este nomeado chefe dos serviços secretos israelitas, tentou sem sucesso que Fatou Bensouda não levasse por diante o processo sobre os crimes de guerra que agora resultaram no pedido de mandados de detenção para o primeiro-ministro e o ministro da Defesa de Israel.

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Netanyahu, Bensouda e Cohen
Netanyahu, Bensouda e Cohen.

Uma investigação do jornal britânico Guardian em colaboração com os sites israelo-palestinianos +972 e Local Call revela os contornos de uma guerra secreta de Israel contra o Tribunal Penal Internacional (TPI) ao longo da última década. Os protagonistas são o então chefe da Mossad, Yossi Cohen, e a procuradora Fatou Bensouda, a responsável pela abertura da investigação aos crimes da ocupação israelita e que em 2021 terminou o seu mandato naquele tribunal. Para o seu lugar foi escolhido Karim Khan, o procurador do TPI que na semana passada anunciou o pedido de mandados de detenção contra os dois governantes israelitas e três líderes do Hamas por suspeitas de vários crimes de guerra e contra a humanidade.

Foi em 2015 que Fatou Bensouda abriu um inquérito preliminar ao que se passava na Palestina, provocando reação imediata em Telavive, onde o governo temia que militares e civis pudessem acabar acusados pelas suas ações nos territórios ocupados, apesar de o Estado israelita desde sempre se recusar a aceitar a jurisdição daquele tribunal. Tanto a procuradora-chefe do TPI como a sua equipa depressa receberam avisos de que o seu trabalho estava na mira dos serviços de informações de Israel. Segundo duas fontes desta investigação, havia mesmo a suspeita de infiltrações dentro do gabinete da procuradora.

Antes de ser nomeado por Netanyahu para liderar a Mossad em 2016, Cohen tinha presidido desde 2013 ao conselho de segurança nacional israelita, onde supervisionou o trabalho da equipa oriunda de várias agências encarregue de impedir o avanço da investigação do TPI. O primeiro contacto direto com a procuradora ocorreu em 2017 numa conferência em Munique e foi apenas de apresentação e troca de cumprimentos. O encontro seguinte foi mais inesperado e com contornos de filme de espionagem, numa suite de um hotel em Nova Iorque onde Fatouda e a sua equipa iam reunir com o então presidente da República Democrática do Congo, Joseph Kabila a propósito de outra investigação em curso sobre crimes cometidos naquele país. Segundo a investigação, o encontro era afinal uma cilada e depois de os membros do staff de Bensouda terem sido convidados a sair da sala, quem apareceu foi Yossi Cohen.

A partir desse encontro inusitado, o chefe da Mossad telefonou com insistência para o número privado da procuradora e tentou marcar encontros. As fontes da investigação dizem que ao início Cohen se comportava como o “polícia bom”, procurando estabelecer uma relação de cooperação com ela. Mas depressa os contactos evoluíram para táticas que incluíram “ameaças e manipulação”, que tiveram o ponto alto a partir de dezembro de 2019, quando Fatou Bensouda anunciou ter indícios que levariam à abertura de uma investigação completa aos alegados crimes de guerra em Gaza.

No ano seguinte, os encontros promovidos por Cohen serviram para o chefe da espionagem israelita levantar preocupações sobre a segurança da procuradora e da sua família, mostrando-lhe fotografias de viagens com o marido tiradas sem o seu conhecimento e sugerindo que a abertura da investigação lhe prejudicaria a carreira. Ao mesmo tempo começaram a circular rumores nos meios diplomáticos alegadamente comprometedores para o seu marido, que trabalha como consultor em assuntos internacionais. Esses rumores acabaram por não surtir efeito no trabalho da procuradora, que no entanto foi alvo de sanções da administração Trump, em retaliação contra outra investigação sobre os crimes dos talibãs e das tropas dos EUA no Afeganistão. O então chefe da diplomacia norte-americana, Mike Pompeo, chegou a acusar a procuradora de estar “envolvida em atos de corrupção para benefício pessoal”, sem no entanto apresentar provas, meses depois de afirmar que a investigação do TPI sobre os crimes de Israel era motivada politicamente.

Com a chegada de Biden à Casa Branca, as sanções contra a procuradora foram levantadas e em fevereiro de 2021 o TPI decidiu finalmente abrir a investigação criminal, após ter concluído que tinha jurisdição sobre os territórios ocupados na Palestina. Três meses depois Fatou Bensouda concluía o seu mandato no TPI, deixando a investigação ao seu sucessor. A operação montada pelo governo de Netanyahu contra o tribunal tinha fracassado o seu principal objetivo. Mas no anúncio do pedido de mandados de detenção, Karim Khan deu a entender que as interferências israelitas no trabalho do tribunal não terminaram em 2021. “Reitero que todas as tentativas de impedir, intimidar ou influenciar indevidamente os funcionários deste Tribunal devem cessar imediatamente. O meu Gabinete não hesitará em atuar nos termos do artigo 70º do Estatuto de Roma se tal conduta continuar”, escreveu o procurador na decisão agora publicada.