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Cenários para depois de uma batalha

O que fizer o governo de coligação PSOE-UP marcará duradouramente a política espanhola. As direitas não tardarão a disputar a rua e tenderão a aproveitar cada contradição e fraqueza para encurralar um governo que já nasceu com dificuldades. Por Manuel Monereo.
Pedro Sánchez e Pablo Iglesias assinando o acordo de coligação entre o PSOE e o Unidas Podemos.
Pedro Sánchez e Pablo Iglesias assinando o acordo de coligação entre o PSOE e o Unidas Podemos.

Para Álvaro García Linera neste momento difícil

A história conta e muito. Quando as mudanças democráticas se frustram, as sociedades reagem de diversos modos e formas. Aparece o que um italiano genial1 chamou "os fenómenos mórbidos da política". Para que a ordem reine, tiveram que dobrar vontades, forçar abandonos e propiciar todo o tipo de oportunismos. Sim, repito, a frustração de uma mudança tão esperada e justificável está na origem do que acontece connosco. O Vox não é uma coincidência. Muitos de nós sabíamos que se estavam a criar as condições para um populismo de direita puro e duro em Espanha. Talvez nos tenha surpreendido a sua rapidez e que a forma como aparece seja uma força, hoje, neofranquista e neoliberal.

Não vou voltar a argumentar sobre a irresponsabilidade de Pedro Sánchez e do PSOE. Faz parte de uma estratégia que tinha dois objetivos fundamentais: voltar a colocar o PSOE no eixo de recomposição do regime e limitar, reduzir e dividir o Unidas Podemos. Foi esta a política de Pedro Sánchez desde o princípio, aparecer como garante de um sistema político em crise e assegurar uma hegemonia nos velhos trilhos do bipartidarismo político. A operação não teve o sucesso esperado, mas não há dúvida de que esta estratégia, de uma ou de outra forma, continuará a ser o fundamento do PSOE nos próximos anos.

É preciso dizer desde o início para que ninguém se engane: o todos contra o Vox favorecerá o partido de Santiago Abascal

O que mudou novamente foi o mapa político espanhol. Em muitos sentidos, parecemos a Europa. É preciso dizer desde o início para que ninguém se engane: o todos contra o Vox favorecerá o partido de Santiago Abascal. Como outras experiências europeias mostram repetidamente, as frentes antifascistas apenas acrescentam mais confusão, inauguram uma tática errada e acabam por fortalecê-lo. Trata-se de diagnosticar com muita precisão por que um partido como o Vox duplica os seus resultados e se converte na terceira força política do país. Na minha opinião, tem a ver com três elementos inter-relacionados: a crise da globalização e as crescentes reivindicações de proteção, segurança e ordem; a chamada “questão territorial” e a violência usada que escandalizou uma grande parte da população que sente que o seu Estado, a sua identidade e o seu futuro estão em perigo; terceiro, a raiva e a crescente indignação de uma parte substancial da cidadania contra uma classe política isolada, dependente dos grandes poderes e sem um projeto real capaz de resolver os grandes problemas que as pessoas comuns sofrem, cada vez mais , com medo de um futuro pior que o presente.

O cenário vai-se parecendo cada vez mais ao de alguns países europeus. Direitas cada vez mais duras, extremas-direitas populistas e esquerdas sem nervo político, débeis organizativamente e sem capacidade propositiva. O Unidos Podemos não fez muito para reverter uma tendência que, crescentemente, o coloca mais no antigo espaço da Izquierda Unida. Grave não é apenas a diminuição de votos e mandatos, mas a perda real de influência na sociedade, a falta de fortes vínculos sociais e a dissolução progressiva do pouco que restava da militância ativa incorporada nos círculos.

Pablo Iglesias costuma usar uma frase de Manolo Vázquez Montalbán para explicar a Transição: uma "correlação de debilidades"

Para surpresa de todos, 24 horas após as eleições, é anunciado um pré-acordo entre o PSOE e UP e a formação de um governo de coligação. Surpreende a velocidade e a imprecisão do que foi assinado. Apenas uma declaração de princípios. Pablo Iglesias costuma usar uma frase de Manolo Vázquez Montalbán para explicar a Transição: uma "correlação de debilidades". Creio que estamos perante isso. O PSOE não conseguiu o que queria desesperadamente: aumentar votos e deputados e continuar a arruinar a UP, que repete maus resultados e chega ao governo em condições nada favoráveis. Correlação, pois, de debilidades. Há um dado que explica muito bem o que acontece e o que acontece connosco: a falta de entusiasmo na sociedade e no que poderíamos chamar de homens e mulheres de esquerda do nosso país. O dado não é menor, porque é um governo que incorpora uma grande novidade na História recente da Espanha e nos últimos tempos de uma Europa que vira repetidamente para a direita. Outro dado  deverá fazer-nos refletir: o papel que vai desempenhar no novo mapa político uma força como o Vox. Nisto também não deveríamos enganar-nos demasiado: cada fracasso, cada frustração de expectativas e cada passo em falso será recolhido por uma força política que tem vocação de maioria e que tentará hegemonizar um bloco social alternativo.

Não é fácil despertar entusiasmo após duas campanhas eleitorais que foram percebidas pela população como desnecessárias e, pior, como jogadas de estratégia entre políticos e para políticos. O PSOE e a UP vão ter de esquecer-se de uma parte substancial do seu discurso dos últimos meses e terão obrigatoriamente de ganhar credibilidade na gestão do governo. Vai ser complicado. De momento, existem duas plataformas políticas claramente diferenciadas: por um lado, uma proposta social-liberal e, por outro, uma proposta social-democrata. Ambas aceitam o quadro dos tratados europeus e a disciplina financeira imposta pela Comissão e supervisionada pelo Banco Central Europeu. O governo de coligação PSOE-UP parte do pressuposto de que, neste contexto, há margem suficiente para aplicar políticas sociais fortes e aumentar a capacidade contratual das classes trabalhadoras, redefinindo um novo papel dos sindicatos e mitigando os aspetos mais duros da precariedade laboral, que hoje desestabiliza o mercado de trabalho. A presença antecipada de Nadia Calviño como vice-presidente económica é uma mensagem clara para a União Europeia e para os grupos de poder económico em Espanha. Ou seja, a mudança tem limites claros e linhas vermelhas que este governo não vai transgredir. Outra questão não é menor, a chamada questão territorial, especificamente a questão catalã. Pedro Sánchez repetiu várias vezes, antes, durante e depois das campanhas eleitorais: a Catalunha é deixada sob a direção do chefe do governo e, como se isso não bastasse, é uma das poucas coisas que estão claras na declaração de princípios assinada.

Há outra questão que vai marcar muito o futuro deste governo: a transição geopolítica que vive a economia-mundo e a grave crise da União Europeia. Parece que a estratégia que Pablo Iglesias definiu tem como objetivo principal concentrar-se em questões sociais e laborais, evitando outras contradições com a política geral do PSOE, para tornar visíveis as diferenças nesse campo. Isto pode ser possível ou não: os conflitos militares retornam, embora Macron fale da NATO como um "morto cerebral", a Espanha desempenha um papel decisivo na estratégia militar dos EUA, e o Médio Oriente continua a ser algo mais que uma dor de cabeça para as grandes potências. A definição de uma nova União Europeia quando chegarem os sinais de crise exigirá do novo governo posições precisas, sabendo como sabemos que a nossa "longa marcha" para a periferia corre o risco de se acelerar drasticamente. Associar políticas de austeridade com perda de soberania e subalternidade da União Europeia pode ser uma plataforma ideal para as direitas soberanistas.

O Unidas Podemos chega quase exausto a este governo. As suas bases de política, organização e ideais degradaram-se muito nos últimos tempos, e o perigo mais grave que corre é pretender substituir as suas carências, como mera frente parlamentar-eleitoral, com a gestão governamental. "Governar ou não" nunca foi uma questão de princípio, depende - sempre dependeu - da correlação real da força ou da correlação real da fraqueza. Optou-se por governar como um elemento fundamental de uma estratégia política. O dilema é complexo: governar em minoria com um partido político que é o seu principal adversário eleitoral e que, até agora, se tem dedicado a reduzir o UP à sua menor expressão eleitoral e política. Não basta gritar “sim, pode-se”, governar é gerir o conflito por outros meios, e é preciso preparar-se para isso. Por outras palavras: quanto maior a unidade com o PSOE, maior a necessidade de autonomia para a UP, nas instituições e, sobretudo, na sociedade civil. Governar implicará não só gerir bem (coisa nada fácil), mas organizar partido, aprofundar a sua unidade e mobilizar uma sociedade desconfiada, desiludida e farta da política.

As direitas não tardarão a disputar a rua e tenderão a aproveitar cada contradição e fraqueza para encurralar um governo que já nasceu com dificuldades

A decisão está tomada: goste-se mais ou goste-se menos, o que fizer este governo de coligação marcará duradouramente a política espanhola. As direitas não tardarão a disputar a rua e tenderão a aproveitar cada contradição e fraqueza para encurralar um governo que já nasceu com dificuldades. Assumem-se muitos riscos; gostaria de acreditar que estamos preparados para eles e que existe um plano B. A novidade é que, em muitos sentidos, jogamos não só o futuro de uma força política, mas também o papel na nossa sociedade das classes trabalhadoras e das maiorias sociais, que precisam de acreditar e esperam mais do que palavras e abraços. É o momento da política... da grande política.

Artigo de Manuel Monereo, politólogo e antigo deputado do Unidos Podemos (UP) por Córdoba, publicado em Cuarto Poder. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net


Nota:

1 Antonio Gramsci

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