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Arestas vivas e beco espanhol

O PSOE, e essa é a questão de fundo, se continua submisso à monarquia e hostil aos nacionalismos subordinados, não tem espaço para liderar qualquer bloco progressivo para uma transição histórica no Reino de Filipe VI e, fatalmente, comprime a UP.

1 As eleições espanholas de 10 de novembro, pedidas e provocadas pelo PSOE, saldaram-se num fracasso estratégico deste partido e do seu líder Pedro Sánchez.

Sánchez almejava uma maioria reforçada que lhe desse margem para encostar à parede, a expressão é simpática, não só a Unidas Podemos (UP), esquerda, mas também o Ciudadanos (C’s), direita liberal.

O desastre é que o PSOE:

a) perdeu o controlo do Senado (especialmente grave na relação com as Autonomias, onde as leis nesse âmbito escapam aos deputados no Congresso, como foi o caso da utilização do artigo 155 da Constituição para suspender a Autonomia da Catalunha);

b) não se reforçou e perdeu votos e 3 deputados;

c) os partidos com que Sánchez contava para viabilizar uma maioria sem coligação tiveram perdas: a UP perde 7 deputados, o C’s despenha-se passando de 57 para 10 deputados;

d) a extrema-direita torna-se a terceira força política e o PP sobe;

e) os nacionalistas, de direita ou esquerda, mantém os valores ou crescem.

Deste desastre resulta que a ideia de maioria política ficou mais longe, com o PSOE mais desgastado, e aritmeticamente mais difícil, no número de votos no Congresso de que pode dispor.

2 Agora, o PSOE enfrenta dois desafios institucionais: aprovar a investidura e o Orçamento do Estado. Será um beco sem saída? Se a investidura exige, em segunda volta, maioria relativa, o orçamento só passa com maioria absoluta. Nenhum destes dois desafios está, por agora, próximo de ser alcançado. A investidura, mesmo somando os votos de PSOE, UP, MAS PAÍS, PNV, PRC, e talvez de BNG e “Teruel Existe”, não tem os votos necessários. Só passa no parlamento com a abstenção da Esquerda Republicana da Catalunha. A eventual abstenção do EhBildu é insuficiente.

No caso do Orçamento de Estado, adivinha-se que só com o apoio do PP passará no parlamento, e não será nada fácil que o PP o venha a fazer, ainda para mais estando a UP no executivo. Por ironia, a burguesia clama que não aguenta mais atrasos, pois Espanha ainda está com o orçamento de Rajoy em vigor, que é sucessivamente prorrogado.

3 O espetro de repetir eleições atemoriza o PSOE e os democratas de todas as nacionalidades de Espanha. Temem que surja mais um foguete eleitoral do VOX e o triunfo do PP, com um governo central à andaluza (PP, VOX e C’s, se ainda existir). E assim, o pânico produziu em poucas horas o que não tinha sido possível conseguir, em melhores condições para todos,desde as eleições de abril, ou seja, um acordo de governo PSOE-UP.

Este acordo contém um entendimento sui generis pois lança uma declaração de princípios de justiça social, acerta uma repartição de cargos, mas só mais adiante terá pronto um Programa de Governo. O Podemos levanta a intenção de criar "uma vacina para a extrema-direita" e de aplicar "os artigos sociais" da Constituição, abdicando de posição geral em políticas de soberania, defesa, União Europeia, autonomias. Pablo Iglésias, em carta aos militantes, e ainda não se sabe se o governo avança, adverte que terão de fazer muitas concessões em nome da participação no executivo. O Podemos perdeu muitos eleitores na aproximação a um projeto de poder com Sánchez, resta saber como se sustenta agora essa base social que proveio das lutas de "la calle do 15M". As acusações de Sánchez de que a presença do Podemos no governo tornaria a Espanha ingovernável já está relegada a uma mera curiosidade. Esse alarme de ingovernabilidade a que António Costa deu voz em Portugal, calcule-se, para marcar numa campanha eleitoral. Agora assobia para o lado, com evidente embaraço. Afinal, Bruxelas também vê que o Podemos assumiu o cumprimento dos tratados europeus.

4 Desde abril, quando Sánchez chegou ao comando do governo, ele próprio só conseguiu agravar as relações entre o Estado Espanhol e o Governo Catalão. A Catalunha procedia do referendo de autodeterminação de 1 de outubro de 2017, reprimido e justiciado pelo regime monárquico. Sánchez ofereceu uma mesa de diálogo e logo se assustou por que não estava em condições de negociar coisa alguma, nem sequer o reforço da autonomia quanto mais exceções constitucionais para Espanha. E a parecença de Sánchez com Rajoy foi-se assomando na Generalitat para os líderes catalães. Nestes meses, foram vários os insultos de Sánchez aos eleitos da Catalunha. Ao mesmo tempo, lavou as mãos das pesadas sentenças de prisão a políticos pacíficos.

Eis agora que chega o momento galático: Sanchez precisa dos votos do recluso Junqueras, líder da ERC, com quem nem falou. O próprio Junqueras, numa carta de 4 de novembro último, acusa Sánchez de ter bloqueado a relação com a Catalunha. Diga-se, a bem da proporcionalidade, que esta carta de Junqueras também está cheia de insultos a Sánchez. Para o que importa aqui, tem-se como pouco provável a abstenção da ERC. Mas a hipótese não pode ser excluída. A ideia de que Barcelona pode fazer cair o governo de Madrid a todo o tempo também seduz alguns setores republicanos. Presentemente, a ERC está a exigir que o PSOE reconheça que há um conflito político do Estado com a Catalunha. Será que o pânico de Sánchez pode operar prodígios?

Seja como for, o PSOE, e essa é a questão de fundo, se continua submisso à monarquia e hostil aos nacionalismos subordinados, não tem espaço para liderar qualquer bloco progressivo para uma transição histórica no Reino de Filipe VI e, fatalmente, comprime a UP, onde alguns setores vêm até do republicanismo federal do antigo PCE.

5 A aproximação contínua entre Casado e Abascal é mais uma prova do processo de viragem ultraconservadora que se tem vindo a desenvolver em regimes democráticos no pós-2008 da grande recessão. As direitas ditas democráticas e as direitas reacionárias estão em frente comum em muito lado. Ao mesmo tempo, corre-se o risco de desvalorizar o ascenso reacionário a pretexto da enorme heterogeneidade dos partidos de extrema-direita. No caso do VOX, isso tem sido muito assinalado, que é um partido fruto da crise das nacionalidades, com pouco a ver com o formato moderno da extrema-direita. Não é correta essa afirmação. O VOX é franquista e diferente da Liga Italiana que não invoca o fascismo, tal como Le Pen e Bolsonaro têm narrativas muito díspares. Pode-se sempre perguntar a Steve Bannon porque ciranda entre eles todos. Sabemos melhor, as agendas nacionais não apagam um traço mundial: a reação e o autoritarismo vão de par com concentração de riqueza nos privados e querelas protecionistas nos mercados.

Na Catalunha, vai decidir-se o futuro imediato da governação espanhola.

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, professor.
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