BCE alerta para riscos das criptomoedas

29 de abril 2022 - 20:23

Os criptoevangelistas prometem o céu na terra, através de uma narrativa ilusória sobre preços que sobem sempre para manter os fluxos de dinheiro", afirma Fabio Panetta, membro do Conselho do Banco Central Europeu.

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Sede do BCE em Frankfurt. Foto Kiefer/Flickr

Na passada segunda-feira, Fabio Panetta, membro do conselho do Banco Central Europeu (BCE), deu um discurso sobre o mundo dos criptoativos com um argumentário robusto para discutir a sua regulação. 

Começa por desmontar a ideia de consastituírem uma forma de moeda digital que seja anónima, descentralizada e sem intervenção de autoridades públicas. Três pontos importam reter. Primeiro, os seus preços oscilam largamente, o que não confere a estabilidade necessária para que possam cumprir as três funções expectáveis de uma moeda - reserva de valor, meio de troca e unidade de conta. Só no ano de 2021 o valor do mercado de criptoativos quadruplicou até 3 biliões em novembro, passando para metade nos três meses seguintes. Não seria possível as famílias deterem as suas poupanças neste tipo de instrumento, nem as empresas conseguiriam estabelecer os seus preços.  

Depois, as transações não são completamente anónimas. A tecnologia blockchain, isto é, a validação de informação em rede através de contas encriptadas, permite perceber que morada detém que quantidade de moedas.

Por fim, a maioria dos detentores de criptoativos depende de intermediários, o que contradiz a ideia de um sistema financeiro descentralizado. O melhor exemplo será o caso de El Salvador, o primeiro país a adotar a Bitcoin como moeda com curso legal, e no qual os pagamentos são feitos através de uma carteira gerida de forma centralizada - a Chivo

Desta forma, caracteriza antes os criptoativos como ativos por natureza especulativos e com um alto grau de concentração. Por exemplo, 1% dos detendores de Bitcoin detêm 27% da moeda em circulação. 

Inúteis enquanto forma de pagamento e com implicações sobre as políticas públicas

Apesar de não servirem como forma de pagamento, Panetta levanta a questão se os criptoativos “têm pelo menos outras funções sociais ou económicas, como o financiamento do consumo ou investimento, ou ajudar a combater as alterações climáticas?”. Defende que as evidências mostram que não, tendo antes efeitos adversos nas políticas públicas.

Por um lado, são frequentemente utilizados para práticas como fraude, atividades criminosas ou lavagem de dinheiro. A Chainalysis estima que, em 2021, as transações de criptoativos com propósitos ilícitos ascenderam a 14 mil milhões de dólares. O membro do conselho do BCE avança que algumas investigações contabilizam até 72 mil milhões de dólares por ano, o que corresponde a 23% das transações. 

Por outro, podem ser utilizados para contornar sanções - depois das sanções impostas à Rússia, o volume de criptoativos transacionados em rublos aumentou. Mais, ao serem uma forma de acumulação de riqueza, são utilizados em práticas de elisão fiscal. Os seus detentores poderão aproveitar jurisdições com regimes fiscais favoráveis a criptoativos. 

Por fim, o processo de mineração das criptomoedas é altamente intensivo em energia pela capacidade computacional que exige. Estima-se que a “extração” de Bitcoin utilize cerca de 0,36% da eletricidade mundial, o que se pode comparar ao consumo da Bélgica ou do Chipre. 

Elevado risco para a estabilidade financeira

Apesar dos criptoativos representarem uma parcela pequena no total dos ativos financeiros globais, cerca de 1%, têm um valor de mercado de cerca de 1,3 biliões de dólares. Este valor é maior do que aquele que representava o mercado hipotecário subprime antes do início da crise financeira de 2007-08.

Panetta defende que existem essencialmente três canais de propagação. Primeiro, como o próprio FMI regista, há uma crescente correlação entre criptoativos e mercados de capitais. Por exemplo, se antes da pandemia, a Bitcoin era detida como forma de diversificação de investimento, desde 2020 que a correlação com o índice bolsista SP-500 se mantém positiva. Isto quer dizer que oscilações nos preços de criptoativos têm implicações na valorização de classes de ativos financeiros tradicionais. 

Depois, a depreciação do seu valor tem um impacto na riqueza dos investidores, o que, por seu turno, também contamina o resto do sistema financeiro. Terceiro, uma qualquer descredibilização deste tipo de instrumento, seja por falhas operacionais, fraude ou cibercrime, prejudicará a confiança dos investidores, oscilando os seus preços. 

O membro do conselho do BCE argumenta que as ligações entre a esfera dos criptoativos e o resto do sistema financeiro aumentarão progressivamente, implicando maiores riscos de crises. A melhor ilustração desta crescente interligação é o facto de gigantes digitais avançarem com planos de criação de stablecoins, isto é, criptomoedas que utilizam ativos ditos seguros como reserva para estabilizar o seu valor. A Meta Financial Technologies, o braço financeiro do Facebook, pretende criar os “Zuck Bucks”.

BCE quer políticas que travem a especulação através de criptoativos

Perante esta realidade, o BCE avança com quatro possíveis medidas para travar a especulação neste setor. Aconselha a que se estude como tributar adequadamente os criptoativos uma vez que atualmente há falhas no seu tratamento fiscal.

Portugal é dos países em que este problema é mais grave, sendo reconhecido internacionalmente como um paraíso fiscal no que toca a criptoativos. Segundo a Autoridade Tributária a sua tributação não é compatível com o atual código do IRS, sendonecessária uma revisão deste para que possa haver um tratamento justo das mais-valias ganhas com este tipo de transações. Nesta linha, o Bloco de Esquerda apresentou no seu programa político a defesa do “enquadramento fiscal das operações com criptomoedas, nomeadamente ao nível das mais-valias em sede de IRS”.

Panetta defende mais três linhas de atuação. Primeiro, a introdução de obrigações de reporte para transações de criptoativos a partir de determinados valores, em linha com as regras de combate ao branqueamento de capitais. Segundo, fortalecer e harmonizar o reporte regulatório da indústria cripto, por exemplo em relação aos ativos de reserva que apoiam as stablecoins. Terceiro, os reguladores devem aumentar os requerimentos de transparência e estabelecer códigos de conduta a serem seguidos por operadores profissionais de forma a proteger investidores pouco experientes.

Nas palavras de Panetta: "Surgiu um ecossistema, de mineradores a intermediários, em que os seus elementos procuram expandir-se para as finanças digitais. Os criptoevangelistas prometem o céu na terra, através de uma narrativa ilusória sobre preços que sobem sempre para manter os fluxos de dinheiro". É urgente atuar sobre este setor.