Em El Salvador, a liberdade foi entregue a uma empresa

O sistema financeiro de El Salvador foi praticamente entregue a uma empresa privada, controlada indiretamente por Bukele, que adquiriu Bitcoin através de fundos públicos, e cuja carteira digital estão todos obrigados a utilizar sem, de facto, poderem transferir as suas moedas para fora do sistema controlado pela empresa.

11 de dezembro 2021 - 17:27
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Se a Bitcoin é suposto ser adotada livremente, porque razão se tornou obrigatória em El Salvador?

Poucos dias depois da introdução de Bitcoin como moeda do país, o Diário de El Salvador, financiado por Bukele, noticiava o caso de um “jovem empreendedor” de uma empresa de pão que foi dos primeiros a aceitar pagamentos em Bitcoin. Segundo a notícia, teria realizado 106 dólares no primeiro dia em Bitcoin, valor que se preparava para levantar numa das novas caixas multibanco que convertem a criptomoeda em dólares para levantamento.

“Bitcoin é a opção perfeita de pagamento, especialmente quando o seu valor sobe. Aconselho a que esperem pela subida do valor de Bitcoin para converter a criptomoeda em dólares”, disse em declarações ao Diário.

Considerando a volatilidade do mercado de criptomoedas, esta notícia revela uma realidade tenebrosa: um trabalhador em El Salvador que receba o salário em Bitcoin poderá ver o valor do salário ter variações superiores a dois dígitos num único dia, ou a três dígitos em poucas semanas ou meses, para cima ou para baixo. O que vale 1 no dia que recebe o salário pode valer 0,5 no dia seguinte e 0,01 poucas semanas depois.

O caso é tanto mais assustador quando se considera que El Salvador tem das taxas de inclusão digital e financeira mais baixas do mundo.

Segundo o indicador de inclusão financeira do Banco Mundial (Global Findex), em 2017, El Salvador registava dos níveis mais baixos no mundo de acesso a serviços bancários. Apenas 30% dos adultos tinham conta bancária (a nível internacional, só a Guiné ou Madagáscar registaram níveis inferiores), com uma disparidade de 12% entre homens e mulheres, e 21% entre ricos e pobres. Ou seja, poucos têm serviços bancários e o acesso aos mesmos é dramaticamente desigual.

Simultaneamente, o acesso à internet é igualmente reduzido, com apenas 31% dos 6,4 milhões de cidadãos com meios de acesso próprio, seja fixo ou móvel. Apenas 6,94 pessoas em cada 100 tem uma subscrição de internet por cabo. Já o número de subscrições de internet móvel alcança quase 10 milhões de dispositivos o que, considerando que apenas 31% da população tem acesso, revela a desigualdade no acesso à internet móvel.

Considerando a fraca inclusão financeira ou digital da população, a adoção de Bitcoin serve exatamente a quem? Porque razão decidiu o governo de um país tão desigual e pouco preparado para um salto destes quando a maioria da população nunca teve contacto com um serviço bancário, nem sequer internet fixa ou móvel?

A adoção da Bitcoin foi assumida no mundo das criptomoedas como uma vitória e um primeiro passo na “libertação financeira” das pessoas face aos Estados. Indo além da falácia imediata da questão, o que esteve estranhamente ausente em todo o debate foram os próprios cidadãos de El Salvador, a esmagadora maioria dos quais não sabe nem entende o que é Bitcoin.

Várias questões continuam por responder, filosóficas e pragmáticas. Se a Bitcoin é suposto ser adotada livremente, porque razão se tornou obrigatória em El Salvador? Se a sua missão fundadora foi relegar os Estados para “devolver” o controlo financeiro às pessoas, porque razão celebram os ativistas da Bitcoin que ela tenha sido adotada por um governo autoritário? Porque razão é que a carteira digital - a Chivo - foi desenvolvida com dinheiros públicos por uma empresa privada? E porque razão são os cidadãos do país obrigados a entregar informação privada e aceitar acesso invasivo à sua privacidade para poderem utilizar a carteira digital (questão particularmente relevante tendo em consideração a tendência autoritária da administração Bukele)?

Na verdade, é até difícil entender quem é proprietário da Chivo ou das novas máquinas de Bitcoin que o Governo instalou por todo o país. Mas o problema começa com o próprio código da aplicação ou software das máquinas que, em mais uma contradição filosófica insanável, não é conhecido nem desenvolvido em código aberto. Acresce que, ao contrário de praticamente qualquer outra carteira digital de criptomoedas, a Chivo não permite a transferência ou transação de Bitcoins para outras carteiras que aceitem Bitcoin.

Em última análise, os cidadãos de El Salvador não têm sequer posse das Bitcoin que receberam, uma vez que nada garante que as transferências estão registadas em blockchain e numa morada que controlem, sendo antes posse da própria empresa que gere o sistema, em teoria.

O Governo argumenta que a carteira digital vai democratizar o acesso a serviços bancários. Para promover a Chivo, doou 30 dólares em Bitcoin a cada cidadão que adote a Chivo. Mas a aplicação tem sido um poço de erros técnicos e as máquinas multibanco rapidamente ficaram sem dinheiro uma vez que a volatilidade de Bitcoin pressionou as pessoas a irem levantar dólares assim que recebiam valores na sua carteira.

O país tem assim uma empresa privada que objetivamente tomou conta do sistema financeiro de todo um país, cujos cidadãos estão obrigados a utilizar o sistema desta empresa sem sequer ter a liberdade de gerir os seus fundos de forma autónoma à própria empresa.

Assumindo o argumento liberal que a liberdade individual é definida pela sua autonomia financeira, a liberdade foi privatizada em El Salvador.

[Parte III sobre El Salvador para ler aqui]

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