Liberais liberais, negócios à parte

Hidroelétricas de capitais públicos, empresas privadas sem capitais privados, administradores nomeados por Bukele e centenas de milhões de dólares em fundos públicos de El Salvador utilizados para comprar Bitcoin. A quem pertence e quem administra a Chivo? E quem detém as Bitcoin compradas com dinheiro público?

11 de dezembro 2021 - 17:27
PARTILHAR
O Presidente de El Salvador apresenta o projeto de transformar o país numa offshore para criptomoedas. Foto de Rodrigo Sura, via EFE/EPA/Lusa.
O Presidente de El Salvador apresenta o projeto de transformar o país numa offshore para criptomoedas. Foto de Rodrigo Sura, via EFE/EPA/Lusa.

De acordo com o Registo Nacional de Empresas de El Salvador, a aplicação Chivo pertence a uma empresa privada - a ETESAL - criada por duas instituições públicas em 1999, a Comisión Ejecutiva del Río Lempa (CEL) e a Compañía de Luz Elétrica de Ahuachapán (CLEA).

Dez meses depois, a ETESAL e a CEL criaram a Sociedad Inversiones El Salvador No. 1. É esta empresa que, a 24 de agosto deste ano, foi renomeada Chivo, Sociedad Anónima de Capital Variable. O facto de estas sociedades serem empresas privadas controladas por uma instituição pública permite a Bukele escapar ao controlo do Tribunal de Contas da República do país.

Foi também a 24 de agosto que os representantes legais da ETESAL e da CLEA nomearam o único administrador, proprietário e suplente da Chivo, de nome Raymond Francisco Villalta Alfaro.

De 28 anos, Raymond Alfaro acompanhou a ascensão de Bukele através da FMLN, passando depois em 2017 para o novo partido do atual presidente, Nuevas Ideas. Até à sua nomeação para a Chivo, Alfaro tinha sido nomeado diretor suplente do Instituto Salvadoreano do Turismo, em representação do Ministério do Turismo.

A Chivo tem também um administrador único suplente, Óscar Mauricio Figueroa Torres, que antes desempenhava as funções de diretor executivo da Secretaria Técnica para o Financiamento Externo, na dependência do Ministério de Negócios Estrangeiros.

Com a criação da Chivo, o Banco de Desenvolvimento de El Salvador (Bandesal) investiu 201 milhões de dólares, que o Bandesal recebeu através do Departamento do Tesouro, dinheiro que a Chivo utilizou para depois comprar Bitcoin, no que será teoricamente a reserva do país para garantir liquidez ao sistema da Chivo.

A drenagem de fundos públicos para Bitcoin

Em setembro, Bukele anunciou no Twitter que o governo tinha comprado 30 milhões de dólares em Bitcoin. Poucos dias depois, a moeda perdeu um quinto do seu valor e, poucas semanas depois, atingiu novos picos históricos. Para já, o risco compensou. Mas é sensato dedicar a economia de um país inteiro a uma moeda com esta volatilidade?

O governo terá reservado 150 milhões de dólares, o equivalente a 12% do investimento público de El Salvador em 2020, para garantir a convertibilidade de bitcoin em dólares. Responsáveis do governo não ofereceram qualquer explicação sobre de que forma irão impedir a utilização de Bitcoin para lavagem de dinheiro, ou o que aconteceria se o fundo ficasse sem dinheiro.

Apesar de todas as transações na Chivo serem registadas com um código dedicado para garantir transparência, Bukele elevou toda a política de criptomoedas do seu Governo a segredo de Estado. Toda a informação relativa à Chivo foi classificada como tal.
Bukele afirma que pelo menos 3 milhões de cidadãos terão adotado a Chivo. A realidade será bastante mais modesta, com a desconfiança face à volatilidade de Bitcoin e às intenções do Governo a dominar a opinião pública.

A adoção de Bitcoin por parte de Bukele parece ter também um lado de procura de autonomia internacional face aos EUA, ou aos credores do país que, sem surpresas, reagiram mal à decisão. As negociações do governo com o Fundo Monetário Internacional para aceder a um empréstimo de mil milhões de dólares foram desde então suspensas, e o acesso do país aos mercados internacionais colapsou devido às dúvidas da capacidade do Governo em garantir o serviço de dívida do país.

Em alternativa, Bukele está a estudar a emissão de títulos de dívida em Bitcoin, bem como lançar uma indústria de mineração de criptomoedas através de energia termal. O que, na prática, não passa de uma operação bancária centralizada no Estado, a antítese dos princípios fundadores da Bitcoin.

Termos relacionados: