Memória

Auschwitz e a Palestina

13 de março 2025 - 12:47

A efeméride da libertação de Auschwitz foi transformada num puro ato de propaganda legitimadora do genocídio palestiniano e de apelo ao silenciamento de quem o denuncia.

porFernando Rosas

PARTILHAR
Homem a caminhar em Auschwitz-Birkenau
Foto Auschwitz-Birkenau State Museum / Grzegorz Skowronek

No passado mês de Janeiro celebraram-se os 80 anos sobre a libertação do campo de concentração de Auschwitz/Birkenau, um dos mais sinistramente mortíferos do sistema concentracionário da Alemanha nacional-socialista, expoente máximo do terrorismo nazi e do Holocausto. O campo foi instalado a 27 de Abril de 1940 pelas SS na povoação de Oswiecim, para dar vazão às sobrelotadas prisões polacas. Foi Auschwitz I. Em 1941 construiu-se o complexo Auschwitz II/Birkenau, a 3 quilómetros de distância, já para “solucionar” a sobrelotação dos guetos na Polónia (onde se acumulavam dezenas de milhares de judeus deportados, mas impedidos de ser instalados como servos “sub-humanos” da nova colonização germânica dos territórios a leste, devido ao impasse da blitz krieg alemã na frente russa). Finalmente em 1942 construiu-se Auschwitz III (Buna-Monowitz) para fornecer mão de obra escrava à empresa alemã IG Farben. Criou-se ainda uma rede de dezenas de subcampos para onde se destacavam para trabalhos vários “Komandos” de deportados1.

Dia Internacional da Memória do Holocausto

Numa época de genocídios recorrentes, “Nunca Mais” é “Nunca Mais para Ninguém”

por

Judeus pela Paz e Justiça

27 de janeiro 2025

Auschwitz foi simultaneamente campo de concentração para presos políticos polacos, campo de prisioneiros de guerra polacos e soviéticos e campo de extermínio para judeus, ciganos e prisioneiros de guerra polacos e soviéticos. “Também em Auschwitz I se usou o gás Zyklon B, que, de produto de desinfeção, passou a ser utilizado no gaseamento de seres humanos, nomeadamente judeus a partir de agosto/setembro de 1941. O forno crematório, com capacidade para cremar 340 cadáveres por dia, funcionou de agosto de 1940 a julho de 19432 (…) mas a câmara de gás de Auschwitz I foi deixando progressivamente de ser usada, pois o extermínio em massa passou a ser perpetrado em Birkenau, num novo complexo de câmaras de gás e fornos crematórios de grandes dimensões, construídos por empresas que garantiam que poderiam ser “processados” 4576 cadáveres por dia3. No total, em todo o complexo de Auschwitz terão morrido mais de 1 milhão de pessoas.4

Também lá estiveram homens e mulheres de nacionalidade portuguesa, parte das quais não sobreviveu às câmaras de gás, às torturas e violências físicas, ao trabalho escravo, à fome ou às doenças5. Em 27 Janeiro de 1945 o campo de concentração e extermínio de Auschwitz/Birkenau foi libertado pelo exército soviético.

O governo polaco resolveu assinalar a efeméride da libertação do campo de forma bem elucidativa da natureza do espírito no tempo presente. Em primeiro lugar, excluindo a Federação Russa das cerimónias, apesar não só ter sido o exército da ex-URSS a libertar o campo, como de se tratar do país que mais vítimas registou no combate à agressão nazi e durante o terror exterminatório da ocupação: 27 milhões de mortos. O que significa ter-se pretendido assinalar o fim do Holocausto nazi não no quadro da memória da frente mundial antifascista que derrotou a Alemanha hitleriana e possibilitou a refundação da democracia política do pós-guerra em parte da Europa; não no quadro da urgência nos dias de hoje de fazer frente à ofensiva internacional da nova extrema-direita colocando as lutas de hoje na sequência histórica e memorial desse passado, mas sim, pretendeu-se recriar e rever a memória antifascista da vitória sobre o nazismo e o Holocausto á luz de novo paradigma.

Precisamente, a segunda característica do cerimonial da efeméride foi transformá-la numa espécie de comício do governo de extrema-direita de Israel com dois propósitos: em primeiro lugar, voltar à ideia falsa de que os judeus foram as únicas vítimas do extermínio nazi6, uma espécie de transmutação funesta da teocracia do “povo eleito”, um subproduto sacrificial do discurso sionista de superioridade étnica e de destino com génese divina; em segundo lugar, e na decorrência desta legitimação transcendental do apartheid, a vituperação como “antissemita”, como desviante, como continuidade moderna do Holocausto, do vasto movimento mundial de opinião pública, associado às sucessivas decisões da Nações Unidas e dos tribunais internacionais condenando o genocídio, a ocupação ilegal, as torturas, as prisões em massa, as execuções sumárias, o cerco programado pela fome e a doença, praticados com fins expressamente exterminatórios e de limpeza étnica pelo regime racista de extrema-direita do Governo e do Estado israelita contra o povo palestiniano e a população de Gaza em particular.

Ou seja, com o apoio militar e político incondicional dos EUA e a cumplicidade hipócrita da maioria dos governos da União Europeia, precisamente quando o regime de Netanyahu, violando os recentes acordos de cessar-fogo, se prepara para uma nova ofensiva genocida contra o povo palestiniano visando agora a “limpeza” e anexação permanente dos territórios de Gaza e Cisjordânia – realizando assim o “Grande Israel”, eterno desígnio expansionista da extrema-direita israelita – ao mesmo tempo, reforça-se a campanha pelo silenciamento repressivo dos protestos internacionais sob o labéu do “antissemitismo”. Concretamente, intimam-se os governos dos vários países apoiantes ou cúmplices do apartheid de Israel a proibir ou perseguir a liberdade de expressão, de associação e de manifestação dos seus cidadãos, visando não só impedir a solidariedade internacional com o povo palestiniano na sua luta pela autodeterminação e independência, como silenciar administrativamente a denúncia dos crimes contra a humanidade cometidos pelo regime de discriminação e opressão social do Estado hebreu.

E os exemplos repetem-se: A administração Trump acaba de anunciar o corte de financiamento às escolas e universidades dos EUA que não reprimam os protestos estudantis contra o genocídio em Gaza; os governos da Alemanha, da França e da Holanda adotaram medidas de proibição de manifestações públicas de apoio à causa palestiniana e de perseguição policial de quem as promover ou nelas participe. Na recente bienal de Veneza foram excluídos artistas e curadores cujas obras podiam significar, aos olhos dos novos censores, o apoio explícito ou implícito ao povo da Palestina. No Festival Internacional de Cinema, em Berlim, provocou escândalo e protestos a proibição da exibição de filmes de temática idêntica. O ataque às liberdades públicas e à democracia está em curso.

Bem vistas as coisas, o atual governo israelita, sob a bênção cúmplice dos impérios, comporta-se ideológica, política e militarmente com o seu irredentismo exterminatório, racialmente orientado e legitimado pelo mantra do destino ontológico do “povo eleito”, de maneira idêntica à estratégia hitleriana do “espaço vital” invocado em nome da superioridade rácica ariana e da imprescindibilidade, para o concretizar, da “limpeza” do inimigo “judaico-bolchevista”. Comporta-se como os carrascos históricos do povo judeu e dos povos do mundo de então. E isso coloca o bando político militar da extrema-direita israelita hoje no poder em Israel no mesmo campo político, de ideias e de práticas dos partidos e governos da nova extrema-direita neofascista internacional. Ou seja: no campo diametralmente oposto ao de qualquer movimentação antifascista ou de reivindicação histórica ou atualizante dessa memória. Daí, a transformação da efeméride da libertação de Auschwitz num puro ato de propaganda legitimadora do genocídio palestiniano e de apelo ao silenciamento de quem o denuncia. Daí, também, outra conclusão: a de que a presente batalha cívica contra a onda neofascista internacional é inseparável da luta de libertação do povo da Palestina contra a ocupação e a opressão do Estado de Israel. Na Europa, nos EUA ou no Médio Oriente é o mesmo combate. Nenhum artifício hipócrita e desculpabilizante pode separar o inseparável.


Notas:

1 F. Rosas (coord.) Ansgar Schefer, António Carvalho, Cláudia Ninhos e Cristina Clímaco, Os Portugueses no Sistema Concentracionário do III Reich, Imprensa Nacional, Lisboa, 2021,p.100 e segs

2 AA.VV, Auschwitz. No hace mucho. No mui legos, (catálogo), Musealia, Madrid, 2017, p.10

3 Idem, p.13

4 F.Rosas(coord,),idem,ps102 e 103.

5 As investigações em curso apuraram até agora a deportação para Auschwitz de 3 portugueses ou de nacionalidade portuguesa 2   dos quais terão morrido nesse campo (cf F.Rosas et Allia, Os Portugueses no Sistema Concentracionário do III Reich, catálogo de exposição, Museu do Neorealismo, V .Franca de Xira, 2024).

6 Durante a II Guerra mundial registaram-se 6 milhões de mortos judeus, 27 milhões de soviéticos (grande parte deles vítimas do extermínio nazi no território ocupado pela Alemanha ou nos campos prisioneiros e de concentração) 1 milhão de polacos (em condições idênticas), mais de 20000 cidadãos de origem cigana e vários milhares de quase todos os países europeus, das então colónias europeias africanas e até dos países asiáticos.

Fernando Rosas
Sobre o/a autor(a)

Fernando Rosas

Historiador. Professor emérito da Universidade Nova de Lisboa. Fundador do Bloco de Esquerda