Do Holocausto a Gaza: O Genocídio na Era Digital

porTiago Lapa

13 de março 2025 - 22:01
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Gaza exemplifica um genocídio conduzido por Israel com algoritmos, IA e guerra digital, onde o massacre é assistido em tempo real, mas as vítimas continuam impotentes perante um sistema impessoal e automatizado.

Um dos principais marcos distintivos do Holocausto na história da humanidade é que este é o exemplo mais acabado de extermínio sistemático administrativamente orientado, onde se refletiram as tecnologias e lógicas industriais da sua época. Por outras palavras, a morte industrializada pelo regime nazi durante a Segunda Guerra Mundial foi o genocídio da Segunda Revolução Industrial. Gaza, por sua vez, está a tornar-se no maior exemplo do genocídio da Quarta Revolução Industrial, onde a guerra é automatizada, algorítmica e mediada digitalmente.

Tais contextos não surgem por acaso, foi porque a Alemanha era uma das principais potências industriais que o Holocausto foi estruturado pelos nazis com as ferramentas do industrialismo. Por sua vez, é o lugar estratégico que Israel assume atualmente na Quarta Revolução Industrial, devido a uma combinação de fatores históricos, tecnológicos, económicos, geopolíticos e militares, que lhe permite, por ironia da História, aplicar um novo modelo de genocídio em Gaza. Israel tem um dos maiores investimentos, em percentagem do PIB, em investigação e desenvolvimento, e apresenta uma das maiores concentrações de engenheiros per capita. Tem ganho destaque no desenvolvimento de tecnologias militares avançadas, como drones, inteligência artificial (IA), big data e robótica e é um dos maiores exportadores de tecnologia de vigilância, cibersegurança e espionagem digital. Empresas como NSO Group (criadora do spyware Pegasus) e Check Point são referências no setor, muitas vezes em colaboração com governos (sobretudo EUA, China, Índia e países da União Europeia) e agências de inteligência globais.

Memória

Auschwitz e a Palestina

13 de março 2025

A Segunda Revolução Industrial trouxe a mecanização da produção, a expansão das redes ferroviárias, uma nova organização do trabalho e uma nova vaga de burocratização dos Estados. Esta lógica foi aplicada à Solução Final nazi, transformando o extermínio de milhões numa operação de eficiência produtiva.

Os campos de concentração e extermínio, como Auschwitz, eram fábricas da morte, não num sentido figurado, mas bem literal, onde a cadeia de produção envolvia deportação em massa via caminhos-de-ferro, identificação burocrática rigorosa, execução sistemática em câmaras de gás e cremação eficiente dos corpos. O Holocausto foi industrializado, racionalizado e conduzido como se fosse um problema de gestão logística e administrativa.

Hoje, o genocídio contra os palestinianos é conduzido por inteligência artificial, drones, big data e vigilância digital. O bloqueio de Gaza já era um exemplo de controle remoto de uma população, mas a guerra atual expõe a dimensão total dessa modernização do genocídio. Drones guiados por IA escolhem e atacam algoritmicamente alvos, o reconhecimento facial identifica suspeitos automaticamente e os bombardeamentos são selecionados por bases de dados de inteligência artificial. A guerra tornou-se digitalizada, automatizada e desumanizada ao ponto de ser gerida como uma operação de software.

Ao mesmo tempo, o genocídio é travado também no campo da informação. As plataformas de redes sociais censuram conteúdos palestinianos, campanhas de desinformação deturpam a realidade e a vigilância digital transforma cada palestiniano num alvo monitorizado. O acesso a água, eletricidade e comunicações também é tecnologicamente controlado.

A história demonstra, de forma incontestável, que o progresso tecnológico, quando colocado ao serviço da guerra, do genocídio e da morte, não apenas se dissocia do progresso moral, como pode mesmo aprofundar a degradação ética da humanidade. O Holocausto utilizou a burocracia e a indústria moderna para implementar a sua máquina de extermínio. Gaza, por outro lado, exemplifica um genocídio conduzido por Israel com algoritmos, IA e guerra digital, onde o massacre é assistido em tempo real, mas as vítimas continuam impotentes perante um sistema impessoal e automatizado.

O desenvolvimento técnico não conduz por si só a uma sociedade mais justa. Pelo contrário, quando colocado sob o domínio de interesses imperialistas e autoritários, perpetua e intensifica a desigualdade, a exploração e a violência. O único caminho para reverter este ciclo destrutivo reside numa mudança estrutural e profunda, que passe por uma transformação dos valores sociais e políticos rumo a uma organização mais igualitária e solidária. Sem essa mudança, a história continuará a repetir-se, e os horrores do passado seguirão a ecoar no presente.

Só uma sociedade baseada na cooperação, na partilha e na centralidade da dignidade humana pode garantir que o progresso científico e tecnológico seja, de facto, um progresso civilizacional. Apenas através da valorização da justiça social, da autodeterminação dos povos e do compromisso intransigente com os direitos humanos poderemos garantir que a tecnologia sirva a vida, e não a morte.

Tiago Lapa
Sobre o/a autor(a)

Tiago Lapa

Professor universitário
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