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Arquitetura: "Não haverá solução que não passe pela organização dos trabalhadores"

Em entrevista ao Esquerda.net, o Movimento dos Trabalhadores em Arquitetura contradiz com dados do seu inquérito a ideia de que estes trabalhadores são profissionais liberais: "87% exerce a sua atividade enquanto trabalhador por conta de outrem". Um dos próximos passos será a criação de um sindicato.
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Quando é que decidiram criar o Movimento e porquê? 

O Movimento dos Trabalhadores em Arquitetura (MTA) surgiu de um conjunto de reuniões públicas que tiveram lugar no Porto, há sensivelmente dois anos. Essas reuniões, nas quais participaram algumas dezenas de pessoas, serviram para iniciar um processo de reflexão coletiva sobre o estado do Trabalho em Arquitetura em Portugal e tornaram claro para quem aí se juntou que existiam pontos convergentes na análise que fazíamos da situação e, mais do que isso, que os problemas que cada um e cada uma de nós enfrenta têm uma dimensão estrutural. Falamos das questões mais visíveis e conhecidas: uma enorme precariedade laboral, inexistência de progressão na carreira ou um nível salarial francamente baixo; mas falamos também de questões que se prendem com a nossa consciência coletiva enquanto trabalhadores e trabalhadoras deste sector que é tantas vezes concebido enquanto composto por profissionais liberais. Esta conceção, de acordo com todos os dados - os que já se encontravam disponíveis e aqueles que pudemos recolher neste Inquérito - não corresponde à realidade. Na verdade, os dados do nosso inquérito indicam que, das pessoas inquiridas, 87% exerce a sua atividade enquanto Trabalhador por Conta de Outrem, mesmo que o seu vínculo seja precário e que tenha atividade aberta na Autoridade Tributária enquanto Trabalhador Independente, ou seja, que trabalhe a falsos recibos verdes. Por outro lado, apenas 7% dos inquiridos são verdadeiramente Trabalhadores Independentes, com atividade para vários beneficiários, sendo os restantes 6% trabalhadores sem qualquer vínculo declarado.

O ponto de partida para a afirmação do Movimento é, por isto, a construção de uma consciência coletiva enquanto trabalhadores dependentes, pertencentes a um sector composto maioritariamente não por profissionais independentes que vivem dos honorários cobrados, mas antes dividido entre quem vive do seu salário (a larga maioria) e quem, pagando salários a outros, vive dos seus honorários. Este processo de proletarização da profissão ocorre por diversas razões, entre as quais as que procuramos traduzir tanto no nosso Manifesto Fundador como nos documentos e episódios de podcast que temos vindo a publicar. O objetivo deste trabalho de consciencialização e de organização coletiva tem como objetivo último a melhoria das nossas condições de trabalho, por via da reivindicação.

Assumindo esta natureza sindical na nossa intervenção, mostra-se clara a diferença que existe em relação ao papel desempenhado pela Ordem dos Arquitetos ou outras associações profissionais da área, que tem um propósito e enquadramento institucional distinto e que, por essa razão, não poderia cumprir o espaço que o MTA se propõe a ocupar. Este assunto leva-nos a uma outra ideia essencial para definir o MTA: as pessoas que procuramos organizar e representar não são apenas arquitetos: Existe um vasto número de trabalhadores no sector da arquitetura que, apesar de não serem membros da Ordem dos Arquitetos, desempenham funções essenciais ao desenvolvimento de projetos nos escritórios onde trabalham, nomeadamente os estagiários e outros trabalhadores do sector como arquitetos paisagistas, maquetistas, desenhadores, CG artists e outros técnicos especialistas da área.

Que balanço fazem das intervenções do MTA? 

Passados dois anos dessas primeiras reuniões, em Fevereiro de 2019, podemos dizer que o MTA cresceu e ganha, a cada dia, mais razões para existir. Depois do primeiro processo de criação do seu manifesto fundador, aprovado na nossa primeira assembleia geral, em Novembro desse ano, com cerca de 200 trabalhadores, e em todas as iniciativas e reuniões que desde então ocorreram, crescemos em número de membros e abrangência territorial; crescemos em conhecimento sobre a situação do trabalho no nosso sector; crescemos em capacidade de resposta e auscultação da realidade dos nossos colegas; crescemos em consolidação dos objetivos do movimento e crescemos em capacidade de construir propostas e reivindicações. Por outro lado, a situação que estamos a atravessar de uma crise sanitária que se tornou económica, evidenciou, com uma nova intensidade, o nível de precariedade e instabilidade que vivemos,  o desrespeito pelos nossos direitos reconhecidos na Lei e, naturalmente, a carência que existe da parte do Estado no cumprimento das suas funções de fiscalização. Tendo exposto os problemas que enfrentamos enquanto trabalhadores em arquitetura, esta crise demonstrou também a necessidade de existir uma organização de natureza sindical neste sector. O MTA, enquanto movimento de trabalhadores com vista a tornar-se um sindicato num futuro breve, entendeu a necessidade de dar resposta ao momento presente, abrindo um canal para pedidos de esclarecimento e denúncias de situações de desrespeito pelos direitos laborais, acompanhando e apoiando trabalhadores na resolução de conflitos laborais e articulando esse acompanhamento com o inestimável apoio das Uniões de Sindicatos Regionais da CGTP. Foi também nesse trabalho de acompanhamento que mobilizámos mais trabalhadores e que o número de pessoas no MTA cresceu: colegas que há meses entravam em contacto com o MTA, expondo dúvidas e denunciando as suas próprias situações, estão hoje a trabalhar para dar resposta às denúncias que nos continuam a chegar. É também nesta solidariedade e neste compromisso com uma luta - que só pode ser coletiva - que encontramos mais boas razões para continuar.

Na vossa opinião, que contributo pode dar o recente relatório que divulgaram?

Este relatório insere-se no trabalho de conhecimento e reconhecimento da realidade laboral dos trabalhadores em arquitetura e das dificuldades que enfrentam, que o MTA tem vindo a realizar desde a sua fundação, sendo três as razões fundamentais que explicam a sua importância:

A primeira razão é ele procurar ilustrar a realidade do sector pela óptica dos seus trabalhadores, algo que não tem sido tão visível noutros estudos. Os dados com que trabalhávamos até aqui eram essencialmente os recolhidos pela Ordem dos Arquitetos e pelo Conselho dos Arquitetos da Europa. Estes dados, pese embora a sua utilidade, são recolhidos tendo como objeto de análise e inquérito apenas os profissionais considerados arquitetos, ou seja, as pessoas que são membros inscritos da Ordem. Ora, isto provoca uma distorção nos números que nos interessam: por um lado, existem membros da OA que, por alguma razão, já não se encontram a trabalhar no sector e, por outro, existe um vasto número de pessoas que trabalha neste sector e que não é membro da OA.

A segunda razão é a seguinte: ter consciência da realidade específica dos trabalhadores durante o primeiro período de confinamento e teletrabalho obrigatório será o que nos permitirá avançar, de forma mais segura, de uma posição de consciencialização e auto reconhecimento para uma de reivindicação de medidas concretas. No decurso da crise pandémica, além do Inquérito aos trabalhadores e da elaboração do respetivo relatório, o MTA elaborou um caderno reivindicativo de emergência, que pretendeu dar resposta às muitas situações de injustiça e incumprimento legal que nos foram chegando. O Inquérito foi lançado poucos dias depois, para sistematizar essa recolha de informação e foi também útil para a elaboração do caderno de propostas para o Orçamento de Estado de 2021 que endereçámos aos Grupos Parlamentares. Podemos dizer que os números que hoje temos e a análise feita a partir deles é, não só um instrumento de estudo, mas também uma base para construir propostas e reivindicações, não só para a situação de crise no imediato como com vista a transformar estruturalmente os fatores que provocam os baixos salários, a precariedade, a falta de perspetivas de progressão na carreira, entre outras questões.

A terceira razão está no próprio Inquérito, que nos permitiu entrar em contacto com um número muito maior de trabalhadores. Significa isto que o inquérito é válido e útil por si só enquanto instrumento de interpelação e de consequente mobilização de trabalhadores. Os inquiridos de ontem, que juntamente com a resposta ao questionário fizeram a denúncia das suas situações individuais, vão-se tornando os membros organizados do Movimento de hoje.

Como acham que as condições laborais dos trabalhadores em arquitetura podem ser melhoradas?

Estamos convictos que o primeiro passo será através da consciência e organização coletiva que nos coloque a pensar, juntos e juntas, sobre como transformar o sector em que trabalhamos, para que seja erradicada a precariedade, para que os vínculos laborais sejam efetivos, as remunerações justas e onde seja possível crescer e progredir na profissão, onde não tenha lugar nenhuma forma de discriminação. Quer isto dizer que para o MTA não haverá solução que não passe pela organização dos trabalhadores.

A nível, concretamente, de proposta política, embora este seja um campo em constante discussão e consolidação no seio do Movimento, podemos afirmar existirem dois eixos de reivindicação distintos: o cumprimento da Lei Laboral e o avanço para novos instrumentos de regulação que garantam os objetivos acima descritos, como sejam o aumento global das remunerações e a criação de condições de progressão na carreira.

No domínio do cumprimento da Lei, por exemplo, é indispensável continuar a reivindicar que os Estágios de IEFP, hoje generalizados como principal meio de acesso ao trabalho no sector da arquitetura, sejam efetivamente isso: estágios. Ou seja, que não sejam usados e abusados, numa rotatividade pouco escrutinada, para ocupar postos de trabalho fixos, o que é tão frequente. Outro exemplo será o cumprimento da exigência de contrato de trabalho sem termo enquanto modelo de contratação por definição, dado tantos trabalhadores continuarem a trabalhar a falsos recibos verdes, sem verem reconhecidos os seus direitos, nomeadamente direito a seguro de Acidentes de trabalho, formação, 13º e 14º mês, entre outros; ou quando contratos a termo certo e incerto são tantas vezes utilizados em situações indevidas. Um tipo de incumprimento muito penalizador e bastante generalizado tem que ver com o recurso a horas extraordinárias que, sendo muito frequente, são raras as vezes em que esses trabalho extraordinário é remunerado e mais raras ainda as vezes aquelas em que a remuneração vai ao encontro do previsto no Código do Trabalho. É, para nós, claro que o recurso abusivo às horas extraordinárias se mostra particularmente penalizador para trabalhadores que tenham uma família, dependentes ou ascendentes a seu cargo, aos quais tenham de prestar cuidados, muito particularmente para trabalhadoras que, transversalmente aos mais diversos sectores, continuam a acumular uma dupla jornada de trabalho - no seu local de trabalho profissional e na esfera familiar - e que se vêem, também por essa razão, prejudicadas no seu percurso profissional. De acordo com os dados do Conselho dos Arquitetos da Europa, em Portugal as arquitetas ganham em média menos 30% do que os arquitetos, uma disparidade salarial superior à média nacional.

No que diz respeito a novos instrumentos de regulação, desde o início deste processo que se mostra clara a necessidade da criação de tabelas salariais de referência, que garantam salários justos para todos os níveis de experiência e competências profissionais e habilitações académicas. Estas tabelas existem em alguns países e tomam formas distintas em cada um deles. Este é também um tema que está a ser alvo de investigação por um grupo de trabalho dentro do movimento, no sentido de compreendermos como é regulamentado o trabalho no sector e que reivindicações são feitas por estruturas semelhantes ao MTA. Existe a figura do Contrato Coletivo de Trabalho, embora só possa ser implementado mediante negociações entre sindicatos e associações patronais, atualmente inexistentes. No entanto, existe ainda a possibilidade de criação de um Regulamento de Condições Mínimas que estabeleça esse nivelamento para o sector;

A definição de critérios para essa progressão, o tabelamento de níveis salariais dignos, modelos e métodos de formação eficazes e de acesso democrático, são alguns dos temas que estão no centro das discussões do movimento e deste processo que levaremos a cabo nos próximos meses.

Como já referido, no imediato, e para responder às consequências/circunstâncias provocadas por esta pandemia, consideramos a organização coletiva o instrumento crucial e, sem dúvida, o mais consequente para a reivindicação de condições dignas nos locais de trabalho. Mas são igualmente urgentes medidas abrangentes, no plano político, tal como propusemos para o Orçamento de Estado deste ano: aumento do salário mínimo nacional, regularização de postos trabalho, contratação de quadros técnicos para o desenvolvimento de políticas públicas de Habitação e Ordenamento do Território, reforço da ACT, financiamento de formação contínua, apoio aos trabalhadores independentes e trabalhadores informais, manutenção do apoio aos Estagiários Profissionais, apoio excepcional à família, reforço dos serviços públicos, redução da tributação dos rendimentos mais baixos e aumento dos Apoios Sociais.

Que desafios vos trouxe a pandemia no âmbito do vosso trabalho?

Além das crescentes dificuldades dos trabalhadores em arquitetura que nos contactaram e que, por maioria de razão, acrescentaram muito trabalho ao nosso coletivo composto por pessoas que mantêm os seus empregos e se encontravam também elas a lidar com as suas próprias dificuldades e conflitos laborais, existiu também o esforço de adaptação do trabalho do movimento aos meios digitais.

Em primeiro lugar, o MTA funciona de uma forma horizontal e as reuniões presenciais, em que se debatem ideias e tomam decisões coletivamente, tiveram de ser substituídas por reuniões realizadas através das plataformas digitais, uma mudança de registo que tem as suas desvantagens. No entanto, também facilitou a integração de trabalhadores de diversas partes do país que, desta forma, encurtam a distância que os separava destas reuniões  passando a poder participar de forma mais integrada nos trabalhos do movimento.

A gestão de calendário foi também particularmente difícil. O MTA tinha planeado várias de iniciativas e plenários com trabalhadores por vários pontos do país, para o ano de 2020. A título de exemplo,em Abril estava em preparação uma assembleia de trabalhadores em Lisboa que pelas razões que todos conhecemos, ficou sem efeito.. Para contrariar as adversidades  encontrámos outras formas de comunicar e refletir em conjunto sobre os temas que entendemos pertinentes - os mesmos que serviriam de mote aos plenários que estavam agendados, nomeadamente através do podcast. Organizados em grupos de trabalho e investigação internos, os membros do MTA têm vindo a produzir sebentas temáticas que lançaram as bases para as conversas em podcast que nos últimos meses temos publicado. A primeira foi, precisamente, sobre a Caracterização da Profissão, para o qual contámos com o sociólogo e investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra Alfredo Campos que, na sua tese de doutoramento, estudou os processos de precarização do emprego entre as profissões qualificadas e, nesse âmbito, realizou um inquérito a trabalhadores em arquitetura. A segunda, dedicada à Intervenção Sindical, contou com a participação do Doutor João Leal Amado, Professor de Direito na Universidade de Coimbra, com o qual conversámos acerca da origem do Direito do Trabalho e da importância da organização de trabalhadores na sua aplicação e evolução, ao longo do tempo. Brevemente lançaremos um terceiro episódio acerca dos problemas da precariedade e discriminação no contexto do trabalho em arquitetura, com foco na desigualdade de género e como esta se manifesta neste sector.

Com o retomar do confinamento, no final do ano passado, e como resposta a essa situação de emergência e impossibilidade de encontro presencial, organizámos três sessões temáticas de esclarecimento online: sobre Teletrabalho e Trabalho Suplementar, Falsos Recibos Verdes e Falsos Estágios e Contratos de Trabalho e Negociação - contando respetivamente com a participação de João Ferreira (jurista), Tiago Gillot (ativista dos Precários Inflexíveis - Associação de Combate à Precariedade) e Tiago Oliveira (CGTP-IN). De novo, um conjunto útil de iniciativas nesse processo de aprendizagem e aproximação da realidade dos trabalhadores deste sector. Levando portanto a cabo a reflexão que entendemos necessária pelos meios possíveis, neste momento.

Apesar de todas as dificuldades, não deixámos de marcar a nossa presença nas ruas, no cumprimento de todas as medidas de segurança, nomeadamente com a nossa participação na ação do Primeiro de Maio da CGTP e na Manifestação de dia 6 de Junho: “Resgatar o Futuro, Não o Lucro”, ambas no Porto.

Nada substitui o encontro e a partilha presencial de ideias e experiências, no que diz respeito à mobilização de colegas e à criação de laços de solidariedade e é por essa razão que, assim que seja possível do ponto de vista sanitário, temos planos para retomar as reuniões em plenário com trabalhadores em vários pontos do país.

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