Em Portugal, as apostas online passaram a ser permitidas e reguladas por lei em 2015. O governo de Paulo Portas e Passos Coelho anunciou a mudança como positiva para os cofres do Estado, com o então secretário de Estado do Turismo, Adolfo Mesquita Nunes, a afirmar que os interesses do sector "estarão mais protegidos com a existência de um quadro regulamentar" específico para o regime "online", "prevenindo o jogo desregulado e clandestino".
Passados dez anos, de acordo com o Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos (SRIJ), quase 1 milhão de euros são despendidos por hora em apostas online. Todos os números relacionados a este fenómeno são impressionantes. Nos primeiros nove meses de 2024, mais de 1 milhão e 170 mil pessoas apostaram pelo menos uma vez em sites de apostas, um aumento de 27,8% face ao período homólogo de 2023. Nos últimos cinco anos, o volume de apostas quintuplicou, ultrapassando os 15 mil milhões de euros apenas em 2024.
Neste mundo, as chamadas apostas desportivas, com a possibilidade de múltiplos palpites em tempo real nos mais variados desportos, são minoria (34,3%), enquanto os jogos de azar e os casinos online dominam (65,7%). O crescimento deste fenómeno disparou na Europa desde a pandemia e em países como o Brasil atinge uma escala de pânico económico, com níveis assustadores de endividamento da população. Recentemente, a revista The Lancet classificou os jogos de azar como um problema de saúde pública, contribuindo para níveis crescentes de dependência que resultam, em muitos casos, em falência individual e familiar dos apostadores. Em Portugal, o número de “autoexcluídos”, pessoas que voluntariamente pediram para ver o seu perfil impedido de realizar novas apostas nestes sites, atingiu já os 276 mil.
A indústria do vício
As apostas online massificam e disseminam a prática do risco permanente. A qualquer hora, em qualquer local, qualquer pessoa pode passar horas sem fim a apostar valores muito altos e, dada a profusão de plataformas, potencialmente infinitos. À semelhança das raspadinhas e do tradicional casino, o jogador obtém um resultado imediato, de sorte ou de azar, mas sempre atrás de um ecrã, em estabelecimentos virtuais que nunca fecham as portas. A dopamina barata das apostas recompensa o risco imediato, porém, os efeitos a longo prazo podem ser devastadores.
Mas quem são e o que representam estas casas de apostas online? Criada no ano 2000, a bet365 rapidamente ultrapassou a fronteira do Reino Unido e é hoje uma empresa com presença legalizada em mais de cinquenta países. Os números falam por si: no ano passado, a bet365 apresentou lucros de 800 milhões de euros e a sua proprietária e CEO, Denise Coates, a mulher mais bem paga do Reino Unido, encaixou um salário anual de 250 milhões de euros. Em 2020, em plena disputa com Jeremy Corbyn para a liderança do Labour, a campanha de Keir Starmer recebeu um donativo de 25 mil libras por parte de um alto executivo da bet365, revelando os laços entre a indústria do jogo e alguns atores da política britânica. À semelhança de outras casas de apostas virtuais, a bet365 tem a sua holding sediada em Gibraltar, um paraíso fiscal. Este site de apostas não está legalizado em Portugal, o que significa um bloqueio para utilizadores presentes no nosso país. Todavia, bastam dois segundos de pesquisa para encontrar diversas páginas e vídeos que explicam como ultrapassar este obstáculo via VPN (rede privada que oculta o IP e o país de origem).
As apostas desportivas, mesmo que minoritárias, representam uma fatia significativa deste fenómeno. Fundada em Atenas, a Betano é uma das casas de apostas com maior crescimento em todo o mundo. Com sede fiscal em Malta, foi, em 2022, a primeira a patrocinar um campeonato do mundo de futebol. Patrocínio que se estende a dezenas de clubes, entre eles o FCP, o Sporting e o Benfica. A ligação entre o mundo das apostas e a indústria do futebol cresceu ao ponto de resultar em operações de viciação de resultados em diversas partidas de futebol, como aconteceu no Brasil. Outra casa de apostas, a Bwin, permite apostar em mais de noventa modalidades desportivas e patrocinou a liga portuguesa de futebol durante cinco anos. A sua holding, a Entain plc, sediada no paraíso fiscal da ilha de Man, é o resultado de anos de aquisições e fusões no setor, apresentando um lucro de 1500 milhões de euros no ano de 2024. Nesse mesmo ano, a Entain pagou mais de 700 milhões de euros para chegar a um acordo judicial e pôr fim às acusações de inação perante esquemas de suborno na sua filial turca.
Nem só de empresas internacionais depende a indústria do vício. Já no campo dos jogos de azar, e se olharmos ao panorama nacional, destaca-se a solverde.pt, versão online do grupo detido pela família Violas. Em 2024, a solverde.pt introduziu os famosos “crash games”, que geralmente envolvem um objeto voador, como um avião, que percorre uma linha ascendente, com os jogadores a colocarem as suas apostas e a acreditarem na técnica para atingirem os melhores resultados. O forte crescimento das apostas online contribuiu para os lucros crescentes do grupo liderado por Manuel Violas, um fiel apoiante e doador das campanhas de Cavaco Silva à presidência da República e um dos empresários apanhado nas malhas dos Pandora Papers, com uma empresa sediada nas Ilhas Virgens Britânicas. Soubemos agora que a Solverde, grupo que quer renovar durante este ano as concessões dos casinos de Espinho e do Algarve, pagou avenças mensais à empresa de Luís Montenegro.
A lista de casas de apostas online é extensa e quase todas revelam um padrão de proximidade com o poder político, tentando influenciar as regras de regulação e garantir o fluxo de lucros milionários via empresas sediadas em paraísos fiscais.
Quem entra na casa que ganha sempre?
Neste mundo virtual, a sorte individual, possível mas improvável a longo prazo, não anula a velha máxima “a casa ganha sempre". Mas o problema não reside apenas no plano inclinado do jogo online. Saber que a casa ganha sempre é uma evidência, como nos revelam os números, porém, é no aliciamento de novos jogadores que se encontra a dimensão mais oculta e nauseante desta indústria do vício.
Para gerar lucros, as casas de apostas precisam que o número de apostadores cresça todos os anos. A publicidade ao jogo online está hoje, em toda a parte. Das camisolas oficiais de clubes de futebol à imprensa escrita, dos festivais de verão ao youtube, passando pelos descontos em combustível para apostadores, são milhões de euros destinados a divulgar as principais marcas. Mas não é só na publicidade tradicional que estas casas investem. Apresentadora, acionista e diretora da Media Capital, Cristina Ferreira foi recentemente anunciada como a “nova embaixadora” da Betano em Portugal. Já a solverde.pt introduziu Teresa Guilherme e Paulo Futre como personagens virtuais de novos jogos de azar lançados pelo grupo. O recurso a figuras famosas faz parte da estratégia de cativação de novos apostadores. Influenciadores como Numeiro e Fanny Rodrigues chegaram mesmo a ser denunciados por incentivarem o jogo como forma de “renda extra”, lucrando com publicações nas suas redes sociais que anunciavam códigos promocionais de casas de apostas.
Uma vez garantida a atenção e o clique na casa de apostas online, surgem os famosos “bónus”. Quase todas as casas têm essa modalidade de entrada, em que os novos utilizadores investem um valor que se multiplica instantaneamente no jogo virtual. Este isco faz com que muitos apostadores se aventurem numa primeira experiência do jogo, arriscando muito pouco. Algumas casas oferecem mesmo saldo gratuito. Na Betano, o simples registo de um novo apostador vale 10 euros para gastar de imediato. A Placard, site de apostas online da Santa Casa, oferece 5 euros. Já a Bwin promete “uma primeira aposta sem riscos” até 150 euros. Caso o apostador não acerte o primeiro palpite, o dinheiro é devolvido para permitir uma segunda aposta. Este esquema de aliciamento perturba a avaliação do risco que cada apostador deve realizar desde o início, numa abordagem de responsabilização individual que é, de resto, quase um lema da indústria do vício.
Num universo onde os valores despendidos são potencialmente infinitos, as casas de apostas oferecem apenas um serviço de “limite de apostas e depósitos” em que é o próprio apostador a definir os valores enquanto a casa fica com as mãos livres para receber todas as quantias em depósitos. Quer isto dizer que não existe um limite máximo de depósitos realizado por um cidadão em determinado período de tempo, que pode gastar todo o salário e património em diversas casas de aposta num só dia.
Como proteger as pessoas da indústria do vício?
Três medidas podem ajudar a proteger as pessoas do abuso. A primeira é reverter a alteração ao código da publicidade aprovada pelo governo de Passos e Portas em 2014. Respondendo a um pedido da troika, passou a ser permitido a publicidade ao jogo online e à atividade dos casinos. A simples proibição da publicidade física ou virtual dos jogos de azar, além de respeitar um passado legislativo não tão distante, permitiria reconhecer os riscos associados à prática das apostas e a necessidade do Estado regular um setor que movimenta milhões. A Bélgica, Itália e Letónia são alguns dos países onde esta proibição já existe.
A segunda medida, à semelhança do que foi já legislado no Brasil, é proibir a oferta de “bónus” nas casas de apostas online. A avaliação do risco por parte de novos apostadores não deve sofrer a perturbação criada pela ilusão de uma “aposta sem riscos”. O jogo online não é uma forma de criar renda extra, mas também não é apenas uma forma de entretenimento, como defendem os patrões do setor. Os riscos de falência individual e familiar causados pelo vício são reais. Reconhecer os riscos é o primeiro passo para evitar a bancarrota.
Por fim, estabelecer limites às apostas, alterando o paradigma do apostador responsável. Não pode recair sobre quem aposta a única responsabilidade de estabelecer limites aos valores despendidos no “entretenimento” da indústria do vício. Atualmente, qualquer pessoa pode saltar de casa de aposta em casa de aposta online, gastando o que tem e o que não tem, sem qualquer responsabilização destas entidades para lá da definição das “odds” máximas (valor do potencial retorno sobre uma aposta). O governo dos Países Baixos enfrentou este problema, limitando aos 700 euros mensais o valor de depósitos em cada operador, podendo ser aumentado mediante a prova de rendimentos. Estes limites aos depósitos, para serem eficazes em Portugal, devem ser controlados pelo Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos, não devendo exceder um valor mensal cumulativo em todas as casas de apostas.
A vida das pessoas não pode ser uma roleta nas mãos das casas de apostas. Regular e combater o abuso são tarefas necessárias para que a casa não acabe sempre por ganhar.